quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Toda vez que durmo, vejo pessoas sendo massacradas

Quase não quero mais dormir. Estou tão exausto que só penso em morrer. Lembro dos bons tempos. Minha cabeça no travesseiro depois de um banho quente. O sono vindo quase instantaneamente.

Sempre tive esse talento. Cheguei a me gabar disso, em outra época.

Agora, é o meu inferno. Especialmente agora, tentando ficar acordado. Tentando adiar o inevitável. Se eu me deitar, apago na hora.

Por que isso começou? Que se dane, eu não sei. Só quero que acabe. Não uso eletrônicos antes de dormir. Nada de telas. Não como nada menos de uma hora antes de ir pra cama. Tomo banho todas as noites. Leio um livro. Algo chato, tipo filosofia ou sei lá o quê. Algo pra apagar as luzes. E, nossa, como elas apagam.

Em menos de uma hora, meus olhos começam a pesar, e agora me deito para dormir.

Eu costumava amar dormir. Fazia isso o tempo todo. Até durante o dia, tinha períodos de cochilos marcados e um horário fixo pra dormir à noite. Levo meu sono a sério, me processem. Na verdade, agora, só me matem.

Não são pesadelos. Sei o que você tá pensando, mas não são. Toda vez que acontece, estou lá. No segundo em que minha cabeça toca o abraço gostoso do travesseiro, os demônios começam a aquecer os tridentes pra me atormentar a noite toda.

E, de repente, é como se eu estivesse acordado de novo. Estou sentado no sofá de alguém, alguém real. Na mesa de jantar de alguém, alguém real. Na cama com eles, de verdade. Perto demais pro meu gosto, de verdade. Observando.

E é diferente a cada vez. Alguém novo. Como se eu estivesse assistindo a um filme do qual faço parte, mas sou aquela mosca na parede que ninguém nota, mesmo estando bem na frente deles.

E todos estão sendo massacrados.

Lá estou eu, sentado na poltrona reclinável da casa de uma velhinha e um velhinho. O carpete é tão macio. A poltrona cheira a suor de idoso e queijo. As lâmpadas são todas velhas e amareladas. Iluminam o suficiente pra enxergar, mas não com clareza. À minha frente, uma TV. Ao meu lado, um sofá com uma senhora comendo amendoins de uma tigela, sem olhar pra TV. Ouço cada mastigada e estalo como se fossem engrenagens triturando. Vejo e ouço tudo em 4D. O marido dela está ao lado, encarando a televisão, o pé batendo no chão antes de ele se levantar.

Ele resmunga, com a voz rouca: “Vou pegar um cigarro.”

“Isso vai te matar, sabia?”, diz a velhinha.

Tem uma porta à esquerda da TV que não paro de olhar. Uma daquelas portas de correr que entram na parede. Está totalmente aberta. A escuridão aberta boceja como a boca de um blasfemo.

Porque o que vem de lá é profano.

O velho é jogado contra a parede do outro lado. Ainda não o vejo, mas sei o que está acontecendo pelo barulho. Ele cai no chão, convulsionando violentamente, batendo em tudo que é quebrável na sala. A esposa ao lado dele, gritando. Amendoins e cigarros voando por aí. Eu, incapaz de me mover, e ele finalmente para. Ele olha pra esposa uma última vez.

“Por favor, Edith. Só me beije mais uma vez…”

Confusa e assustada, ela o faz. Eles se abraçam, e os lábios se unem. O som de carne molhada se chocando, saliva escorrendo pelos rostos, línguas fazendo um aperto de mãos secreto. A mão dele ainda segurando o maço de cigarros. A esposa limpa a boca e olha pra ele.

“Querido… o que foi isso?”

Foi quando o rosto dele se abriu.

Eu trabalhava numa criação de pombos. Vendíamos as aves pra fazendas e acampamentos de caça, pra treinar cães. Não sei se você já viu um filhote de pombo natimorto dentro do ovo, depois que você puxa a camada de carne e vê ele lá, todo vermelho e amontoado, como um verme deformado encharcado de grenadine e salpicado com lascas de madeira. Era mais ou menos assim que parecia.

