sábado, 15 de novembro de 2025

Depois da minha cirurgia nos olhos, eu não aguento mais olhar pra minha família...

Tô escrevendo isso do meu notebook, enfiado no armário com a porta barricada pela minha escrivaninha e pela cômoda. Dá pra ouvir eles do lado de fora do quarto. As vozes tão calmas, tão carinhosas. Mas tem outros sons também. E são esses sons que tão me mantendo aqui dentro.

Tudo começou há três meses. Minha vida inteira foi um borrão literal. Nasci com um astigmatismo tão foda que o oftalmologista brincava que eu via o mundo em foco suave permanente. Eu não achava meus óculos na mesinha de cabeceira sem tatear primeiro que nem um cego. Lentes de contato eram um ritual diário irritante pra caralho. Eu tinha 24 anos, um trampo decente, e finalmente juntei grana suficiente. O LASIK era meu passaporte pra uma vida nova. Uma vida nítida.

A consulta foi estéril e tranquilizadora. O médico era um cara mais velho, afiado, com um foco intenso, quase predatório. Ele tinha um jeito de te olhar, como se visse além da superfície dos seus olhos. Falou de "erros refrativos" e "retalhos corneanos", num tom calmo e autoritário que lavou qualquer ansiedade que ainda tivesse. Mencionou uma técnica nova, meio experimental, que ele tava pioneirando. Disse que era mais precisa, oferecendo um nível de clareza "sem precedentes". Afirmou que corrigia distorções atmosféricas e até flutuações de luz que procedimentos padrão nem tocavam. Eu comprei na hora. Queria o melhor. Queria ver tudo. Puta que pariu, que idiota eu fui.

A cirurgia em si foi tão esquisita e impessoal quanto você imagina. Cheiro de antisséptico, o metal frio do apoio de cabeça, o Valium que me deram deixando meus membros parecendo de outra pessoa. Lembro da pressão no globo ocular, do cheiro de queimado que dizem que é só o laser, e da voz calma do médico narrando tudo. "Um retalho perfeito. Agora vamos remodelar. Só mais uns segundos." Aí escuridão, seguida da aplicação suave de bandagens e protetores nos olhos.

A recuperação foi a parte mais foda. Duas semanas de escuridão total. Fiquei completamente dependente da minha família. Minha mãe, meu pai, minha irmã caçula. Eles foram incríveis. Me guiavam pela casa pelo braço, garantiam que eu não esbarrasse em nada. Minha mãe cozinhava minhas comidas favoritas, o cheiro do ensopado dela ou do frango assado enchendo a casa. Sentava comigo, me dava na boca pra eu não fazer bagunça. A voz dela era uma presença constante, reconfortante. "Só mais um pouquinho, amorzinho. Você precisa manter as forças."

Meu pai lia pra mim por horas. Páginas de esportes, romances de fantasia, qualquer coisa pra passar o tempo. A voz dele, grave e retumbante, era um conforto no vazio preto que meu mundo tinha virado. Minha irmã trocava a música, botava podcasts, e só ficava ali comigo, a presença dela uma garantia silenciosa. Eles eram a família perfeita, amorosa, e eu tava consumido por uma gratidão profunda pra caralho. Mal podia esperar pra ver os rostos deles de novo, ver de verdade, com meus olhos novos e perfeitos.

O dia de tirar as bandagens era pra ser uma festa. Fomos todos pra clínica juntos. A enfermeira foi gentil ao cortar a fita e desenrolar devagar a gaze. Por um momento, com as bandagens fora mas os olhos ainda fechados, senti um tremor de empolgação pura, sem filtro.

"Tá bom", a enfermeira disse baixinho. "Abre devagar. A luz vai ser muito forte no começo."

Fiz o que ela mandou. Apertei as pálpebras, depois deixei elas abrirem tremendo.

A primeira coisa que notei foi a nitidez. Foi... violenta. Cada textura da sala pulava em cima de mim. Os microburacos no forro acústico do teto. As fibras individuais do uniforme azul da enfermeira. As rachadinhas minúsculas, quase invisíveis, no linóleo do chão. Era avassalador, uma onda gigante de informação visual que fazia meu cérebro doer. O médico tinha dito que seria assim. Hipersensibilidade. Disse que ia acalmar.

Pisquei, tentando focar. A enfermeira sorria pra mim. Parecia normal. Só uma mulher na casa dos quarenta com olhos gentis e um sorriso meio cansado. Aí virei pra minha família.

E meu mundo desabou.

É difícil descrever o que vi, porque minha mente se recusou a aceitar nos primeiros segundos. Era tipo um ponto cego cognitivo, um glitch visual. Minha mãe sorria, a boca se mexendo, falando meu nome. Mas o rosto dela... não era só o rosto dela. Fundido na linha do maxilar, subindo e contornando a bochecha esquerda, tinha outra coisa. Um saco pulsátil de carne cinza-rosada manchada, com veias roxas doentias. Dois tentáculos finos, tipo chicote, não mais grossos que uma minhoca, enrolados no lábio inferior dela, e enquanto ela falava, eles se contorciam e ajustavam, parecendo puxar os lábios pra formar um sorriso. A pele dela parecia esticada e fina onde encontrava esse... crescimento.

Desviei o olhar, o coração martelando nas costelas, e olhei pro meu pai. Ele me dava tapinhas no ombro, o rosto radiante de orgulho. Mas do peito dele, brotando debaixo da camisa de colarinho, tinha uma estrutura maior, mais complexa. Uma massa carnuda, com cara de fungo, que parecia ter se enterrado no esterno. Era estriada, quase como uma concha marinha grotesca, e brilhava com uma camada fina de umidade. Um apêndice grosso, tipo tubo, saía dela, sumindo debaixo do queixo e entrando na boca. Ele não tava falando; os sons vinham dele, mas o tubo carnudo vibrava com as palavras.

