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sábado, 13 de dezembro de 2025

Eu não tenho cachorro

Moro num prédio alto, daqueles que só dá pra acessar por um túnel duplo de trem ou carro. Anos atrás isso aqui era uma base militar, mas foi convertido em moradia residencial. O lugar é bem sombrio, e todo mundo que mora aqui se mudou ou ficou pelo mesmo motivo: a gente queria isolamento. Por ser tão isolado — praticamente uma ilha —, temos todas as comodidades necessárias pra sobreviver sozinho. Tem academia, escola fundamental, consultório médico, delegacia e umas poucas lojinhas. Eu trabalho numa loja de conveniência simples no quarto andar.

Acordei numa manhã fria de inverno e dei de cara com minha goldendoodle branca gigante deitada na cama comigo. Ela me manteve aquecido, e aquele cheiro familiar de pipoca dela me fez sorrir na hora que eu voltei à consciência total. Dei um carinho na cabeça dela e nós nos levantamos juntos. Enquanto eu me vestia, ela foi pra sala e se apoiou no parapeito da janela pra olhar a paisagem completamente branca lá fora — estava rolando uma nevasca dos infernos. Não tinha tigela nem ração na cozinha. Fiz uma nota mental pra comprar umas coisas no caminho de volta do trabalho, mas ela era uma cachorra grande e aguentava ficar sem uma refeição. Deixei um pote de cerâmica com água na cozinha, dei um carinho de despedida e saí.

No elevador antigo, mas confiável, trombei com Agnes Keller, uma mulher de meia-idade do nono andar. Ela estava com aquelas roupas cor-de-rosa de sempre. Agnes trabalhava no consultório com o Dr. Pyre. O que me chocou foi que o rosto enrugado dela estava rachado num sorriso. Ela era famosa por ser uma das pessoas mais carrancudas do prédio. Acho que nunca tinha visto nada além de uma cara fechada daquela mulher até hoje. Dei um oi simples e não quis estragar o bom humor dela fazendo perguntas. Mas ela mesma se explicou sem eu pedir. O filho dela tinha contado uma piada engraçada naquela manhã. O engraçado é que Agnes não tinha filho.

Marcus Lin estava andando de um lado pro outro na loja com uma prancheta na mão e me olhou com aquela mistura habitual de desprezo e insatisfação. Meu gerente me botou pra trabalhar na hora, mandando pro estoque repor mercadoria. Por sermos tão isolados, o depósito atrás da loja era enorme e lotado de suprimentos de emergência, bem além do padrão normal. Lin gostava de tocar a loja como se estivéssemos no meio de um centro turístico lotado. Eu aguentava o estilo ditatorial dele porque isso fazia os dias passarem rápido. Depois do nosso “horário de pico” da manhã — umas seis pessoas, mais ou menos —, desci o corredor onde ficava a ração pra cachorro. Um pensamento esquisito me veio à cabeça enquanto eu olhava as poucas opções. Lembrei de uma conversa com Lin em que ele reclamava que a única razão pra gente estocar aquela porra de ração era por causa da Sra. Innes, do segundo andar. Ela era a única pessoa no prédio que tinha cachorro.

Lin me liberou pro intervalo obrigatório de quinze minutos e eu voltei pro meu apartamento com uma lata de ração na mão. Meu gerente nem comentou a compra. A cachorra estava sentada no sofá assistindo TV. Ela tinha um cheiro tão familiar, e só de ver aquela criatura fofinha já dominava qualquer sensação de desconforto com uma tranquilidade gostosa. Ela correu na minha direção e se esfregou na minha perna, ganhando uma coçada na barriga. Nem pensei em como ela tinha ligado a TV. Ela devorou a ração com gula e abanou o rabo. Lin ia me dar um sermão daqueles se eu demorasse mais que o permitido, então deixei a cachorra com a promessa de levá-la pra passear no meu intervalo de almoço maior. Só quando já estava de volta no elevador é que percebi que eu não conseguia lembrar o nome da minha própria cachorra.

Quando voltei pra loja, fiquei surpreso de não encontrar Lin. Ele nunca deixava o lugar sem ninguém e fazia os intervalos ali mesmo, comendo macarrão instantâneo e me criticando. Aí encontrei o bilhete escrito à mão dele. Ia passar o intervalo de almoço em casa com a esposa. O Sr. Lin não era casado. Minha cabeça começou a ficar enevoada enquanto eu tentava juntar as peças da manhã. Uma sensação esmagadora de pavor subiu dos meus pés, fazendo minha pele arrepiar e os cabelos ficarem em pé. Repetidas vezes eu revivia a memória vívida de acordar ao lado da minha cachorra e depois vê-la sentada no sofá. Por que eu tinha lembrado dela como branca e fofa? Ali parado na loja, lutando pra não gritar, eu soube com uma certeza absoluta que a coisa que estava me esperando no apartamento na verdade era magra, cinza e tinha dentes afiados.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Tem uma coisa no meu quarto enquanto eu durmo…

Duas coisas eu sei com certeza. A primeira é que ela tá lá. A segunda é que ela tá se matando pra eu não perceber que ela tá lá.