Aconteceu em, no máximo, cinco segundos. Toda a pele e os ossos do rosto dele se abriram. Como uma pupila se dilatando ao máximo. Só que dentro havia algo como lama vermelha misturada com carne, que caiu direto no rosto dela e na boca ainda aberta.

Um último beijo de despedida.

A mulher se contorcendo e se debatendo de nojo. Cuspindo, tossindo, engasgando. Eu desejando poder fazer o mesmo. Ela se arrasta, o rosto rosado virando de um lado pro outro, procurando um agressor. Fazendo um gemido baixo, como o de uma mula, repetidamente. Recuando, recuando, recuando. Ela não viu a mesinha de centro e cai de lado. Ouço um estalo audível e um suspiro raso.

E então, apago.

Como o fade-out de uma cena de filme, as cortinas se fecham, e sou puxado pra uma escuridão turva, de volta a algo como o sono. O resto da noite sem interrupções.

Agora me deito para dormir.

Mas não é um sono tranquilo. É um sono longo, atormentado, suado, quente, que me faz acordar sentindo como se tivesse dormido por dias e com uma enxaqueca que faria um padre botar uns trocados no pote de palavrões.

Revirando o cérebro. Dizendo a mim mesmo que foi um sonho. Ainda sentindo o cheiro daquele filhote de pombo quente e se contorcendo.

Tomo banho toda manhã também. Não só por causa do suor, da enxaqueca e da urina, mas também do sangue. Minhas narinas parecem ter sido perfuradas por um lápis Ticonderoga até a letra R.

Não, não bati o rosto. Não, não estou doente. Não, não vou ao maldito médico. Não tenho plano de saúde e, literalmente, não posso pagar por isso.

Toda manhã é assim. O cheiro de órgãos recém-abertos nunca vai embora. Um cheiro quente, ardido. Fica pior quanto mais isso acontece. Como se o cheiro estivesse apodrecendo nas minhas vias respiratórias, e a cada manhã, uma nova camada é cuidadosamente aplicada. Dói pra respirar, pra comer, pra engolir, tossir, espirrar. As bordas do meu nariz estão cheias de cascas de tanto limpar as gotas, rasgando a pele a cada vez.

Toda noite é a mesma coisa, mas diferente.

Dessa vez, é uma esposa e filhos encolhidos num canto enquanto o pai é espancado e mutilado na frente deles por um invasor que nenhum de nós consegue ver. Ele gritando, repetidamente:

“Me desculpe! Me desculpe! Me desculpe! Não consigo evitar—”

Enquanto isso, eu fico pendurado com uma mão no ventilador de teto. Só apreciando a vista.

Em outra, estou aos pés da cama de alguém, na posição de sapo. Os pés deles pra fora do cobertor, começando a convulsionar silenciosamente, correndo no lugar por um instante, como um porco baleado, enquanto uma voz vem debaixo da porta.

“Tom?”

Em resposta, o volume na outra ponta da cama começa a manchar, se espalhar, vazar. Um rio de sangue escorre dos dois lados, e um pouco respinga em mim.

Deveria ter mantido os pés debaixo do cobertor.

E de novo, agora estou em cima de uma cômoda, olhando enquanto um homem abre as gavetas. Ele pega uma caixa. Um envelope. Muito dinheiro. Mete a mão no bolso e coloca outra pilha de dinheiro no envelope. Uma mulher se junta a ele e olha dentro, impressionada. Eles riem e falam sobre o que vão fazer com o dinheiro antes de pararem e olharem pra baixo, cada um pro próprio peito, e começarem a se despir. Algo está se movendo. Algo dentro deles. Eles gritam, choram, as costelas explodem pra fora enquanto caem de cara no chão, mortos, e as costelas batem de cada lado como pequenas asas.

Elas não voam muito longe. As asinhas os elevam ligeiramente, mas os braços e rostos moles só arrastam no chão. Eles voam em círculos, em direções opostas, ao redor do envelope e da pilha de dinheiro espalhada, deixando um rastro duplo de sangue como lesmas.

