Tô escrevendo isso do meu notebook, enfiado no armário com a porta barricada pela minha escrivaninha e pela cômoda. Dá pra ouvir eles do lado de fora do quarto. As vozes tão calmas, tão carinhosas. Mas tem outros sons também. E são esses sons que tão me mantendo aqui dentro.
Tudo começou há três meses. Minha vida inteira foi um borrão literal. Nasci com um astigmatismo tão foda que o oftalmologista brincava que eu via o mundo em foco suave permanente. Eu não achava meus óculos na mesinha de cabeceira sem tatear primeiro que nem um cego. Lentes de contato eram um ritual diário irritante pra caralho. Eu tinha 24 anos, um trampo decente, e finalmente juntei grana suficiente. O LASIK era meu passaporte pra uma vida nova. Uma vida nítida.
A consulta foi estéril e tranquilizadora. O médico era um cara mais velho, afiado, com um foco intenso, quase predatório. Ele tinha um jeito de te olhar, como se visse além da superfície dos seus olhos. Falou de "erros refrativos" e "retalhos corneanos", num tom calmo e autoritário que lavou qualquer ansiedade que ainda tivesse. Mencionou uma técnica nova, meio experimental, que ele tava pioneirando. Disse que era mais precisa, oferecendo um nível de clareza "sem precedentes". Afirmou que corrigia distorções atmosféricas e até flutuações de luz que procedimentos padrão nem tocavam. Eu comprei na hora. Queria o melhor. Queria ver tudo. Puta que pariu, que idiota eu fui.
A cirurgia em si foi tão esquisita e impessoal quanto você imagina. Cheiro de antisséptico, o metal frio do apoio de cabeça, o Valium que me deram deixando meus membros parecendo de outra pessoa. Lembro da pressão no globo ocular, do cheiro de queimado que dizem que é só o laser, e da voz calma do médico narrando tudo. "Um retalho perfeito. Agora vamos remodelar. Só mais uns segundos." Aí escuridão, seguida da aplicação suave de bandagens e protetores nos olhos.
A recuperação foi a parte mais foda. Duas semanas de escuridão total. Fiquei completamente dependente da minha família. Minha mãe, meu pai, minha irmã caçula. Eles foram incríveis. Me guiavam pela casa pelo braço, garantiam que eu não esbarrasse em nada. Minha mãe cozinhava minhas comidas favoritas, o cheiro do ensopado dela ou do frango assado enchendo a casa. Sentava comigo, me dava na boca pra eu não fazer bagunça. A voz dela era uma presença constante, reconfortante. "Só mais um pouquinho, amorzinho. Você precisa manter as forças."
Meu pai lia pra mim por horas. Páginas de esportes, romances de fantasia, qualquer coisa pra passar o tempo. A voz dele, grave e retumbante, era um conforto no vazio preto que meu mundo tinha virado. Minha irmã trocava a música, botava podcasts, e só ficava ali comigo, a presença dela uma garantia silenciosa. Eles eram a família perfeita, amorosa, e eu tava consumido por uma gratidão profunda pra caralho. Mal podia esperar pra ver os rostos deles de novo, ver de verdade, com meus olhos novos e perfeitos.
O dia de tirar as bandagens era pra ser uma festa. Fomos todos pra clínica juntos. A enfermeira foi gentil ao cortar a fita e desenrolar devagar a gaze. Por um momento, com as bandagens fora mas os olhos ainda fechados, senti um tremor de empolgação pura, sem filtro.
"Tá bom", a enfermeira disse baixinho. "Abre devagar. A luz vai ser muito forte no começo."
Fiz o que ela mandou. Apertei as pálpebras, depois deixei elas abrirem tremendo.
A primeira coisa que notei foi a nitidez. Foi... violenta. Cada textura da sala pulava em cima de mim. Os microburacos no forro acústico do teto. As fibras individuais do uniforme azul da enfermeira. As rachadinhas minúsculas, quase invisíveis, no linóleo do chão. Era avassalador, uma onda gigante de informação visual que fazia meu cérebro doer. O médico tinha dito que seria assim. Hipersensibilidade. Disse que ia acalmar.
Pisquei, tentando focar. A enfermeira sorria pra mim. Parecia normal. Só uma mulher na casa dos quarenta com olhos gentis e um sorriso meio cansado. Aí virei pra minha família.
E meu mundo desabou.