É silenciosa, isso que eu quero dizer. Silenciosa pra caralho. Tão silenciosa que eu fico me questionando o tempo todo à noite. De dia também, até agora que eu tô escrevendo isso. Mas eu tenho certeza absoluta que tem alguma coisa. São coisinhas pequenas, só que frequentes. Constantes. Algo arranhando o assoalho de madeira. O lençol lá na ponta da cama, aquele pedaço que fica pendurado pra fora, deslizando quando alguma coisa passa por baixo. Eu deixo roupa na cadeira da escrivaninha o tempo todo, também escuto elas se mexendo.

Parece exatamente o barulhinho que minha gata fazia antigamente, quando eu tinha bicho. Aquela movimentação de um bicho pequeno e noturno andando pela casa no meio da madrugada. Sabendo que você tá ali. Só que eu não tenho gato há anos, e nunca tive nesse apê.

Moro com três colegas numa casa estranha pra cacete. Não estranha de assustadora, mas é uma casa antiga que virou apartamento colocando parede em lugar doido, então eu tenho um closet que fica embaixo da escada do apê do lado. O teto do closet é inclinado e vai longe pra dentro quando você entra. Quando a gente se mudou, encheu aquilo de caixa e traste que ainda não tinha lugar, e nunca desempacotamos direito, então virou um labirinto bem ali no meu quarto.

Tenho quase certeza que é pra lá que ela vai de dia. Não fui muito fundo porque, pra ser sincero, tô com medo de encontrar.

Você deve tá pensando: “porra, então dorme no sofá ou se muda logo”. A noite passada foi a primeira vez que eu tive certeza absoluta que era real. Como eu disse, ficava sempre na linha do “pode ser nada”, então eu ignorava. É a casa assentando. Aquecimento de inverno fazendo madeira dilatar. Sabe quando você joga um moletom no encosto da cadeira e demora uma hora pra cair no chão fazendo barulho, mesmo ninguém encostando? Eu ficava botando na conta disso. Sempre tinha uma explicação plausível. Talvez seja assim que ela se safe.

A desconfiança já vinha crescendo faz tempo. Ontem à noite me deixou 100%. Ultimamente eu tava demorando mais pra pegar no sono. Costumo dormir com vídeo rolando, white noise, essas coisas. Ontem meu celular morreu, o carregador tava do outro lado do quarto, era 1h da manhã e eu tava com preguiça de levantar. Então fiquei lá deitado no escuro, olho fechado, tentando forçar o sono. Não conseguia dormir, mas acho que passou tempo suficiente pra ela achar que eu tava apagado.

Comecei a ouvir de novo. Bem fraquinho. Sabe quando você tem que se concentrar pra ouvir, senão perde? Batidinhas vindo da porta aberta do closet. Passos mais abafados quando chegava no tapete. Roçou no cobertor que tava pendurado na beira da cama, eu senti ali do lado.

Aí eu ouvi a respiração e fodeu. É baixo, rente ao chão, por isso que eu pensei em bicho antes. Vai ver é rato, roedor, explicação normal. Só que essa respiração parecia humana. Meio aguda, chiada. Dava pra ouvir que a boca tava aberta.

Abri o olho sem querer. Talvez meu corpo tenha ficado tenso. A respiração parou na hora. Como se ela tivesse percebido. Por algum motivo meu instinto foi fechar o olho de novo e fingir que tava dormindo. Sabe quando você era criança, ficava acordado até tarde e ouvia seus pais vindo pelo corredor? Você sabia que tinha que fingir um segundo antes deles abrirem a porta? Foi exatamente essa sensação, só que gelada dos pés à cabeça.

Ouvi ela andando de novo, tão leve, tão cuidadosa. Sentia ela chegando cada vez mais perto do meu rosto. Mesmo de olho fechado eu sentia a presença, o calor do corpo ou alguma merda assim. Eu sabia que se abrisse o olho ia dar de cara com ela. Uma parte de mim até queria, só pra saber o que era, mas eu não consegui.