E sou sempre eu que tenho que ver.

Já faz três dias que não durmo. Tento entender isso. Não quero que aconteça de novo. Não quero ver de novo. Não assisto às notícias. Não saio mais de casa.

Não quero dormir. Mas está tão tarde, e estou tão cansado. Preciso. Não entendo. Preciso de um drinque. De muitos drinques.

Talvez essa seja a cura. Vou ficar bêbado. Bêbado demais pra isso acontecer. Só apagar até amanhã. Como nos velhos tempos.

Minha mão na garrafa. Levanto pra tomar um gole longo e glorioso. Mas, de repente, minha cabeça dói de novo, muito. Uma enxaqueca rasgando meu cérebro como uma agulha quente de veneno, e meu nariz começa a sangrar.

Não de novo.

Perco o equilíbrio e desabo no chão, chorando, nu e gritando como no dia em que nasci.

E sinto o leve cócegas de uma mosca pousando no meu pé.

A vingança de Downfall

"Vai, é só uma foto," o cara riu ao telefone, a voz dele escorregando pelo aparelho como uma cobra rastejando na grama.

"Mas não é real," ela protestou, a voz trêmula, os olhos grudados na tela que mostrava o rosto dela sobreposto a um corpo nu. O medo de que a mentira se espalhasse como fogo era mais do que ela podia suportar.

A ligação caiu, deixando apenas o eco da risada cruel dele ressoando em seus ouvidos. Ela jogou o celular contra a parede, vendo-o se espatifar em pedaços de plástico e vidro. Seus olhos se estreitaram em fendas de fúria, o quarto de repente pequeno demais para conter a raiva que fervia dentro dela.

Alguém bateu à porta, o som invadindo o caos dela como uma pancada. Ela respirou fundo, o pulso latejando nas têmporas, e se levantou lentamente da cama. As batidas ficaram mais insistentes, ecoando pelo apartamento vazio como um tambor anunciando o fim. Seus pés descalços deslizaram silenciosamente pelo chão frio de madeira, o coração acelerando a cada passo.

Espiando pelo olho mágico, ela viu um homem no corredor, o rosto carregado de irritação. "Faz menos barulho, tá?" ele gritou, a voz rouca de sono. "Tem gente querendo dormir por aqui."

A mão dela apertou a maçaneta até os nós dos dedos ficarem brancos. A raiva dentro dela se aguçava, ganhando foco. Ela sentiu o desejo de sangue crescer, a vontade de fazer aquele homem pagar pelos pecados do chantagista. A mão deslizou da maçaneta para o trinco, girando-o com uma calma surpreendente. A porta se abriu, revelando o vizinho desavisado, cujos olhos se arregalaram de choque quando ela saiu para o corredor.

Com um rosnado que gelou a espinha dele, ela avançou. Suas unhas se transformaram em garras, cravando-se no pescoço do homem enquanto ela o derrubava com uma força recém-descoberta. O som da garganta dele sendo rasgada era estranhamente satisfatório, o jato quente de sangue cobrindo o rosto dela enquanto ela absorvia a vida dele. O gosto metálico e doce era inebriante, saciando uma sede que ela nem sabia que tinha. Ela largou o corpo sem vida, o sangue se espalhando em uma poça vermelha sob ele, e parou por um momento para saborear o poder que pulsava em suas veias.

Seus olhos, antes cheios de medo e desespero, agora brilhavam com uma fome predatória. O chantagista, sem querer, a colocou em um caminho sombrio de vingança, e a cada gole de sangue, sua humanidade escorregava, revelando o monstro por baixo. A garota que antes estremecia ao ver um corte de papel agora se deleitava com a beleza visceral do derramamento de sangue. Ela vagava pelas ruas à noite, uma criatura de sombra e raiva, caçando aqueles que a tinham prejudicado.