Senti a bile subir na garganta. Olhei pra minha irmã. Ela era a pior. Uma coisa tremeluzente, quase translúcida, drapejada na cabeça e nos ombros dela como um xale vivo. Sem traços, exceto por uma série de bexigas pulsáteis que desciam pela espinha. Os tentáculos dela tavam entrelaçados no cabelo, e dois maiores, mais grossos, tavam plugados direto nos cantos da boca, esticando os lábios num sorriso plácido permanente.

"O que achou?", a voz da minha mãe ronronou, mas a coisa na bochecha dela pulsava no ritmo das palavras. "Dá pra ver a gente direitinho?"

Eu não conseguia respirar. Não conseguia falar. Só ficava olhando, meus olhos novos e perfeitos captando cada detalhe horrível. O jeito que as coisas se moviam em simbiose com eles. O jeito que os corpos deles pareciam quase... secundários.

"Ele tá em choque", a voz do meu pai retumbou, o tubo no peito vibrando. "É muita coisa de uma vez."

Devo ter desmaiado, ou pelo menos apagado, porque a próxima coisa que lembro é de estar no carro voltando pra casa, a cabeça encostada no vidro frio da janela. Mantive os olhos fechados. Disse que a luz tava forte demais, que minha cabeça tava explodindo. Eles foram super compreensivos. Compraram total.

As semanas seguintes foram um pesadelo vivo. Fingi que meus olhos ainda tavam se ajustando, que eu tinha uma enxaqueca constante. Passava o máximo de tempo possível no quarto, no escuro. Mas não dava pra me esconder pra sempre. Eu precisava comer.

A primeira vez que minha mãe me trouxe uma bandeja de comida, quase gritei. Era o ensopado de carne famoso dela, que eu amava a vida inteira. O cheiro era o mesmo. Rico, saboroso, com um toque de alecrim. Mas o que vi no prato não era ensopado. Era uma tigela de lama grossa, vermelho-escura, quase preta. Se mexia. Pulsava num ritmo lento, como um órgão vivo. Flutuando na gororoba tinham coisinhas brancas, tipo larvas, se contorcendo devagar.

"Come, filho", ela disse, a voz quente, enquanto o parasita na bochecha tremia de expectativa. "Você precisa de forças."

Fiquei olhando a tigela, depois pra ela. Vi um dos tentáculos no rosto dela mergulhar na tigela, pegar uma colherada da lama se contorcendo, e enfiar na boca. Ela mastigou, engoliu, e sorriu pra mim.

Vomitei no banheiro por vinte minutos.

Aprendi a lidar. Levava a comida pro quarto, dava descarga, e dizia que tinha comido. Sobrevivia de barras de proteína e garrafas d'água que contrabandeava pro quarto e escondia. Mas a água... até a água tava errada. Quando eles me serviam um copo da torneira, não era transparente. Era um líquido viscoso, levemente avermelhado, tipo sangue bem diluído. Mas eles bebiam como se fosse nada. Enchiam o copo, e as coisas grudadas neles mergulhavam primeiro os apêndices espinhosos no copo, antes de deixar os hospedeiros beberem.

O mais assustador era como o resto era normal. Eu saía escondido de casa às vezes. Andava na rua, e todo mundo parecia... normal. O carteiro, as crianças brincando no parque, a mulher correndo com o cachorro. Eram só pessoas. Só a minha família. Eu tava enlouquecendo? Era algum tipo de alucinação rara, localizada, causada pela cirurgia? Um derrame? Um tumor no cérebro?

Comecei a observar eles. Observar de verdade. Notei que, quando achavam que eu não tava olhando, os movimentos ficavam menos... humanos. Meu pai sentava na poltrona, e a coisa fúngica no peito dele se abria de vez em quando, revelando um orifício escuro e escancarado que soltava um clique gutural baixo. Minha irmã às vezes ficava parada por horas, olhando pra parede, enquanto a coisa translúcida nas costas ondulava e tremeluzia, como se comunicasse com algo que eu não via.

Aí percebi que minha família nunca mastigava de verdade. As mandíbulas se mexiam, mas eram os apêndices das coisas grudadas neles que faziam o trabalho, empurrando a gororoba pulsátil pras bocas, onde era absorvida, não engolida.

O isolamento tava me esmagando. Eu tinha pavor da minha própria família. Os toques carinhosos pareciam sondagens de uma espécie alienígena. As palavras gentis eram uma imitação horrível. Precisava voltar pro médico. Ele tinha que saber o que tava acontecendo. Ele tinha feito isso comigo. Tinha que consertar.

Marquei uma consulta fingindo ser um check-up pós-operatório. Minha mãe se ofereceu pra me levar. Inventei uma desculpa sobre querer pegar ônibus, pra me sentir independente de novo. O olhar que ela me deu... não era o dela. Os olhos tavam plácidos, mas a coisa na bochecha pulsou uma vez, devagar, um gesto que parecia suspeita.

O hospital era um farol de normalidade. As recepcionistas, os pacientes na sala de espera, os outros médicos, todos humanos. Sem enfeites. Senti um alívio tão forte que quase chorei. Eu não tava louco. O mundo era normal. Algo só tava profundamente, existencialmente errado dentro da minha própria casa.

Quando cheguei no departamento de oftalmologia, pedi o médico que fez minha cirurgia. A recepcionista, uma mina jovem com cara de tédio, digitou no teclado por um momento.

"Desculpa", ela disse sem olhar pra cima. "Ele não trabalha mais aqui."

Meu sangue gelou. "O quê? Como assim? Eu vi ele há poucas semanas."

"Ele pediu demissão", ela disse, finalmente me olhando com um toque de irritação. "Tirou uma licença por tempo indeterminado. Nos disseram que saiu do país."

"Saiu do país? Pra onde? Tem como contactar ele? É uma emergência." Minha voz subia, cheia de um pânico que eu não controlava.

"Senhor, eu não tenho essa informação. Podemos marcar com outro médico se você tá com algum problema."

Um problema. Isso era um eufemismo do caralho pro que tava rolando comigo. Cambaleei pra trás do balcão, a mente girando. Ele sumiu. Meu único elo com o que aconteceu, minha única esperança de solução, evaporou. Eu tava sozinho nisso.