É difícil descrever o que vi, porque minha mente se recusou a aceitar nos primeiros segundos. Era tipo um ponto cego cognitivo, um glitch visual. Minha mãe sorria, a boca se mexendo, falando meu nome. Mas o rosto dela... não era só o rosto dela. Fundido na linha do maxilar, subindo e contornando a bochecha esquerda, tinha outra coisa. Um saco pulsátil de carne cinza-rosada manchada, com veias roxas doentias. Dois tentáculos finos, tipo chicote, não mais grossos que uma minhoca, enrolados no lábio inferior dela, e enquanto ela falava, eles se contorciam e ajustavam, parecendo puxar os lábios pra formar um sorriso. A pele dela parecia esticada e fina onde encontrava esse... crescimento.
Desviei o olhar, o coração martelando nas costelas, e olhei pro meu pai. Ele me dava tapinhas no ombro, o rosto radiante de orgulho. Mas do peito dele, brotando debaixo da camisa de colarinho, tinha uma estrutura maior, mais complexa. Uma massa carnuda, com cara de fungo, que parecia ter se enterrado no esterno. Era estriada, quase como uma concha marinha grotesca, e brilhava com uma camada fina de umidade. Um apêndice grosso, tipo tubo, saía dela, sumindo debaixo do queixo e entrando na boca. Ele não tava falando; os sons vinham dele, mas o tubo carnudo vibrava com as palavras.
Senti a bile subir na garganta. Olhei pra minha irmã. Ela era a pior. Uma coisa tremeluzente, quase translúcida, drapejada na cabeça e nos ombros dela como um xale vivo. Sem traços, exceto por uma série de bexigas pulsáteis que desciam pela espinha. Os tentáculos dela tavam entrelaçados no cabelo, e dois maiores, mais grossos, tavam plugados direto nos cantos da boca, esticando os lábios num sorriso plácido permanente.
"O que achou?", a voz da minha mãe ronronou, mas a coisa na bochecha dela pulsava no ritmo das palavras. "Dá pra ver a gente direitinho?"
Eu não conseguia respirar. Não conseguia falar. Só ficava olhando, meus olhos novos e perfeitos captando cada detalhe horrível. O jeito que as coisas se moviam em simbiose com eles. O jeito que os corpos deles pareciam quase... secundários.
"Ele tá em choque", a voz do meu pai retumbou, o tubo no peito vibrando. "É muita coisa de uma vez."
Devo ter desmaiado, ou pelo menos apagado, porque a próxima coisa que lembro é de estar no carro voltando pra casa, a cabeça encostada no vidro frio da janela. Mantive os olhos fechados. Disse que a luz tava forte demais, que minha cabeça tava explodindo. Eles foram super compreensivos. Compraram total.
As semanas seguintes foram um pesadelo vivo. Fingi que meus olhos ainda tavam se ajustando, que eu tinha uma enxaqueca constante. Passava o máximo de tempo possível no quarto, no escuro. Mas não dava pra me esconder pra sempre. Eu precisava comer.
A primeira vez que minha mãe me trouxe uma bandeja de comida, quase gritei. Era o ensopado de carne famoso dela, que eu amava a vida inteira. O cheiro era o mesmo. Rico, saboroso, com um toque de alecrim. Mas o que vi no prato não era ensopado. Era uma tigela de lama grossa, vermelho-escura, quase preta. Se mexia. Pulsava num ritmo lento, como um órgão vivo. Flutuando na gororoba tinham coisinhas brancas, tipo larvas, se contorcendo devagar.
"Come, filho", ela disse, a voz quente, enquanto o parasita na bochecha tremia de expectativa. "Você precisa de forças."
Fiquei olhando a tigela, depois pra ela. Vi um dos tentáculos no rosto dela mergulhar na tigela, pegar uma colherada da lama se contorcendo, e enfiar na boca. Ela mastigou, engoliu, e sorriu pra mim.
Vomitei no banheiro por vinte minutos.
Aprendi a lidar. Levava a comida pro quarto, dava descarga, e dizia que tinha comido. Sobrevivia de barras de proteína e garrafas d'água que contrabandeava pro quarto e escondia. Mas a água... até a água tava errada. Quando eles me serviam um copo da torneira, não era transparente. Era um líquido viscoso, levemente avermelhado, tipo sangue bem diluído. Mas eles bebiam como se fosse nada. Enchiam o copo, e as coisas grudadas neles mergulhavam primeiro os apêndices espinhosos no copo, antes de deixar os hospedeiros beberem.