O carteiro foi o primeiro. A rotina diária dele era simples, um caminho de inocência e ignorância que ela passou a invejar. Quando o amanhecer rastejou pelo horizonte, ele organizava as cartas e pacotes com uma facilidade praticada. Seus olhos se arregalaram de horror quando ela surgiu do beco, os olhos dela ardendo com uma luz feroz que parecia perfurar a alma.

Com uma velocidade que desafiava sua forma humana, ela o atacou, suas garras rasgando o tecido do uniforme dele, os gritos dele interrompidos pelo estalo dos dentes dela cravando na carne macia do pescoço. O calor do sangue encheu sua boca, uma sinfonia de sabores que parecia ressoar em seus ossos. Era uma mistura inebriante de medo e adrenalina, um néctar impossível de replicar. Ela sentiu o poder da força vital dele pulsando através dela, a essência dele se tornando dela, alimentando a fera que agora habitava sob sua pele.

Enquanto bebia das veias dele, ela sentiu uma sensação estranha, uma conexão se formando entre ela e o chantagista. As memórias dele inundaram sua mente, uma cacofonia de intenções malévolas e segredos sombrios. Ela viu o sorriso torcido no rosto dele ao enviar a foto, a emoção do poder que o percorria ao sentir o desespero dela. Sua raiva cresceu, uma fogueira de fúria que ameaçava consumi-la. Mas também trouxe clareza. Ela sabia onde ele estava, onde ele se escondia esse tempo todo. O endereço estava gravado em sua mente, um farol na escuridão que chamava o monstro que ela havia se tornado.

Com um último gole selvagem, ela soltou o corpo do carteiro e tomou as ruas, os olhos fixos no prêmio. O sol era apenas um sussurro no horizonte, um fio de luz que não conseguia banir as sombras que se tornaram suas aliadas. Ela entrou no carro, os movimentos precisos e calculados, a fome por vingança guiando cada ação. Ligou o motor, o ronronar uma canção de ninar para a fera dentro dela. O mundo lá fora acordava, alheio aos horrores que espreitavam suas ruas.

Seu destino era claro: a casa do chantagista. Ela a viu nas memórias do carteiro, uma casa suburbana comum com uma cerca branca, a própria imagem da inocência. Mas ela sabia a verdade. O diabo morava ali, escondido à vista de todos. Ela pisou fundo no acelerador, os pneus cantando enquanto ela disparava pelas ruas vazias, o gosto de sangue ainda persistindo em seus lábios.

Ao parar na calçada, ela vislumbrou a luz da manhã refletindo na cerca. Um arrepio de excitação percorreu sua espinha, misturando-se ao medo que ainda a envolvia como uma segunda pele. Ela saiu do carro, os olhos fixos na porta da frente. Chega de se esconder. Chega de ser vítima. Era hora de tomar o controle.

O chantagista a esperava, um sorriso arrogante estampado no rosto. Ela podia sentir a confiança dele, a crença de que era intocável. Mas ela havia mudado. O doce sabor do sangue a transformara, tornara-a mais do que ele jamais poderia imaginar. Seus dedos se fecharam em punhos enquanto ela marchava em direção a ele, o corpo vibrando de antecipação.

Com um rugido súbito, ela saltou, os dentes à mostra. A expressão dele passou de arrogante para chocada, e ele cambaleou para trás, procurando algo às costas. Um brilho de aço chamou a atenção dela, e ela percebeu tarde demais o que ele planejava. O cara sacou uma espingarda calibre 12, o cano apontado para o peito dela. "Você acha que pode simplesmente entrar aqui e arruinar minha vida?" ele gritou, a voz tremendo de raiva.

"Olhe para mim," ela rosnou, a voz um grunhido feral que parecia reverberar pelo ar ao redor. "Você fez isso. Você me transformou nisso." Seus olhos mudaram, não mais as suaves poças castanhas de antes, mas agora orbes de um vermelho ardente e puro. Seus dentes eram afiados e pontiagudos, suas unhas alongadas em garras. Ela deu um passo à frente, indiferente à arma apontada para ela.