Ia saindo, derrotado, quando uma enfermeira mais velha arrumando um mostruário de folhetos ali perto chamou minha atenção. Ela me deu um aceno rápido, quase imperceptível, pra um corredor próximo. Hesitei, depois segui. Ela entrou numa sala de exame vazia e segurou a porta pra mim.

"Você foi um dos dele", ela sussurrou como uma constatação. Os olhos dela cheios de uma mistura esquisita de pena e medo. "Os da 'clareza especial'."

Só assenti, sem conseguir falar.

"Ele saiu correndo", ela disse, voz baixa e apressada. "Arrumou o consultório da noite pro dia. Disse que ia pra um lugar... remoto. Sempre foi um cara estranho. Brilhante, mas estranho. Falava de... filtros. Véus." Ela olhou por cima do ombro, pro corredor vazio. "Ele deixou isso comigo. Disse que se alguém voltasse, alguém que... visse as coisas diferente... eu devia dar pra pessoa."

Ela enfiou um pedacinho de papel dobrado na minha mão. Era um número de telefone. Só dez dígitos, escritos numa letra aranhenta e apressada.

"Não sei o que é", ela disse, já saindo da sala. "E você não pegou de mim. Boa sorte."

Sumiu antes que eu pudesse agradecer.

Corri do hospital e só parei num orelhão a vários quarteirões dali. Minhas mãos tremiam tanto que mal conseguia discar. Tocou uma vez. Duas. Três. Ia desligar quando uma voz atendeu. Era ele. A voz tava tensa, chiada, como se a ligação fosse ruim, mas era inconfundivelmente o médico.

"Quem é?", ele exigiu, tom afiado de paranoia.

"Sou eu", gaguejei, sem nem falar meu nome. "O LASIK. Há poucas semanas. O... o procedimento novo."

Fez-se um silêncio longo do outro lado. Dava pra ouvir vento, e outra coisa, um clique ritmado e fraco.

"Ah", ele finalmente disse, a voz baixando pra um sussurro conspiratório. "Então funcionou. Eu não tinha certeza. A clareza... você tá vendo, né?"

"Vendo o quê?", quase gritei no fone. "O que você fez comigo? Minha família... tem coisas neles! Monstros!"

"Não monstros", ele corrigiu, a voz tingida de uma mistura aterrorizante de curiosidade acadêmica e reverência. "Passageiros. Simbiontes. Estão com a gente há milênios. Tecidos na nossa própria essência. Nós somos só o gado deles."

Encostei na vidro sujo da cabine, as pernas quase cedendo. "Do que você tá falando? Eu não entendo."

"O olho humano é uma maravilha", ele começou, partindo pra uma aula como se estivéssemos de volta no consultório estéril dele. "Mas não é perfeito. Evoluiu não só pra ver, mas também pra não ver. Desde o momento que nascemos, tem um filtro biológico no lugar, uma série complexa de fotorreceptores e inibidores neurais que os torna invisíveis pra gente. É um véu. Um mecanismo de defesa desenvolvido ao longo de milhares de anos pra proteção deles. Se a gente pudesse vê-los, ia lutar. A sobrevivência deles depende do segredo."

Minha mente tentava acompanhar, processar a loucura absoluta do que ele dizia. "Eles? Quem são 'eles'?"

"Não sei o nome que eles dão pra si mesmos", ele disse, com uma nota de frustração. "Parasitas é a palavra mais próxima que temos, mas não é bem isso. É um vínculo mais profundo. Eles nos nutrem. Nos protegem de certas doenças. Mantêm os hospedeiros dóceis, contentes. Em troca, vivem. Experimentam o mundo através da gente."

"E a comida...", sussurrei, pensando na gororoba pulsátil. "A água..."

"O sustento deles, não o nosso", ele confirmou. "Uma papa de matéria orgânica e formas larvais deles mesmos, que cultivam. Processam e passam os nutrientes pro hospedeiro humano. É um sistema fechado, perfeitamente eficiente. Desde que você não veja."

As peças se encaixavam, formando um quadro de horror tão profundo que senti minha sanidade se desfazendo nas bordas. "Você fez isso de propósito. A cirurgia..."

"Foi uma hipótese!", ele rebateu, a voz subindo com uma energia maníaca. "Passei a vida estudando o olho, suas limitações. Vi anomalias, padrões que não faziam sentido. Cheguei a acreditar que não estávamos sozinhos, que a verdade tava bem na nossa frente, só... filtrada. Teorizei que podia burlar o filtro. Podia remover o véu cirurgicamente, mas o desafio, o verdadeiro desafio é encontrá-los, pois parece que não vivem com todos os humanos. Duvidei de mim mesmo por tanto tempo, mas você... Você foi minha prova."

"Você tem que desfazer!", implorei, lágrimas escorrendo pelo rosto. "Eu não aguento viver assim! Por favor, você tem que me consertar!"

A linha ficou em silêncio por um momento, só o vento e o clique esquisito. Quando falou de novo, a voz tava pesada de uma finalidade terrível.

"Não posso", ele disse baixinho. "Não sei como. Só aprendi a abrir a porta. Nunca descobri como fechar. Por isso fugi. Eles sabem de mim. Os que não têm vínculo, os que vagam livres... eles me sentem. E agora... vão sentir você também."

Fez uma pausa. "Me escuta com muita atenção. Os grudados na sua família... eles tão percebendo que você pode vê-los. A diretriz primária deles é proteger o hospedeiro e preservar o segredo. Vão te ver como uma falha, e vão tentar 'consertar' você. Não deixa eles te tocarem. Não come nem bebe nada que te derem. E pelo amor de Deus, não deixa eles chegarem perto dos seus olhos."

A linha morreu.

Fiquei ali um tempão, o fone morto encostado na orelha. Consertar. A palavra ecoava no espaço oco onde minha esperança morava.