O mais assustador era como o resto era normal. Eu saía escondido de casa às vezes. Andava na rua, e todo mundo parecia... normal. O carteiro, as crianças brincando no parque, a mulher correndo com o cachorro. Eram só pessoas. Só a minha família. Eu tava enlouquecendo? Era algum tipo de alucinação rara, localizada, causada pela cirurgia? Um derrame? Um tumor no cérebro?
Comecei a observar eles. Observar de verdade. Notei que, quando achavam que eu não tava olhando, os movimentos ficavam menos... humanos. Meu pai sentava na poltrona, e a coisa fúngica no peito dele se abria de vez em quando, revelando um orifício escuro e escancarado que soltava um clique gutural baixo. Minha irmã às vezes ficava parada por horas, olhando pra parede, enquanto a coisa translúcida nas costas ondulava e tremeluzia, como se comunicasse com algo que eu não via.
Aí percebi que minha família nunca mastigava de verdade. As mandíbulas se mexiam, mas eram os apêndices das coisas grudadas neles que faziam o trabalho, empurrando a gororoba pulsátil pras bocas, onde era absorvida, não engolida.
O isolamento tava me esmagando. Eu tinha pavor da minha própria família. Os toques carinhosos pareciam sondagens de uma espécie alienígena. As palavras gentis eram uma imitação horrível. Precisava voltar pro médico. Ele tinha que saber o que tava acontecendo. Ele tinha feito isso comigo. Tinha que consertar.
Marquei uma consulta fingindo ser um check-up pós-operatório. Minha mãe se ofereceu pra me levar. Inventei uma desculpa sobre querer pegar ônibus, pra me sentir independente de novo. O olhar que ela me deu... não era o dela. Os olhos tavam plácidos, mas a coisa na bochecha pulsou uma vez, devagar, um gesto que parecia suspeita.
O hospital era um farol de normalidade. As recepcionistas, os pacientes na sala de espera, os outros médicos, todos humanos. Sem enfeites. Senti um alívio tão forte que quase chorei. Eu não tava louco. O mundo era normal. Algo só tava profundamente, existencialmente errado dentro da minha própria casa.
Quando cheguei no departamento de oftalmologia, pedi o médico que fez minha cirurgia. A recepcionista, uma mina jovem com cara de tédio, digitou no teclado por um momento.
"Desculpa", ela disse sem olhar pra cima. "Ele não trabalha mais aqui."
Meu sangue gelou. "O quê? Como assim? Eu vi ele há poucas semanas."
"Ele pediu demissão", ela disse, finalmente me olhando com um toque de irritação. "Tirou uma licença por tempo indeterminado. Nos disseram que saiu do país."
"Saiu do país? Pra onde? Tem como contactar ele? É uma emergência." Minha voz subia, cheia de um pânico que eu não controlava.
"Senhor, eu não tenho essa informação. Podemos marcar com outro médico se você tá com algum problema."
Um problema. Isso era um eufemismo do caralho pro que tava rolando comigo. Cambaleei pra trás do balcão, a mente girando. Ele sumiu. Meu único elo com o que aconteceu, minha única esperança de solução, evaporou. Eu tava sozinho nisso.
Ia saindo, derrotado, quando uma enfermeira mais velha arrumando um mostruário de folhetos ali perto chamou minha atenção. Ela me deu um aceno rápido, quase imperceptível, pra um corredor próximo. Hesitei, depois segui. Ela entrou numa sala de exame vazia e segurou a porta pra mim.
"Você foi um dos dele", ela sussurrou como uma constatação. Os olhos dela cheios de uma mistura esquisita de pena e medo. "Os da 'clareza especial'."
Só assenti, sem conseguir falar.
"Ele saiu correndo", ela disse, voz baixa e apressada. "Arrumou o consultório da noite pro dia. Disse que ia pra um lugar... remoto. Sempre foi um cara estranho. Brilhante, mas estranho. Falava de... filtros. Véus." Ela olhou por cima do ombro, pro corredor vazio. "Ele deixou isso comigo. Disse que se alguém voltasse, alguém que... visse as coisas diferente... eu devia dar pra pessoa."
Ela enfiou um pedacinho de papel dobrado na minha mão. Era um número de telefone. Só dez dígitos, escritos numa letra aranhenta e apressada.
"Não sei o que é", ela disse, já saindo da sala. "E você não pegou de mim. Boa sorte."
Sumiu antes que eu pudesse agradecer.