O dedo do chantagista apertou o gatilho, a mão trêmula. Ele podia ver a loucura no olhar dela, a raiva desenfreada que a transformara nessa... coisa. Ele engoliu em seco, tentando convencer-se de que era apenas o medo pregando peças. Ele tinha que fazer isso. Tinha que se proteger.

Com uma explosão repentina de velocidade, apesar de seu tremor, ele puxou o gatilho. O tiro ecoou pelo bairro silencioso, o som como um trovão na calmaria. O impacto acertou o peito dela em cheio, jogando-a alguns passos para trás. Mas, em vez de desabar como ele esperava, ela apenas rosnou mais alto, a dor parecendo alimentar sua fúria.

O corpo dela convulsionou, os músculos se movendo de uma forma que parecia impossível. O impacto da espingarda rasgou suas roupas e sua carne, deixando uma ferida aberta que deveria ser fatal. Mas, enquanto ele observava horrorizado, as bordas da ferida começaram a se fechar, a pele e os músculos se recompondo com uma eficiência grotesca. Seus olhos nunca deixaram os dele, as chamas vermelhas brilhando mais intensas do que nunca.

O chantagista recuou, o aperto na espingarda afrouxando. "O que... o que é você?" ele sussurrou, a voz pouco mais que um coaxar.

"Sua ruína," ela sibilou, avançando com uma graça predatória que parecia desafiar a agonia de seu corpo em regeneração. O cheiro de pólvora e sangue encheu suas narinas, uma mistura potente que só aguçava sua fome.

Ele tentou recuar, as pernas traiçoeiras virando gelatina sob seu peso trêmulo. Seus olhos estavam grudados na criatura aterrorizante que um dia fora uma garota, uma criatura que agora o perseguia com um propósito obstinado. A espingarda caiu no chão, inútil em suas mãos trêmulas. "Por favor," ele implorou, "eu não sabia."

A criatura que fora a garota parou de avançar, o peito arfando com o esforço da transformação lecture. Por um breve momento, uma faísca de dúvida dançou em suas feições. Será que poderia poupar esse homem patético? Será que encontraria dentro de si a capacidade de oferecer piedade? A fome rugia dentro dela, exigindo mais sangue, mais poder. Mas algo mais crescia, algo que sussurrava sobre compaixão, sobre a garota que ela fora.

Os olhos do chantagista procuraram os dela, o desespero gravado em cada linha de seu rosto. Ele podia ver a batalha dentro dela, a humanidade lutando para retomar o controle da fera. "Me desculpe," ele choramingou, a voz falhando. "Por favor, eu retiro tudo. Faço qualquer coisa."

O olhar dela não vacilou, o vermelho em seus olhos suavizando ligeiramente enquanto considerava as palavras dele. Então, com um rosnado súbito e selvagem, ela avançou. Suas garras rasgaram o peito dele, cortando a camisa e a carne como se fossem papel. Ele gritou, os olhos revirando na cabeça enquanto a dor atravessava seu corpo como um raio. Ela sentiu o jato quente de sangue contra a mão e soube que acertara o alvo.

A criatura dentro dela se deleitava com o medo e a dor que ela infligia, incitando-a a ir além, a arrancar o coração dele e se banquetear. Mas a garota que ela fora sussurrava sobre piedade e a santidade da vida. Por um momento, ela ficou dividida, as duas metades de sua alma em guerra. Então, ela tomou sua decisão. Prometera a si mesma eliminar cada pessoa má, equilibrar as escalas da justiça à sua maneira distorcida. E ele a machucara, tentara destruí-la. O monstro venceu, sua fome grande demais para ser negada.

Fim. 

O nome da criatura, aliás, é Downfall. 

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Acho que meu bebê quer me matar

Sou jovem, admito, mas isso nunca apagou o desejo insistente de formar uma família que ecoava sem parar no fundo da minha mente. Então, quando cheguei do trabalho há alguns meses e encontrei um bebê na porta de casa, não fiquei tão assustada quanto deveria. Talvez as coisas pudessem ter sido diferentes se eu tivesse ficado.