Quando cheguei em casa, o clima tinha mudado. A encenação de normalidade sumiu. Eles tavam todos sentados na sala, me esperando. Minha mãe, meu pai, minha irmã. Todos viraram pra me olhar quando entrei, os movimentos perfeitamente sincronizados. Os rostos com expressões de preocupação calma e amorosa. Mas os passageiros tavam agitados. A coisa na bochecha da minha mãe pulsava rápido. A massa fúngica no peito do meu pai tava aberta, o orifício central levemente escancarado. O parasita translúcido da minha irmã tremeluzia, a cor mudando de transparente pra um branco leitoso e opaco.

"Filho, você demorou muito", minha mãe disse, a voz suave como seda. "A gente tava preocupado."

"Só precisava de um ar", eu disse, a voz tremendo. Comecei a recuar pras escadas.

"Seus olhos parecem cansados", meu pai retumbou, se levantando. O tubo no peito parecia inchar. "Você não tá se ajustando bem. O médico ligou enquanto você tava fora. Disse que esqueceu de te dar isso."

Ele mostrou uma garrafinha pequena, transparente, com conta-gotas. Um colírio. Falou o nome do médico, o meu médico, o que supostamente tava em outro país.

Minha mãe pegou a garrafa dele e veio na minha direção. "Ele disse que são gotas especiais. Bem mais fortes. Vão ajudar com a sensibilidade. Vão fazer tudo... mais fácil de olhar."

Ela desenroscou a tampa. Quando fez isso, eu vi. O fluido branco-leitoso na garrafa não era remédio. Vi um glóbulo fino e viscoso da mesma substância saindo de um poro minúsculo no parasita grudado no rosto dela, pingando pela bochecha. Ela tava tentando me fazer colocar um pedaço disso no meu olho. Pra me cegar de novo.

"Não", sussurrei, subindo as escadas de ré. "Não, fica longe de mim."

Os sorrisos não vacilaram, mas os olhos ficaram frios e vidrados.

"Não seja difícil, filho", meu pai disse, subindo as escadas atrás de mim, minha mãe e irmã logo atrás. "A gente só quer te ajudar."

"A gente te ama", minha irmã completou, a voz num tom monocórdio. O parasita na cabeça dela ondulou, e dois tentáculos novos, menores, se desenrolaram perto das têmporas, com pontas afiadas tipo farpas.

Virei e corri pro quarto, batendo a porta e trancando bem na hora que eles chegaram no topo da escada. Ouvi a maçaneta girar, depois uma batida educada, suave.

"Amorzinho? Abre a porta", a voz da minha mãe chamou.

Corri pra empurrar a escrivaninha, a cômoda, qualquer coisa pesada, na frente da porta. A madeira rangeu com o peso.

Eles tentaram por mais uma hora, as vozes nunca mudando daquele tom plácido e amoroso. Me ofereceram comida. Uma tigela especial de ensopado, disseram, cheia de nutrientes pra ajudar meus olhos a curarem. Imaginei as larvas se contorcendo dentro, feitas pra crescer no meu estômago e reconstruir o véu por dentro. Recusei.

Aí as batidas pararam. Por um tempo, silêncio. Achei, rezei, que tinham desistido.

Mas aí os sons novos começaram.

Debaixo do assoalho e pela porta, dá pra ouvir. O baque molhado e macio do corpo-hospedeiro do meu pai encostando na porta. Mas não é som humano. É o som da casca fúngica dura no peito dele batendo na madeira.

E o estalo. Um estalo baixo, constante, chiado. É o som das vozes de verdade deles. Os parasitas, se comunicando. Uma série de cliques molhados e afiados e pops guturais baixos. Dá até pra sentir que tá com fome.

Minha mãe acabou de falar de novo. A voz tão doce quanto sempre, pingando preocupação melosa.

"Filho, por favor, sai daí. A gente só quer te deixar melhor. Só quer te ajudar a ver as coisas do jeito certo de novo."

Mas enquanto ela fala, eu ouço, bem do outro lado da porta. O clique frenético, ansioso, da coisa que usa o rosto dela.

Eles tão atrás da porta, só esperando. Sabem que eu vou ter que sair eventualmente. Minha água tá acabando. E eu tô com uma sede do caralho. Mas eu não vou beber a água vermelho-sangue deles. Não vou comer a comida se contorcendo deles. E não vou deixar eles botarem a imundície deles nos meus olhos novos, horrivelmente perfeitos.

Agora eu vejo tudo. E é o inferno.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

O Coro de Ossos

Eu dava aula de música numa escola secundária rural pequena no oeste da Pensilvânia. É uma daquelas cidades que nem aparece na maioria dos mapas — uma única bomba de gasolina, dois diners e uma igreja cujo sino não toca desde os anos 80. Peguei o emprego porque era quieto e barato, e achei que uns anos de experiência cairiam bem no currículo antes de tentar algo melhor. Nunca imaginei que quieto pudesse significar perigoso.

O prédio em si é antigo. A ala principal é dos anos 1930, tudo de tijolo e quinas afiadas, daquele tipo que fede a poeira mesmo quando tá limpo. Mas a ala de música foi uma adição dos anos 60 — corredores estreitos, pisos tortos e, o mais notável, uma sala de coral no porão que ninguém gostava de usar. No meu primeiro dia, o zelador — um cara chamado Rick que parecia esculpido da mesma pedra do prédio — me disse: “Não desça lá depois que escurecer. A acústica não é certa.” Eu ri, achei que era piada sobre como o som ecoa em salas de concreto velhas. Ele não riu de volta.

As primeiras semanas foram tranquilas. Eu ensinava coral iniciante pros calouros, avançado pros veteranos e supervisionava ensaio de banda à tarde. Tudo bem. Os alunos eram legais — educados de cidade pequena, meio esquisitos, completamente normais daquele jeito rural. Mas aí chegou outubro, e foi quando as coisas estranhas começaram.

Começou com som. Eu ficava na minha sala depois da aula, corrigindo provas ou afinando instrumentos, quando ouvia um zumbido. No começo, achei que era algum aluno — alguém ficando até tarde pra treinar. Mas a melodia era precisa demais. Juntinha demais. Parecia várias vozes se misturando, suaves e perfeitas, harmonizando de um jeito que arrepiava a espinha. A música vinha de baixo — sempre da sala de coral no porão.