O pior foi que ela simplesmente ficou ali. Perto pra caralho. Parada, respirando baixinho. Não fez nada, não me tocou, não foi pra outro lugar, ficou ali horas. Horas mesmo. Não preguei o olho a noite inteira. Em algum momento senti ela indo embora e minutos depois senti a luz do sol batendo na minha pálpebra. Já tava amanhecendo. 7h da manhã.

Isso foi hoje de manhã. Já tá quase escurecendo de novo. Não sei o que eu vou fazer. Não consigo dormir aqui essa noite. Mas também não quero deixar essa coisa sozinha com as pessoas que moram comigo, e eu sei que vou parecer completamente louco se tentar explicar o que rolou. Mas eu sei o que eu sei.

Eu sei que ela tá aí.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

A Emma não é a Emma

Eu e minha namorada fomos passar um final de semana fora, mas não era ela que tava naquela cabana comigo.

Tudo começou quando a gente decidiu marcar essa escapadinha. A gente falava nisso fazia tempo e, com o trampo dos dois ficando uma merda e a vida em geral pesando, pegamos uma grana que tínhamos guardado e alugamos uma cabana no Lake District por um feriadão: sexta até segunda.

No dia antes de viajar, reparei que a Emma não tava bem. Ela disse que não era nada físico, só uma sensação estranha. Pelo jeito que ela descreveu, pra mim parecia nervosismo misturado com pavor. Ofereci pra adiar ou até cancelar tudo, mas ela bateu o pé que a gente ia mesmo. Beleza, partiu.

Chegamos na cabaninha por volta das cinco da tarde. Logo de cara já senti uma mudança na Emma: quanto mais a gente se aproximava, menos ela falava. Quando entramos, ela nem comentou nada sobre o lugar. A casa mais próxima ficava a pelo menos um quilômetro e meio do outro lado do lago, bem do jeito que eu planejei pra ela, porque no trabalho dela ela lida com um monte de idiota e eu achei que ficar totalmente isolada ia fazer bem. Mas nem um “nossa, que lindo” saiu da boca dela.

Conforme a noite foi caindo, fizemos janta. Tentei puxar papo, mas ela tava monossilábica. Achei que era cansaço da viagem e aquele mal-estar que ela tava sentindo. Coloquei os pratos na sala pra gente comer na frente da lareira. Quando botei os pratos na mesinha, percebi que ela não tava mais atrás de mim. Um segundo antes ela tava ali, carregando as bebidas. Olhei pro corredor que levava pra cozinha: escuridão total. Cadê ela?

“Amor?” chamei, esperando um “esqueci o celular na cozinha” ou qualquer coisa normal. Nada. Só o silêncio sinistro e o estalo da lenha queimando.

Não era o fim do mundo, sentei e comecei a procurar um filme pra gente ver enquanto comia. Passaram uns cinco minutos, zero barulho na casa inteira. Chamei de novo: nada. Fiquei prestando atenção em porta fechando, descarga, qualquer coisa. Até que ouvi um rangido lento e calculado bem atrás do sofá onde eu tava sentado. Impossível ela ter chegado ali sem passar do meu lado direito, que era o corredor da cozinha, ou sem eu ver ela indo pro quarto, que ficava exatamente atrás de mim.

Desliguei a TV na hora pra ouvir melhor. E gelei. No reflexo da tela preta eu vi minha namorada: cabelo pingando, roupa rasgada e encharcada, sorrindo feito psicopata a menos de 30 cm das minhas costas. Pulei do sofá e me virei: ninguém. Nem poça no chão, nada. Mas os rangidos continuavam, como se ela ainda estivesse ali, só que eu não conseguia ver.

Fiquei encarando o corredor do quarto sem piscar, esperando outro rangido pra localizar o que quer que fosse aquilo.

“Ei amor, tá tudo bem?” uma voz veio do meu lado esquerdo. Eu dei um grito e quase derrubei a comida toda.

“Porra, que susto! Parece que você viu um fantasma”, ela falou rindo de leve.

“Que porra, de onde você saiu?”

“Tive que fazer xixi, posso?” respondeu sarcástica.

Tentei controlar a respiração e sentei do lado dela, que agora tava preocupada de verdade.

“O que aconteceu?”

“Achei que vi… alguém no reflexo da TV.”

“Tem certeza? Não era o cabideiro do lado da porta? Quantas taças de vinho você já tomou mesmo?”

Fiquei na dúvida, mas concordei. Vai ver minha cabeça tava zuando comigo porque eu já tava meio tenso. Só queria esquecer essa parada estranha. Assistimos TV, mas eu não conseguia parar de sentir que tava sendo observado. De vez em quando ouvia um pingo bem fraquinho, tipo água caindo no chão de madeira logo atrás de mim.