Enquanto caminhava do trabalho para casa, o sol quente do verão queimava minhas costas. Eu mal podia esperar para entrar e sentir o ar fresco. Suspirei ao enfiar a chave na fechadura enferrujada e velha do meu prédio.

“Droga”, resmunguei, irritada.

A única coisa que aquela fechadura fazia bem era impedir os moradores de entrar. Minha chave nunca deixava de travar, tornando tudo mais complicado do que precisava ser. Subi os quatro degraus até meu apartamento pisando firme e abri a próxima porta com um empurrão.

De cara, vi o que parecia ser uma caixa de entrega da Amazon esperando por mim.

“Hmm, deve ser para um dos meninos”, falei alto. Os “meninos” eram meu namorado e o irmão dele. Eu sabia que não estava esperando nenhuma encomenda, então eles eram a única explicação lógica. Mas, ao me aproximar, percebi que a caixa estava rasgada. “Não dá pra ter nada de bom por aqui, né? Droga!” exclamei para mim mesma. Claro que alguém tinha mexido na nossa correspondência. Claro!

Fui pegar a caixa com raiva, mas então notei pequenos olhos me encarando de dentro dela. Minha respiração parou, e eu recuei, assustada. Abri bem os olhos e olhei de novo para a caixa. E, como eu suspeitava, havia um bebê ali dentro. Olhinhos castanhos me observavam com curiosidade, segurando o que parecia ser um mordedor.

Confesso que meu primeiro impulso foi sair correndo e chamar a polícia, mas algo naqueles olhinhos me prendeu. Era como se eu estivesse hipnotizada. Antes que pudesse processar o que estava acontecendo, já tinha pegado o bebê e estava sentada no sofá.

Não sei dizer quanto tempo fiquei ali, mas, quando saí daquele transe, já era noite, e a voz do meu namorado me questionava com rispidez.

“… tá me ouvindo?! De quem é esse bebê?” ele disparou.

Olhei para ele, franzindo a testa.

“Por que você tá falando comigo assim?” perguntei.

“Faz uns cinco minutos que te pergunto de quem é esse bebê, e você me ignora toda vez”, ele disse, como se fosse óbvio.

“Ah, eu…”

“Não importa”, ele me interrompeu. “Só responde a pergunta.”

“Não sei ao certo. Ele estava na nossa porta quando cheguei”, murmurei.

“ELE? ELE? Você chega do trabalho às três e meia todo dia. Agora são oito e quarenta e cinco, e você tá chamando o bebê de ‘ele’?”

“Do que você tá falando?” retruquei, na defensiva. “Eu só sentei agora.”

Olhei de novo para o bebê, e, estranhamente, ele ainda estava me encarando.

Ouvi meu namorado bufar. “Tá, sei. Só tô dizendo que já se passaram cinco horas, e você nem sabe se é menino ou menina. Melhor ainda: por que não chamou a polícia?”

Essa era uma boa pergunta. Uma ótima pergunta, aliás. Primeiro, eu nem tinha percebido que estava sentada há tanto tempo. Segundo, algo lá no fundo me dizia que não deveria envolver a polícia.

“Não sei. Talvez a gente deva esperar até amanhã. Foi um dia longo. Acho que o bebê só precisa de comida e uma boa noite de sono.”

Ele me olhou com desconfiança, como se estivesse me chamando de louca sem dizer as palavras.

“Não me parece uma boa ideia”, disse, revirando os olhos.

Abri a boca para discutir, mas ele me cortou com um suspiro longo e pesado.

“Tá, você tá certa. Tô exausto. Exausto demais, e a ideia de lidar com polícia e assistência social hoje à noite é simplesmente pesada demais pra mim”, admitiu. “Mas, mesmo assim, a gente não tem nada aqui pra cuidar de um bebê até amanhã.”

Olhei para ele, percebendo que ele estava completamente certo. Não tínhamos nem um lugar decente para o bebê dormir, muito menos algo para alimentá-lo.

Assenti lentamente, ainda com os olhos fixos no bebê. “Vou… vou dar um jeito”, murmurei.