Corri do hospital e só parei num orelhão a vários quarteirões dali. Minhas mãos tremiam tanto que mal conseguia discar. Tocou uma vez. Duas. Três. Ia desligar quando uma voz atendeu. Era ele. A voz tava tensa, chiada, como se a ligação fosse ruim, mas era inconfundivelmente o médico.
"Quem é?", ele exigiu, tom afiado de paranoia.
"Sou eu", gaguejei, sem nem falar meu nome. "O LASIK. Há poucas semanas. O... o procedimento novo."
Fez-se um silêncio longo do outro lado. Dava pra ouvir vento, e outra coisa, um clique ritmado e fraco.
"Ah", ele finalmente disse, a voz baixando pra um sussurro conspiratório. "Então funcionou. Eu não tinha certeza. A clareza... você tá vendo, né?"
"Vendo o quê?", quase gritei no fone. "O que você fez comigo? Minha família... tem coisas neles! Monstros!"
"Não monstros", ele corrigiu, a voz tingida de uma mistura aterrorizante de curiosidade acadêmica e reverência. "Passageiros. Simbiontes. Estão com a gente há milênios. Tecidos na nossa própria essência. Nós somos só o gado deles."
Encostei na vidro sujo da cabine, as pernas quase cedendo. "Do que você tá falando? Eu não entendo."
"O olho humano é uma maravilha", ele começou, partindo pra uma aula como se estivéssemos de volta no consultório estéril dele. "Mas não é perfeito. Evoluiu não só pra ver, mas também pra não ver. Desde o momento que nascemos, tem um filtro biológico no lugar, uma série complexa de fotorreceptores e inibidores neurais que os torna invisíveis pra gente. É um véu. Um mecanismo de defesa desenvolvido ao longo de milhares de anos pra proteção deles. Se a gente pudesse vê-los, ia lutar. A sobrevivência deles depende do segredo."
Minha mente tentava acompanhar, processar a loucura absoluta do que ele dizia. "Eles? Quem são 'eles'?"
"Não sei o nome que eles dão pra si mesmos", ele disse, com uma nota de frustração. "Parasitas é a palavra mais próxima que temos, mas não é bem isso. É um vínculo mais profundo. Eles nos nutrem. Nos protegem de certas doenças. Mantêm os hospedeiros dóceis, contentes. Em troca, vivem. Experimentam o mundo através da gente."
"E a comida...", sussurrei, pensando na gororoba pulsátil. "A água..."
"O sustento deles, não o nosso", ele confirmou. "Uma papa de matéria orgânica e formas larvais deles mesmos, que cultivam. Processam e passam os nutrientes pro hospedeiro humano. É um sistema fechado, perfeitamente eficiente. Desde que você não veja."
As peças se encaixavam, formando um quadro de horror tão profundo que senti minha sanidade se desfazendo nas bordas. "Você fez isso de propósito. A cirurgia..."
"Foi uma hipótese!", ele rebateu, a voz subindo com uma energia maníaca. "Passei a vida estudando o olho, suas limitações. Vi anomalias, padrões que não faziam sentido. Cheguei a acreditar que não estávamos sozinhos, que a verdade tava bem na nossa frente, só... filtrada. Teorizei que podia burlar o filtro. Podia remover o véu cirurgicamente, mas o desafio, o verdadeiro desafio é encontrá-los, pois parece que não vivem com todos os humanos. Duvidei de mim mesmo por tanto tempo, mas você... Você foi minha prova."
"Você tem que desfazer!", implorei, lágrimas escorrendo pelo rosto. "Eu não aguento viver assim! Por favor, você tem que me consertar!"
A linha ficou em silêncio por um momento, só o vento e o clique esquisito. Quando falou de novo, a voz tava pesada de uma finalidade terrível.
"Não posso", ele disse baixinho. "Não sei como. Só aprendi a abrir a porta. Nunca descobri como fechar. Por isso fugi. Eles sabem de mim. Os que não têm vínculo, os que vagam livres... eles me sentem. E agora... vão sentir você também."
Fez uma pausa. "Me escuta com muita atenção. Os grudados na sua família... eles tão percebendo que você pode vê-los. A diretriz primária deles é proteger o hospedeiro e preservar o segredo. Vão te ver como uma falha, e vão tentar 'consertar' você. Não deixa eles te tocarem. Não come nem bebe nada que te derem. E pelo amor de Deus, não deixa eles chegarem perto dos seus olhos."
A linha morreu.
Fiquei ali um tempão, o fone morto encostado na orelha. Consertar. A palavra ecoava no espaço oco onde minha esperança morava.