Na hora de dormir eu ainda tava meio cagado. Quis falar sobre aquilo, mas como que eu ia dizer “ei amor, por que você apareceu feita uma doida no reflexo da TV e depois teleportou?”. Sempre acreditei pra caralho em fantasma e coisa do tipo, a Emma não. Não queria virar piada, porque realmente parecia loucura.

A noite foi tranquila, uns barulhinhos na casa escura que dava pra explicar, nada demais. Talvez eu não tivesse visto mesmo o que achei que vi e a cabana não fosse mal-assombrada pra cacete. Com esse pensamento fechei os olhos e dormi.

Sonhei pesado com o lago: eu e a Emma fazendo piquenique na beira, sol brilhando, passarinho cantando, cena perfeita. A gente levantou e correu pra margem. Olhei pra baixo, ri das ondulações que deixavam a gente parecendo estranho na água.

A água acalmou. Foquei no reflexo da Emma. Ela tava com um sorriso assustadoramente largo, e a cabeça girou pra me encarar enquanto o corpo continuava de frente. Levantei o olhar rápido pra cara dela de verdade: tava tranquila, olhando o horizonte. O oposto total do que eu tinha acabado de ver no reflexo. Acordei na hora, olhei pro lado: ela dormindo, roncando do mesmo jeitinho de sempre. Soltei o ar e tentei voltar a dormir, torcendo pra sonhar menos fudido dessa vez.

No dia seguinte parecia que nada tinha acontecido. Caminhamos, rimos, curtimos pra caralho. Teve umas duas vezes que peguei ela olhando pro nada, sussurrando coisas, mas quando eu falava com ela ou quando percebia que eu tava olhando, voltava ao normal. À noite, porém, não sei pra onde minha namorada foi nem o que tava no lugar dela.

Cozinhamos, jantamos, vimos TV, tomamos banho, fomos pra cama. Tudo normal… até a hora de dormir. Ela já tava de lado, começando aqueles roncos leves. Mas eu não conseguia me sentir seguro. Uma intuição fudida gritando que eu não devia dormir, que não era seguro. Sei lá o que me deu, resolvi descer pra sala e ler uma hora mais ou menos, no escuro, sozinho. Nem eu me acho tão esperto assim, mas foi o que eu fiz.

Nem vi o tempo passar: já tava na poltrona marrom grandona, de costas pra parede da TV, encarando o corredor do quarto, com o corredor da cozinha do lado esquerdo. O livro tampava quase toda a minha visão periférica. Devia ter uns 15 minutos que eu tava lendo quando ouvi um “Ei” seco e rápido no meu ouvido esquerdo.

Bati o livro na mesa e virei pra todos os lados. Tinha uma luminária fraquinha do lado, a luz não chegava no fundo dos corredores, mas não importava: a voz veio a centímetros do meu ouvido. Fiquei meio tenso, mas ignorei. Vai ver era tipo quando você tá de fone e acha que alguém te chamou. Voltei a ler.

Quinze minutos depois: outro “Ei” seco, agora no ouvido direito. Reagi rápido, olhei tudo. Juro que vi um vulto sumindo no corredor. Sussurrei o nome da Emma caso fosse ela, sem resposta. Esperei mais um pouco e decidi subir pra dormir. Quando tava dobrando o cobertor, veio um “EI!” mais alto e puto. Dessa vez não tinha como ser imaginação: era voz real, senti até o hálito gelado e podre na minha pele.

Virei esperando ver alguém, um ladrão, ou a Emma fazendo pegadinha (o que seria muito fora do normal dela). Nada. Espaço vazio e mal iluminado. Apertei o passo pro quarto, pelo menos lá eu não ficava sozinho. Quase chegando, olhei pra trás, devia ter deixado quieto.

Vi um vulto se escondendo rápido atrás da cortina. Não deu pra não ver o cabelo castanho avermelhado comprido que ficou pra fora. Quase ri de nervoso: era a Emma, óbvio, tentando me assustar pra se vingar daquela vez que eu pulei nela. Fui abrir a porta do quarto pra fingir que entrei e pegar ela desprevenida atrás da cortina, mas antes que eu conseguisse, vi pelo canto do olho.

Minha namorada dormindo exatamente na mesma posição e ritmo de antes.

O mundo parou. O que caralhos tava atrás daquela cortina?

Entrei no quarto, tranquei a porta e tentei bolar um plano. Acordei a Emma, expliquei o que vi. Ela apontou pro taco de beisebol do lado da porta e fomos conferir. Claro, não tinha porra nenhuma. De novo me convenceram que eu vejo filme de terror demais.