Numa tarde, desci pra conferir. As luzes lá embaixo piscavam como se não fossem trocadas há décadas. O ar cheirava a úmido, tipo pedra calcária velha e ferrugem. A porta da sala de coral tava entreaberta, então empurrei e gritei: “Alô? Alguém aí?” O som parou na hora. Nenhum arrastar de pés, nenhum sussurro, nenhum movimento — só aquele silêncio pesado que pressiona os tímpanos.

Eu devia ter saído dali, mas a curiosidade é foda. A sala de coral parecia normal: fileiras de degraus, um piano vertical quebrado no canto, estantes de partitura empilhadas num canto. A única coisa estranha era a temperatura. Gelado, como se o ar estivesse vazando de uma geladeira. Minha respiração saía em nuvens brancas, mesmo sendo quente lá em cima.

Aí eu vi — riscado no tijolo lá no fundo da sala, bem atrás dos degraus — dezenas de gravuras pequenas, todas num semicírculo arrumadinho. No começo, achei que eram iniciais — grafite típico de moleque entediado —, mas quando olhei de perto, vi que eram notinhas musicais minúsculas, cada uma cuidadosamente talhada na parede, formando pentagramas. Não era aleatório; era uma música.

Tirei uma foto no celular, pensando em perguntar pros alunos no dia seguinte. Talvez fosse alguma pegadinha antiga de veterano. Mas quando ouvi de novo naquela noite — porque claro que ouvi —, percebi que o zumbido que eu tinha escutado antes era a mesma melodia das notas gravadas.

No dia seguinte, mostrei a foto pra minha turma avançada de coral. Alguns reconheceram na hora. “É a Canção do Vazio”, disse uma das veteranas, uma garota chamada Julia. Os outros assentiram. Pelo visto, era uma coisa local antiga — algo que passava de boca em boca em festinhas do pijama ou fogueiras. Se você cantasse a Canção do Vazio na sala de coral do porão, diziam, ouviria vozes cantando de volta. Não eco. Vozes de verdade. E se tentasse gravar, o som não saía — só estática.

“Os moleques faziam isso”, disse Julia. “Mas depois do que rolou com a turma de 2002, pararam.”

Perguntei o que tinha acontecido em 2002.

Ela só falou: “Pergunta pro sr. Calloway” e não encarou meus olhos.

O sr. Calloway tinha sido o diretor de coral antes de mim. Aposentou-se uns anos antes, mas ainda morava na cidade. Naquela noite, procurei o número dele e liguei. A esposa atendeu primeiro, depois passou o telefone quando me apresentei. Ele foi educado, mas calado. Quando perguntei sobre a Canção do Vazio, ele ficou em silêncio total por um tempão antes de dizer: “Não desça lá. Algumas salas lembram demais.” Depois desligou.

Foi aí que percebi que não era historinha de acampamento.

Nas semanas seguintes, os ruídos ficaram mais altos. Às vezes eu ouvia canto durante a aula. Os alunos olhavam em volta nervosos, fingindo que não escutavam. Um dia, uma caloura começou a chorar no meio do ensaio. Quando perguntei o que era, ela disse: “Eles estão nos imitando.” Perguntei quem, mas ela não falou.

Naquele fim de semana, decidi que precisava saber a verdade. Fiquei até tarde na sexta, fingindo trabalhar nos planos de aula. Quando o zelador saiu, peguei uma lanterna e um gravador portátil e desci pro porão. Disse pra mim mesmo que era pesquisa — pela minha paz de espírito. Mas lá no fundo, acho que queria ouvir eu mesmo.

O ar ficava mais frio quanto mais eu descia. A luz da escada zumbia e escurecia. Quando entrei na sala de coral, o silêncio era absoluto. Até o barulho dos canos do prédio parecia ter parado. Fiquei no centro, apertei “gravar” e esperei.

No começo, nada. Depois, um zumbido fraquinho — suave, distante, como vento passando por um cano oco. Prendi a respiração. O zumbido cresceu, dividindo-se em vários tons. Acordes começaram a se formar, resolver, subir. Era lindo de um jeito errado — perfeito demais, sincronizado demais. Nenhum coral humano misturava assim.

Aí começou a melodia. A Canção do Vazio. O mesmo padrão gravado na parede. Só que dessa vez, eu ouvia palavras sob a harmonia — sílabas baixas, sussurradas, numa língua que eu não conhecia. Meus joelhos fraquejaram. Tentei falar, perguntar “Quem tá aí?”, mas minha voz saiu rachada e seca. E aí eu ouvi — o arrastar de pés atrás de mim.

Girei. A sala estava vazia, mas os degraus tremiam levemente, como se algo tivesse acabado de descer deles. O canto ficou mais alto, mais perto, até eu sentir vibrando no peito. As paredes começaram a pulsar a cada nota, e eu percebi — Deus me ajude — que o próprio tijolo estava cantando.

Tropecei pra trás, a lanterna balançando loucamente pelo chão. Foi aí que vi o que tinha passado batido antes. As gravuras na parede não eram mais só notas. Tinham se espalhado pelo chão, enrolando como raízes, cada uma formando novos pentagramas que não estavam ali antes. E entrelaçados entre elas, contornos fracos — formas como costelas humanas, caveiras, vértebras, tudo riscado pela mesma mão.

Era um coro de ossos.

A música parou de repente, como se alguém tivesse desligado um interruptor. Corri escada acima, o gravador ainda rodando, o coração batendo tão forte que mal conseguia respirar. Quando cheguei na minha sala, tranquei a porta e fiquei lá tremendo até de manhã.

A gravação era inútil — só estática e uns estalos fracos. Mas no meio, bem antes de acabar, tem outra coisa. Se você aumenta o volume, dá pra ouvir: a minha própria voz sussurrando “Junte-se a nós”. O problema é — eu nunca disse isso.