O bebê não tinha emitido nenhum som desde que o peguei. Sem choro, sem balbucios — apenas aqueles olhos escuros e fixos em mim. Isso deveria ter me incomodado, mas, por algum motivo… não incomodava. Naquela noite, demos um jeito. Encontrei uma camiseta velha para enrolar o bebê e o mantive ao meu lado no sofá. Meu namorado resmungou sobre a situação toda antes de ir para a cama, mas eu fiquei acordada, observando o peito do bebê subir e descer. Em algum momento, devo ter pegado no sono.

Quando acordei, o bebê ainda estava na mesma posição, olhos bem abertos, me encarando. Não era aquele olhar sonolento que bebês costumam ter — não. Era como se ele tivesse ficado acordado a noite toda, esperando.

Os dias se misturaram depois disso. Compramos fórmula, fraldas, um berço. Meu namorado continuava perguntando se devíamos chamar alguém, mas eu sempre arranjava uma desculpa para adiar. “Só até encontrarmos os pais”, eu dizia. “Só até as coisas se acalmarem.” Semanas passaram. Ninguém veio procurá-lo. Foi quando comecei a notar coisas estranhas. O bebê nunca chorava. Nunca. Nem quando estava com fome, nem quando acordava no meio da noite. Ele apenas ficava lá, olhando. Às vezes, eu o encontrava encarando o canto do quarto, os olhos acompanhando algo que não estava lá.

Uma manhã, caminhei pelo apartamento e congelei. Meu namorado tinha sumido — sem bilhete, sem explicação. O bebê estava na cadeirinha, as mãozinhas segurando um relógio do meu namorado. Disse a mim mesma que era coincidência. Pessoas vão embora. Relógios se perdem. Mas então o irmão dele parou de aparecer. Amigos pararam de responder minhas ligações. Meu chefe disse que eu tinha pedido demissão semanas antes, mas eu não me lembrava de ter feito isso.

Éramos só eu e o bebê.

O apartamento ficava mais silencioso a cada dia, como se o mundo lá fora estivesse se afastando cada vez mais. Às vezes, eu acordava e encontrava o bebê de pé no berço — não cambaleando como um bebê normal, mas perfeitamente imóvel, perfeitamente equilibrado, com os olhos cravados em mim.

Ontem à noite, acordei com o som de um sussurro. Não sei como, mas sabia que era meu nome.

Hoje de manhã, olhei no espelho e percebi que não conseguia lembrar como era minha vida antes da caixa. Não me lembro do rosto do meu namorado. Não me lembro das vozes dos meus amigos. Não me lembro se já morei em outro lugar. Mas o bebê ainda está aqui. E agora ele está sorrindo.

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Eu sou o Deus de uma cidade que não deveria existir

Aqui, ninguém pisca.

Desde que me lembro, eles só me encaram. Não uns aos outros, apenas a mim. Eles me olham como se eu fosse o último nascer do sol que veriam. Como se, ao desviar o olhar, eu pudesse desaparecer. Não importa o que eu faça, não consigo arrancar nenhuma reação deles. Já causei escândalos, joguei coisas pela sala, gritei as palavras mais vulgares que podia imaginar a um palmo de seus rostos. Eles apenas ficam lá, sorrindo, quietos, imóveis.

Eu teria enlouquecido se não fosse pelo xerife. Ou talvez ele seja o prefeito, não sei ao certo. Tudo o que sei é que ele foi a única pessoa na cidade que falava comigo. Ele me criou, me ensinou a ler, escrever, cozinhar, sobreviver. Ele me disse que a cidade era minha, não só a terra, mas os prédios, tudo.

Nunca tive uma casa. Não precisava de uma. Eu podia entrar em qualquer prédio, casa, loja, lanchonete, pegar comida, roupas, usar o banheiro. Ninguém nunca me impedia.

A população parece estar fixa em cerca de 200 pessoas desde que me entendo por gente. A maioria dos prédios na cidade é de tijolo rústico, manchado pelo sol. Há uma floresta que cerca a cidade e uma única estrada que, na verdade, não parece levar a lugar algum.