Ela tava morta de sono e não acreditou em nada, voltamos pra cama. Consegui dormir eventualmente, com um braço pra fora da cama segurando firme o taco.

O sono daquela noite foi uma bosta: pesadelo atrás de pesadelo, tudo muito louco e sem sentido, menos um. No sonho eu acordava, Emma não tava do meu lado. Calçava o chinelo e saía procurando. Ouvi arranhões na parede, segui o barulho e achei a Emma, ou o que tentava ser ela, agachada no canto, estalando o corpo inteiro enquanto se contorcia. Pus a mão no ombro dela, ela virou rápido e cravou uma faca na minha costela. O sorriso não vacilou, só cresceu. Enquanto eu caía no chão apertando o ferimento, ela sussurrou “não sai da cama”. Acordei, já era manhã.

Acordei moído, sem dormir direito e, pra ser honesto, puto. Eu nunca menosprezaria um medo da Emma, e ela fez exatamente isso comigo. No café da manhã fiquei quieto, sem falar nada. Ela percebeu que me chateou, eu me senti culpado, mas precisava ser assim por enquanto.

Umas horas depois ela falou que tinha uma surpresa. Fui atrás dela até a beira do lago: um piquenique montado. Me fez sorrir.

Lá tava minha Emma de volta, sorrindo doce com o sol batendo no rosto. Sentamos, comemos, conversamos, parecia que um peso tinha saído das costas. Não sei o que tava causando esses sonhos e possíveis alucinações, mas ia marcar médico quando voltasse. Ficamos ali um tempo até que um enxame de moscas começou a rodear a cabeça dela. Ela tentou espantar rindo, mas acabou correndo com uma risadinha.

Era estranho pra caralho a quantidade de mosca, mas eu ri e corri atrás até a gente parar bem na beirada da água. Ela tirou umas folhas do corpo, elas caíram na água e fizeram ondulações. Olhei pra baixo, achei graça de como a gente ficava distorcido. E aí me caiu a ficha: era exatamente o meu sonho. A memória tava meio embaçada do que vinha depois, mas senti um déjà vu misturado com pavor.

Quando a água acalmou, levantei o olhar pra minha namorada, admirando o quanto ela era linda olhando a paisagem. Sorri pensando na sorte que eu tinha e olhei de novo pra baixo.

O sorriso sumiu da minha cara na hora. No reflexo, a Emma tava com aquele sorriso escancarado e a cabeça virada pra me encarar. Soltei um grito de terror e andei pra trás até aquela coisa sumir da minha vista. Virei e corri pra casa desesperado, querendo distância da Emma e seja lá o que tava fingindo ser ela. Sem saber qual das duas era real.

Claro que ela veio atrás tentando me acalmar. Mal conseguia falar direito antes de ver ela revirando os olhos. Já tava enchendo o saco. Falei firme que a gente ia embora agora, mas ela veio com um monte de motivo do porquê aquilo era importante pra ela, que a gente precisava desse descanso. Tentei argumentar, ela disse que não era real, que era só coincidência.

Eu tava quase acreditando quando olhei pra baixo e vi as unhas dela pretas, mortas, cabelo seco e quebrando, totalmente o oposto de como ela sempre cuida. Era ela, mas não era. Parecia uma gêmea que tinha vivido no escuro a vida inteira. Sabia que a gente precisava dar o fora dali rápido, mas não conseguia convencer ela. Tinha medo que o que quer que tivesse se alojado na minha namorada fizesse alguma merda e machucasse ela de verdade. Cedo pro dia seguinte de manhã, só precisava aguentar mais uma noite.

Fui dormir apavorado, com medo pela minha namorada e muito medo dela. Sabia que a Emma de verdade ainda tava ali dentro, então tentei ter paciência e tirar a gente dali o mais rápido possível sem acionar nada. De tanto cansaço, apaguei.

Acordei de repente, como se alguém tivesse jogado um balde d’água em mim. Emma não tava do meu lado. Talvez tivesse sede ou foi pegar algo pra comer, ela mal comeu desde que chegamos. Levantei pra ir atrás e ver se tava tudo bem. Quando fui calçar o chinelo, lembrei do dia: tinha sido idêntico ao sonho. Não tinha como ser coincidência.

O sonho que eu tive se realizou. Um pensamento me acertou: o sonho da noite anterior. Gele. Voltou tudo: eu acordando, Emma sumida, procurando, os arranhões, ela agachada, a facada. A memória me acertou como um tijolo, quase fiquei tonto. Levantei devagar, fui até a porta e girei a maçaneta.

Não tem como isso tá acontecendo. Meus sonhos não viram realidade, né? Impossível. Aconteceu uma vez, talvez não aconteça de novo. Mas eu precisava ter certeza que minha Emma tava bem.