Falei pro diretor que o porão era inseguro, que podia ter mofo preto ou problema estrutural. Ele concordou em fechar temporariamente. Lacraram a porta com fita de isolamento, e eu tentei esquecer. Mas os alunos não esqueceram. Continuavam ouvindo a música — pelas saídas de ar, pelos canos, até no ginásio. Um garoto jurou que viu rostos nos espelhos durante o ensaio. Outro garantiu que uma voz de menina cantou em harmonia com ele, perfeitamente afinada, apesar de ele estar sozinho.

Em dezembro, três dos meus alunos largaram o coral de vez. Não dava pra culpar. Comecei a ouvir nos meus sonhos também.

Finalmente decidi sair depois do que aconteceu com a Julia. Foi logo antes das férias de inverno. O zelador encontrou ela na escada do porão, sentada no patamar com os olhos abertos e um sorrisinho no rosto. Ela estava cantarolando. Sem parar. A Canção do Vazio. Quando tentaram mexer nela, ela começou a gritar — tão alto que as luzes piscaram. Tiveram que sedar. Ela nunca mais voltou pra escola.

No dia seguinte, a fita de isolamento estava rasgada. A porta da sala de coral estava aberta. Lá dentro, as gravuras tinham crescido de novo. Linhas novas, símbolos novos. E bem no rodapé, escrito com o que parecia ferrugem seca, as palavras: “Nossas vozes lembram.”

Pedi demissão naquela semana.

Mudei pra três estados de distância e arrumei um trampo dando aula de teoria musical online. Mas já fazem anos, e eu ainda ouço às vezes — geralmente tarde, quando tô sozinho e tudo tá quieto. O zumbido começa fraco, logo atrás das paredes, depois vira algo quase lindo.

Não sei quanto tempo me resta até acontecer comigo o que aconteceu com a Julia, mas vou resistir o máximo que puder. Então te deixo com isso: não vá atrás da canção do vazio, não é historinha inventada… 

É real.

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Não olhe para a Aurora Boreal

A aurora boreal tem dançado sobre esses céus do Kansas nas últimas noites. É de tirar o fôlego, algo que eu nunca imaginei que teria a chance de ver. Não achava que seria uma das últimas coisas que eu veria, porém.

Não recomendo que você olhe, se ela estiver sobre você.

Veja bem, há uma hora eu tava assistindo uma série de drama de terror, fumando um baseado, feliz da vida. Meu labrador preto, o Shadow, começou a arranhar a porta do porão – é o sinal dele de que precisa fazer xixi. Meu baseado já tava no fim mesmo, então apaguei, pausei o streaming e joguei o celular no sofá.

Eu tinha ouvido falar que as Luzes do Norte tavam chegando até nossos céus. Vi fotos dos meus amigos, mas ainda não tinha conseguido ver com meus próprios olhos. Quando saí pro quintal dos fundos, tava quase pitch black. Nada novo, considerando que todos os vizinhos, exceto o que mora colado, têm filhos e vão dormir cedo. Todo mundo tem cerca viva de árvores e mato bem crescido, o que ajuda a bloquear qualquer luz.

O Shadow disparou pro canto do quintal, como sempre faz. O ar tava gelado, então puxei o moletom mais pra perto do corpo, e foi aí que eu vi. As luzes rosas dançando ao longe. Não tavam bem em cima da minha cabeça, mas se eu ficasse num ponto específico, dava pra ver.

No começo, quase chorei. Era lindo. Ondulava e dançava e me fez agradecer por estar vivo, por estar nesse planeta, por poder viver coisas assim. Fiquei olhando pro céu por uma eternidade, até o barulho da grama e um latido me chamarem a atenção. Gritei o nome do cachorro enquanto voltava pra porta dos fundos, pronto pra deslizar ela aberta.

Ouvi os passos do Shadow vindo na minha direção em disparada. Deslizei a porta pra ele, mas tentei espiar pelas folhas da nossa árvore redbud pra dar uma última olhada no fenômeno raro antes de entrar. A coleira dele tilintou bem quando ele passou correndo por mim pra dentro de casa. Mesmo tendo ouvido os passos, ele pareceu surgir do nada, das sombras, direto pra aquele momento de luz. Tava correndo tão rápido que era só um borrão preto enquanto subia as escadas. Meu coração deu um pulo, mas culpei a ansiedade da maconha.

Tranquei a porta, fechei as persianas e voltei pro sofá pra continuar derretendo, mas parei no meio da escada. O Shadow tava parado no meio da sala me encarando. Dei risada de mim mesmo e mandei ele parar de ser creepy. Achando que a gente merecia um agrado, passei por ele e fui pra cozinha. Um picolé pra mim, uma orelha de porco pro Shadow.

Normalmente o barulho do saco já faz ele vir correndo. Eu já tinha guardado tudo e ele ainda não tinha vindo pegar o prêmio. Chamei de novo, depois espiei pra sala. O picolé na minha mão caiu no chão enquanto um grito rasgava minha garganta.

O Shadow parecia o Shadow, mas agora tava se transformando ativamente numa versão esticada e distorcida dele. Ouvi estalos enquanto ele crescia de um jeito impossível, bem rápido, aliás, até o pescoço ficar longo demais pra se sustentar. A cabeça caiu no chão de madeira com um baque. Meu cachorro – ou o que tinha sido meu cachorro – sorriu, depois, com os membros recém-alongados, começou a empurrar o corpo ainda explodindo na minha direção, rápido demais.

Acho que nunca corri tão rápido na vida. A escada pro sótão, onde fica meu quarto, dá sorte de sair da cozinha. Disparei escada acima, direto pro quarto e bati a porta bem na hora que patas grandes demais subiam atrás de mim. Sempre amei que meu quarto tem portas de correr escondidas, mas agora não tô tão fã.

Mal virei o ferrolho minúsculo, a porta começou a tremer no trilho enquanto a versão explodida do meu cachorro batia nela. Me achei um gênio por escolher o quarto em vez do escritório ou do armário, já que esse é o único dos três com janela.