Quando cheguei em casa, o clima tinha mudado. A encenação de normalidade sumiu. Eles tavam todos sentados na sala, me esperando. Minha mãe, meu pai, minha irmã. Todos viraram pra me olhar quando entrei, os movimentos perfeitamente sincronizados. Os rostos com expressões de preocupação calma e amorosa. Mas os passageiros tavam agitados. A coisa na bochecha da minha mãe pulsava rápido. A massa fúngica no peito do meu pai tava aberta, o orifício central levemente escancarado. O parasita translúcido da minha irmã tremeluzia, a cor mudando de transparente pra um branco leitoso e opaco.
"Filho, você demorou muito", minha mãe disse, a voz suave como seda. "A gente tava preocupado."
"Só precisava de um ar", eu disse, a voz tremendo. Comecei a recuar pras escadas.
"Seus olhos parecem cansados", meu pai retumbou, se levantando. O tubo no peito parecia inchar. "Você não tá se ajustando bem. O médico ligou enquanto você tava fora. Disse que esqueceu de te dar isso."
Ele mostrou uma garrafinha pequena, transparente, com conta-gotas. Um colírio. Falou o nome do médico, o meu médico, o que supostamente tava em outro país.
Minha mãe pegou a garrafa dele e veio na minha direção. "Ele disse que são gotas especiais. Bem mais fortes. Vão ajudar com a sensibilidade. Vão fazer tudo... mais fácil de olhar."
Ela desenroscou a tampa. Quando fez isso, eu vi. O fluido branco-leitoso na garrafa não era remédio. Vi um glóbulo fino e viscoso da mesma substância saindo de um poro minúsculo no parasita grudado no rosto dela, pingando pela bochecha. Ela tava tentando me fazer colocar um pedaço disso no meu olho. Pra me cegar de novo.
"Não", sussurrei, subindo as escadas de ré. "Não, fica longe de mim."
Os sorrisos não vacilaram, mas os olhos ficaram frios e vidrados.
"Não seja difícil, filho", meu pai disse, subindo as escadas atrás de mim, minha mãe e irmã logo atrás. "A gente só quer te ajudar."
"A gente te ama", minha irmã completou, a voz num tom monocórdio. O parasita na cabeça dela ondulou, e dois tentáculos novos, menores, se desenrolaram perto das têmporas, com pontas afiadas tipo farpas.
Virei e corri pro quarto, batendo a porta e trancando bem na hora que eles chegaram no topo da escada. Ouvi a maçaneta girar, depois uma batida educada, suave.
"Amorzinho? Abre a porta", a voz da minha mãe chamou.
Corri pra empurrar a escrivaninha, a cômoda, qualquer coisa pesada, na frente da porta. A madeira rangeu com o peso.
Eles tentaram por mais uma hora, as vozes nunca mudando daquele tom plácido e amoroso. Me ofereceram comida. Uma tigela especial de ensopado, disseram, cheia de nutrientes pra ajudar meus olhos a curarem. Imaginei as larvas se contorcendo dentro, feitas pra crescer no meu estômago e reconstruir o véu por dentro. Recusei.
Aí as batidas pararam. Por um tempo, silêncio. Achei, rezei, que tinham desistido.
Mas aí os sons novos começaram.
Debaixo do assoalho e pela porta, dá pra ouvir. O baque molhado e macio do corpo-hospedeiro do meu pai encostando na porta. Mas não é som humano. É o som da casca fúngica dura no peito dele batendo na madeira.
E o estalo. Um estalo baixo, constante, chiado. É o som das vozes de verdade deles. Os parasitas, se comunicando. Uma série de cliques molhados e afiados e pops guturais baixos. Dá até pra sentir que tá com fome.
Minha mãe acabou de falar de novo. A voz tão doce quanto sempre, pingando preocupação melosa.
"Filho, por favor, sai daí. A gente só quer te deixar melhor. Só quer te ajudar a ver as coisas do jeito certo de novo."
Mas enquanto ela fala, eu ouço, bem do outro lado da porta. O clique frenético, ansioso, da coisa que usa o rosto dela.
Eles tão atrás da porta, só esperando. Sabem que eu vou ter que sair eventualmente. Minha água tá acabando. E eu tô com uma sede do caralho. Mas eu não vou beber a água vermelho-sangue deles. Não vou comer a comida se contorcendo deles. E não vou deixar eles botarem a imundície deles nos meus olhos novos, horrivelmente perfeitos.
Agora eu vejo tudo. E é o inferno.