Dei uns passos no corredor, respiração curta e acelerada, repetindo pra mim mesmo que não podia ser real. Virei a esquina e ouvi um barulhinho fraco. Forcei o ouvido: foi ficando mais alto, mais alto, até não ter mais dúvida.

Era arranhado.

Na parede.

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Matador de Vampiros

Ele era só um cara. Um cara comum. Você provavelmente nem notaria se cruzasse com ele na rua.

Mas quando eu olhava pra ele, via um anjo. Uma fruta doce que Deus fez só pra mim. Ele tinha aquele tipo de calor que fazia todo mundo se sentir confortável e seguro só de entrar no ambiente. Ser hipnotizado por aqueles olhos azuis macios era tipo flutuar numa piscina quentinha cheia de lontras fofinhas enquanto te servem bolo e sorvete no seu aniversário. Cada pessoa se sentia o centro do universo dele quando ele tava por perto, e parecia tão fácil pra ele ser adorado.

Por isso eu mereço o que aconteceu comigo depois que eu matei ele.

Eu simplesmente não consegui me segurar. Essa raça sempre foi a minha favorita. Toda aquela energia altruísta que o mundo não valoriza deixa a pessoa desesperada pra alguém notar, morrendo de vontade de ser abraçada, implorando por um momento de paz. O sangue praticamente desce sozinho pela sua garganta quando você morde, e aí irradia uma sensação profunda de conforto e calor por cada artéria e sinapse do seu corpo durante dias enquanto você digere todo aquele bem e amor que todo mundo menosprezava.

Ele não viu chegar. Nunca veem. Na real, ele devia ter me agradecido: dei muito mais tempo pra ele do que pra qualquer outro. Ele me entretinha, era engraçado, fofo, e eu simplesmente perdi a noção do tempo. Que porra é um ano ou três quando você já não conta mais os séculos? Era gostoso demais ficar perto dele, tão cheio daquele calor delícia que eu sentia pulsar só de estar do lado, e o toque aveludado dele fazia minha pele arrepiar com uma eletricidade do caralho.

Olhando pra trás, não sei por que eu não deixei isso ser suficiente. Se eu conseguia viver assim com ele, por que caralhos eu precisei querer mais? Eu nem tava com fome. Eu tava feliz. Acho que ele também tava. Não precisava ter terminado assim.

Era nosso aniversário de namoro e a gente tinha ido no restaurante que ele me levou no primeiro encontro. Ver o pôr do sol refletido nos olhos dele enchia tanto a minha alma que parecia que eu tava transbordando, e eu simplesmente não aguentei a ideia de outra pessoa ver aqueles olhos lindos ou desperdiçar o calor da presença dele. Só a risada dele já levantava qualquer festa, e de repente eu senti náusea só de pensar que outra pessoa pudesse sentir o que eu sentia. Nenhum deles ia valorizar a essência dele do jeito que eu valorizo.

Foi tipo instinto. Uma outra fera saiu pra caçar. Eu vi a forma que a garçonete ajeitou o cabelo atrás da orelha e sorriu pra ele quando pediu nossas bebidas. A vadia chorou, gritou e tentou desesperadamente me enganar quando eu peguei ela no beco na hora do intervalo. “Eu tô só fazendo meu trabalho! Homem dá gorjeta melhor se você flerta!”. Puta não me enganava. Eu ainda sentia o calor dele grudado na mente dela.

Eu tinha passado tanto tempo focada só nele que devia ter esquecido como era sangue bom de verdade, porque não consegui me parar enquanto eu me empanturrava daquele pescoço com gosto de mentol. Ou talvez eu só estivesse desesperada pra sentir uma migalinha patética do calor dele nela…

Mas ela só me deixou vazia…

Toda aquela energia dourada que eu tava transbordando sumiu e eu tava lá, coberta de sangue, sozinha no beco atrás de um restaurante caro, segurando o corpo mole do que um dia foi uma garçonete. Nem senti o estalo quando o pescoço dela quebrou. Não era tão bruta com comida desde criança. Que vergonha. Levantei uma tampa de bueiro e joguei ela no esgoto com um barulho molhado. Problema de outro agora.

Não podia deixar ele me ver assim, então mandei mensagem dizendo que passei mal e peguei um táxi pra casa. O motorista perguntou se a festa à fantasia tinha sido boa e eu só balancei a cabeça quietinha. Ainda bem que nem todo mundo sente cheiro de sangue, porque o último abate ainda tava me dando náusea e eu não tava afim de papo. Só queria chegar em casa e ficar de boa.