A primeira coisa que fiz foi correr pra janela. Ela abre direto pro telhado da garagem anexa, o que daria uma fuga relativamente fácil. Já tava no meio do caminho, sentindo as telhas ásperas nos pés descalços, quando olhei pra cima e vi meu vizinho do lado, o Hunter, me encarando da janela dele direto pra minha.

Gritei o nome dele, dizendo que precisava de ajuda, mas ele só ficou lá, me olhando. Sorriu rápido, ergueu as mãos por um instante, depois o sorriso sumiu enquanto as mãos desciam devagar. Fez de novo, e de novo, e na terceira vez eu já tava apavorado. Piorou na quarta, quando ele manteve as mãos erguidas e o sorriso colado na cara.

Me encarou, depois mexeu os dedos. Se as luzes do quarto dele não estivessem acesas, seria impossível ler os lábios. Mas tavam, e quando li “Te peguei!”, ele também começou a estalar e se esticar em algo desumano. Corri pro canto do telhado, e bem antes de pular, uma figura sombria no meio da rua se mexeu, raspando o cascalho embaixo dela.

Congelei e fiquei olhando por um instante. Quando não começou a explodir, senti alívio, que sumiu tão rápido quanto veio quando a figura começou a correr na minha direção. Gritei de novo e olhei de volta pro quarto. A porta tava aguentando firme, mas batendo no trilho que nem louca. Mais uma olhada pro Hunter, ainda na janela me espiando, mostrou que ele não lembrava mais nada humano.

Me lembrou daqueles fogos de artifício de cobra que você acende e eles só crescem, crescem até virar cinza e apagar. Toda cor tinha sumido da pele dele, os olhos tavam fundos, e ele só esticava. Pensei “foda-se” e rastejei de volta pro quarto. Foi aí que as batidas na porta pararam e o canto começou.

Estou bem alegre, mas aqui ao contrário, por que não me deixa entrar?

Não tenha medo, serei rápido, deixo você viver, prometo que só quero sua pele!

Por que não me deixa entrar?

Demorei quase um minuto inteiro procurando meu celular até lembrar que deixei no sofá. Ainda bem que meu notebook tem um restinho de bateria. O problema é que nenhuma mensagem sai. Não consigo mandar chat, e-mail, nada. Acabaram as opções, então vou tentar postar isso como último recurso.

Não sei o que fazer. Alguém mais passou por essa merda? Que porra eu faço? Essa coisa que tomou meu cachorro não para de cantar a mesma coisa sem parar, embora a letra tenha mudado nos últimos segundos.

Por que não me deixa entrar? Me deixa entrar? Me deixa entrar?

Me deixa entrar! Me deixa entrar!

ME DEIXA ENTRAR!

ME DEIXA ENTRAR.

A maconha que fumei tava no fim do estoque e nunca tive uma experiência assim nas outras vezes, então dá pra descartar. Se eu não sobreviver à noite, e descobrirem que me encontraram encolhido, um cocô cinzento, por favor, levem a sério esse aviso.

O que quer que esteja deixando esses céus do meio-oeste rosa e vermelho não é a Aurora Boreal. Acho que é algo maligno. Se você der uma espiada, talvez queira deixar eles entrarem. Porque agora, esse é o único pensamento na minha cabeça.

Isso, e uma musiquinha que tá ficando insistente o suficiente pra eu começar a cantarolar.

Ao contrário, estou aqui e bem alegre, acho que vou deixar eles entrarem!

Não vou ter medo, serão rápidos, deixam eu viver, só querem minha pele!

Acho que vou deixar eles entrarem!

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Sussurros Através das Paredes

É o começo do meu semestre na faculdade e eu tô ficando na casa de um cara chamado Elijah. Não devia chamar de “cara” – ele tem um ano a mais que eu. Parecia um sujeito bem normal. Disse que era cristão, e eu não tinha problema nenhum com isso. Nunca tentou enfiar religião goela abaixo, o que eu curtia e respeitava. Em troca, eu rezava a bênção na mesa quando a gente dividia as refeições. No geral, não era um colega de quarto ruim.

Mas, durante as férias de inverno do semestre, eu me remexia inquieto na cama, os olhos saltando pros números brilhantes do meu relógio: 3h07 da manhã… Eu preferia mil vezes ter ficado acordado até as 3h do que acordar às 3h. Só fiquei lá deitado, torcendo pra que o sono voltasse a me invadir os ossos. Nunca voltou. As paredes pareciam prender a respiração, ouvindo os sussurros suaves que vinham do outro quarto. Elijah. Virei pro lado, enfiei a cabeça no travesseiro tentando abafar o silêncio ensurdecedor da noite misturado com aquelas canções de coral esquisitas que ele cantarolava. Normalmente ele recitava versículos da Bíblia ou orações aleatórias, mas as músicas cantaroladas eram raras e sempre me deixavam arrepiado.

A ansiedade cravou as garras tão fundo no meu estômago naquela noite que achei que ia vomitar. O desconforto pairava no ar. Toda noite, aquele psicopata do caralho voltava de sei lá onde, arrastando terra e murmurando orações crípticas. Já tava mais irritante do que qualquer outra coisa. Fazia semanas que eu não pregava o olho direito por causa daquele sussurro filho da puta.

Porra, nem sei como me meti nessa merda. Claro, sou um estudante universitário quebrado e precisava desesperadamente de um teto… Mendigo não escolhe, né?

Ultimamente, ele tem trazido objetos manchados de lama – penas tingidas, cruzes de madeira grosseiras e páginas rasgadas e úmidas da Bíblia – que parecem se multiplicar toda vez que eu olho pra coleção. O nascer do sol não trazia respostas, só mais perguntas. Nunca perguntei nada. Tem gente que tem hobbies esquisitos e não é como se ele estivesse machucando alguém.

Continuei resistindo à vontade de confrontar o Elijah. Tinha medo do que poderia desabar se eu abrisse a boca. O pensamento ficava ali: o que ele tá fazendo de verdade com aquelas coisas?