Acabei me acostumando com essa vida. Não havia motivo para tentar sair, de qualquer forma. Tentei caminhar em todas as direções, e todas me levaram de volta à cidade. Peguei um cavalo de um dos moradores, junto com comida para uma semana. Fui marcando as árvores para me orientar, tomando meu tempo. Não importava o que eu fizesse, sempre acabava voltando para a cidade. Fiquei tão desesperado que até tentei andar de costas, pensando que, se pudesse manter a cidade à vista, ela não me enganaria para voltar. Não funcionou.

Fui à biblioteca para ver se encontrava registros antigos da cidade. Mas metade dos livros estava sem capa. A maioria tinha páginas amareladas e deformadas. Os calendários eram ainda piores: todos tinham apenas os meses e dias, sem ano, sem feriados, sem história.

Às vezes, juro que vi o mesmo padrão de nuvens se repetir no céu.

Meu Deus, como eu queria que houvesse um relógio funcionando nesta cidade.

Já perguntei ao xerife sobre a cidade, sobre mim. Quem eram meus pais, meu aniversário, de onde vim. Ele sempre me olhava por um tempo e dava a mesma resposta:

“Você sempre esteve aqui.” E isso era tudo.

Quando eu era mais jovem, comecei um pequeno incêndio dentro da casa de um dos moradores. Só queria alguma reação deles. Eles não gritaram. Não se moveram. Um homem ficou parado enquanto o fogo subia lentamente por sua perna, as roupas queimando enquanto a pele formava bolhas.

Eu congelei. O xerife entrou correndo logo depois, me tirou da casa primeiro e me mandou esperar na biblioteca, depois voltou para apagar o fogo.

Fiquei sentado na biblioteca, com o estômago revirado. “Por que eles não se mexeram? Por que não disseram nada ou tentaram me parar? Ele sabe que eu não quis fazer nada de ruim, né? Tenho certeza de que ele também fica entediado sendo a única outra pessoa na cidade que parece consciente.” A porta se abriu com um estrondo. Mal consegui dizer duas palavras antes que ele me desse um tapa.

“Você tá louco?!” ele disse.

“E-eu sinto muito, eu só queria—”

“Você poderia ter matado eles! Não importa o que você quer. Escuta, garoto, seu trabalho é fazer o certo por essas pessoas, não importa o custo.”

“O que isso quer dizer?!” retruquei.

“Ninguém aqui faz nada além de me encarar. Não tenho nada pra fazer aqui. Queria poder sair dessa cidade e deixar todo mundo pra trás.”

Assim que essas palavras saíram da minha boca, vi o rosto do xerife mudar de raiva para traição. Ele não disse mais nada e saiu da biblioteca. Não falou comigo pelo próximo mês. Foi o pior mês da minha vida.

Não acredito que esqueci disso. Ainda bem que me lembro agora.

Ontem, eu estava jantando na lanchonete quando ouvi algo que nunca tinha ouvido antes. Um ronco baixo e um chiado mecânico agudo. Era um carro. Eu só tinha lido sobre eles. Esse era velho, enferrujado, soltando fumaça preta, deixando um cheiro de borracha queimada no ar. Ele entrou lentamente nos arredores da cidade, como se tentasse não ser notado. Fiquei hipnotizado pelo carro. A fachada da minha vida conformada rachando enquanto pensamentos de escapar dessa cidade borbulhavam. Algo do exterior. Talvez uma saída.

Então, olhei para os moradores na lanchonete, atônito, pois, pela primeira vez, eles não estavam me encarando. E, pela primeira vez na minha vida…

Eles olharam com ódio.
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Escritor do gênero do Terror e Poeta, Autista de Suporte 2 e apaixonado por Pokémon

Toda vez que durmo, vejo pessoas sendo massacradas

Quase não quero mais dormir. Estou tão exausto que só penso em morrer. Lembro dos bons tempos. Minha cabeça no travesseiro depois de um banh...