Tirei o vestido grudento e joguei na lareira, depois entrei no chuveiro. Fiquei hipnotizada vendo os riscos vermelho-vivo do que sobrou da garçonete rodopiarem pelo ralo. Parecia estranho, como se faltasse um pedaço de mim. Aumentei a temperatura da água, mas continuava com frio. Parecia que eu ainda tava com saudade de casa mesmo estando no meu próprio chuveiro quente do caralho.

Desde quando alimentar dá nojo? Me forcei a vomitar a garçonete inteira de medo que ela tivesse câncer no sangue. Sinceramente nem acho que isso me machucaria, mas eu precisava tentar alguma coisa. Por que ela me deixou tão vazia? Ela nem valia toda essa angústia. Mesmo depois de lavar tudo ralo abaixo, eu ainda me sentia vazia.

Me arrastei pra cama, puxei o cobertor por cima da cabeça e… chorei. Não sabia se era de verdade ou se eu só tava imitando algo que vi humano fazer até não conseguir mais parar. Me contorcendo e vomitando, me encolhi e chorei rios por o que pareceram séculos até que ouvi a fechadura da porta da frente abrir e o calor voltou a inundar a casa.

As mãos dele ainda estavam geladas do ar de inverno, mas o toque gentil dele parecia um bote salva-vidas no meio da tempestade. Puxei ele pra cima de mim, ainda molhada das lágrimas e do chuveiro, e apertei ele nos meus braços mais forte do que ele provavelmente imaginava que eu era capaz. Ele olhou pra mim com aqueles olhos cheios de empatia e soltou um “aconteceu alguma coisa?” enquanto eu espremia o ar dos pulmõezinhos dele.

Afrouxei um pouco e empurrei a cabeça dele pro meu peito. “Não”, falei docinho enquanto acariciava, “só passei mal, mas quando saí senti sua falta. Fiquei mal por te deixar lá.”

“Que pena que você passou tão mal. A gente tava animado pra hoje.” Ele deu um beijinho suave na minha clavícula e eu beijei a testa dele e cheirei o cabelo. “Que tal a gente remarcar pra semana que vem quando você estiver melhor?” Eu assenti com os lábios ainda grudados na cabeça dele e dei um suspiro fundo enquanto sentia a tensão do meu corpo se dissolver.

“Você tá sentindo algum cheiro?” ele perguntou. Meus olhos se arregalaram. Terror. Aquele frio, aquele nojo. “Tipo moeda molhada e… mentol?”

Eu não lembro o que aconteceu depois, só lembro de me sentir sozinha e com saudade de casa na minha cama, segurando desesperadamente as pálpebras abertas de um corpo mole pra ver mais uma vez aqueles olhos que me enchiam de felicidade. Ele deve ter visto o choque no meu rosto quando eu percebi o que tinha feito, porque o rosto ensanguentado dele se contorceu numa olhar de compaixão olhando pra mim enquanto soltava um último suspiro molhado e sussurrava “Te vejo… logo…”

Ele não fazia ideia do que tava falando. Não podia fazer. Não tinha como ele saber o quão especial ele era. Gerações sendo presa tinham virado o jogo de um jeito que nenhum de nós dois esperava.

Não era pra ter sido assim. Tudo errado. Eu bebi a essência dourada desse homem. Eu era pra estar radiante agora. Transbordando, porra! Não lembro o momento que engoli ele, mas ainda sentia o gosto puro dele nos meus lábios e eu só… me sentia… VAZIA…

Ele ainda tava aqui. Cada pedacinho dele ainda tava nesse quarto, mas ele tinha ido embora e toda cor tinha sido sugada do mundo junto com ele.

Em algum momento eu levantei e carreguei ele pro banheiro. Nunca tinha me incomodado com aquela sensação esquisita de cadáver, mas não podia deixar ele daquele jeito. Lavei o sangue dele, embrulhei no cobertor e coloquei na cama. Queria que ele parecesse em paz, mas não conseguia fazer aquela cara dele fazer o que fazia quando encostava a cabeça no meu peito e dormia. Agora ele só parecia um boneco, um casco que eu vesti com as roupas dele e coloquei na cama dele.

Chorei pela segunda vez na minha vida infinita enquanto via nossa casa queimar. Inúmeros caras que engoli desse jeito e nunca tinha ficado pra essa parte; nunca senti necessidade de me despedir. Fiquei lá no frio vendo os humanos lidarem com aquilo até nossa casa virar só um monte de lembranças e sangue fumegante.