Mas a curiosidade cravou as garras compridas nas dobras mais profundas do meu cérebro. A falta de respostas pras perguntas que eu nem fazia virou insuportável e acabou me consumindo.

Numa noite, decidi ficar acordado, de ouvido colado pro barulhinho característico dos pés arrastando. Devagar, e com o cu na mão, rastejei até a porta do meu quarto, que separava meu canto do resto da casa. O coração disparou quando entreabri a porta e espiei pro quarto mal iluminado, sombras dançando com a luz de uma única vela tremeluzente. Meu colega de quarto, Elijah, estava ajoelhado no meio da coleção bizarra, murmurando versículos com uma intensidade frenética. Os olhos arregalados de um fervor que me congelou no lugar.

Limpei a garganta de leve, o suficiente pra quebrar o encanto sem assustar. Minha curiosidade rompendo as amarras do desconforto.

“O que você tá fazendo?” perguntei, voz baixa no silêncio opressivo.

Elijah encarou meus olhos, uma calma sobrenatural no olhar, seguida de uma pausa desconfortavelmente longa.

“Construindo uma ponte entre o céu e a terra”, respondeu como se isso explicasse tudo.

Hesitante, saí do quarto, cruzando o limiar pro santuário de segredos. “Por que os objetos estranhos…?” insisti, olhando pra eles com uma mistura de fascínio e pavor.

Elijah inclinou a cabeça, como se tentasse enxergar uma verdade que eu não via. “Ferramentas”, entoou, “pra guiar os perdidos e prender os caídos.”

O ar ficou mais pesado, carregado de algo intangível que parecia vibrar entre a gente. Hesitei de novo, inquieto mas intrigado com a resposta críptica. “…e quem você tá guiando? Quem você prende?” sussurrei, precisando entender. Morrendo de vontade de entender um pouco dos comportamentos bizarros do meu colega de quarto. Maldita essa minha necessidade de saber tudo, por que eu tenho que ser tão enxerido?

O sorriso do Elijah era enigmático, insondável. “Aqueles que vagam nas trevas”, foi tudo o que deu, os dedos deslizando por uma das cruzes de madeira.

Estremeci sem querer, as palavras mandando um calafrio descer pela espinha. “Que trevas?” insisti, feito idiota, impulsionado por uma mistura de terror e curiosidade mórbida.

Os olhos do Elijah brilhavam de intensidade. “Eles estão ao nosso redor. Invisíveis, mas perto”, sussurrou, a voz tanto um cântico quanto um aviso.

Vacilei, atordoado com a realidade e a loucura se sobrepondo. Queria correr, mas meus pés continuaram plantados, como se tivessem criado raízes no assoalho de madeira. “Você pelo menos… tá nos protegendo?” arrisquei, olhando pros itens sinistros espalhados sob a nova luz.

Elijah assentiu, fechando os olhos como em transe. “De jeitos que você nem imagina”, garantiu. Por algum motivo, aquilo soou qualquer coisa menos tranquilizador.

Algo mudou no ar, frio e ofegante, sussurrando segredos sombrios demais pra compartilhar. Meu olhar foi atraído pra uma boneca manchada de lama no meio daquele monte macabro. Os olhos dela reluziam sob a luz da vela, parecendo vivos. Tremendo, dei um passo em direção à boneca pra ver melhor, o quarto pulsando com uma energia invisível, uma força tão antiga quanto maligna. De repente, uma sombra disparou pela parede, sem pertencer a nenhum de nós.

Recuei de supetão, o coração martelando contra as costelas como um pássaro preso. A sombra se contorcia de forma antinatural, inchando e comprimindo como se testasse os limites deste mundo.

“Você tá vendo agora?” A voz do Elijah vagou num zumbido grave, ressonante e solene.

Assenti, a garganta seca. Eu via e queria não ter visto. Fala sério, cético virando crente na marra.

O ambiente estalou com eletricidade, denso com a presença de algo invisível mas inegavelmente poderoso.

“O que eles querem?” consegui perguntar, quase inaudível, sentindo os pelos da nuca se eriçarem.

Os olhos do Elijah continuavam fechados, as mãos unidas em súplica fervorosa. “Buscam o que todos os andarilhos desejam: salvação”, murmurou, as palavras pingando uma devoção perturbadora.

Engoli em seco, o peso da revelação me esmagando. Agora eu entendia, pelo menos um pedaço do quadro torto pintado pelos rituais bizarros e falas crípticas do meu colega de quarto. Mas que preço essa salvação ia cobrar, e quem, de fato, estava sendo salvo?

De repente, Elijah falou, arrancando-me dos pensamentos: “A porta tem que se abrir”, confessou, a voz como correntes de seda, prendendo mas suave. O desespero arranhou minhas entranhas, uma avalanche de pavor soterrando cada pensamento. Achei que ia botar o jantar pra fora.

“Não dá pra impedir?” implorei, procurando nos olhos fervorosos do meu colega de quarto um pingo de humanidade, um lampejo de redenção. Mas só vi devoção desconectada de qualquer noção moral.

Elijah balançou a cabeça, uma tristeza resignada piscando rápido antes de sumir. “Não cabe a nós parar”, respondeu, cada palavra um sino pesado. Lá fora, o vento uivava, ecoando o tumulto dentro da minha cabeça. Me sentia preso, um rato numa maquinação divina distorcida, além do meu controle ou compreensão.

“O que acontece quando a porta abrir?” sussurrei, temendo a resposta mas incapaz de fugir daquela dança macabra.

“Eles vêm”, Elijah respondeu, olhos distantes, vendo horrores que deviam ficar invisíveis.
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Escritor do gênero do Terror e Poeta, Autista de Suporte 2 e apaixonado por Pokémon

Depois da minha cirurgia nos olhos, eu não aguento mais olhar pra minha família...

Tô escrevendo isso do meu notebook, enfiado no armário com a porta barricada pela minha escrivaninha e pela cômoda. Dá pra ouvir eles do lad...