Não tentei me alimentar de novo por um tempão. Só de pensar dava nojo até a fome ficar insuportável e eu não conseguir pensar em outra coisa além da necessidade desesperada de consumir o calor de outra pessoa. É Dia dos Namorados e eu tô vendo um casal ficar noivo na praia de cima do penhasco. Minha barriga ronca e eu consigo imaginar a felicidade nos olhos dela e como ele colocou aquilo lá, mas quando desço até lá, a cena não é nem um pouco o que eu imaginei… Ela tá grávida e ele fede a suor de outra mulher. Esse tipo de felicidade é passageira. É mentira que ele conta pra ela pra se alimentar do calor dela.

Talvez eu consiga um gostinho desse calor se eu tirar ela desse sofrimento. Posso confortar ela enquanto ela desliza suavemente pra dentro de mim. Ela nunca vai precisar saber quanta misericórdia eu tô dando. Dei um passo na direção deles e de repente, como se um véu fosse levantado, senti o abraço dele por trás e congelei. O casal, perdido na própria bolha, nem me notou enquanto eu ficava lá parada feito estátua assistindo o momento deles.

Faziam anos que eu não sentia esse abraço, mas eu sabia que era dele, quente e confortador, em lugar nenhum e em todos ao mesmo tempo. Braços de ar. Braços de nada. Braços de calor e alegria. Eu sentia eles me envolvendo, firmes e fortes como eu lembrava, mas ao mesmo tempo eu sabia que eu tava completamente livre. Eu podia dar um passo à frente. Podia me alimentar desse casal. Podia sentir o calor passageiro deles…

Mas aí eu ia ter que sair desses braços…

Fiquei lá no ar gelado de fevereiro, perdida no tempo como uma memória que nunca aconteceu. Ele me segurou por horas e ninguém prestou atenção. O casal foi embora. Outras pessoas passaram. O sol se pôs, o sol nasceu. Não sei quanto tempo, mas quando acabou, eu não sentia mais fome. Fria de novo, mas não com fome.

Depois disso a cor voltou pro mundo. Não em todo lugar, não como antes, mas eu conseguia ver lampejos de vez em quando. Segui a cor até um parque uns dias depois e só fiquei sentada vendo as crianças meio que brilharem enquanto brincavam. É difícil explicar o que meus olhos viam, mas parecia quente e pela primeira vez na vida eu só queria que aquele calor ficasse onde tava pra eu poder admirar um pouco. Enquanto durasse.

Um aniversário. Um piquenique. Uma pega-pega. Memórias essenciais sendo formadas bem na minha frente. Pequenos vaga-lumes de cor num mar de sépia.

Aí um brilhozinho desceu de algum lugar e pousou na minha palma. Formigava de calor e eu fechei as mãos em volta dele e deixei irradiar pra dentro de mim. Sem palavras ele me disse e eu entendi que eu precisava levantar e ele me puxou pelo canto do abrigo de beisebol e foi aí que eu cruzei o olhar com alguém. Um cara baixinho e peludo em todos os lugares errados, tipo um dedo do pé com unha encravada. Ele segurava um pedacinho de calor tão apertado no punho que os nós dos dedos tavam brancos. O que eu vi nos olhos dele era menos que nada, um vazio que nunca ia ser preenchido exigindo calor mas nunca dando.

Ele ainda tinha aquele sorriso louco de quem achou que o plano deu certo até eu quebrar o pulso dele. A menininha perguntou se ele tava bem e eu sorri com carinho e falei que só precisava dar uma injeção no meu tio porque ele não podia sair do hospital e mandei ela voltar pra mãe.

Arrastei o cara-dedo-do-pé até a van branca feia dele, joguei no fundo e rasguei o motor com as mãos. Talvez eu devesse ter matado ele, mas eu sabia que isso não ia me aquecer. Só deixei ele lá largado, ferido e coberto de merda dele mesmo.

Naquela noite senti ele me abraçando de conchinha. Foi fraco, mas eu sabia que era ele. Um sonho de um abraço de conchinha, mas pela primeira vez dormi como eu dormia nos braços dele antigamente. Quando acordei não sentia mais ele, mas não tinha como confundir.

Levou tempo, mas a gente descobriu juntos. O corpo dele morreu, mas ele ainda tá aqui, grudado dentro de mim, me mostrando a luz. A gente se fala por sensações e cutucadas, calor e cor. Não escuto a voz dele, mas sei que é ele de verdade, consciente, vivo e me guiando. Agora eu honro a memória dele sendo a pessoa que ele via em mim, a pessoa que ele tava olhando quando eu tava focada no pôr do sol refletido nos olhos dele.

Milhares de anos de evolução finalmente ensinaram um humano a matar vampiro; só queria que ele não tivesse precisado morrer pra fazer isso.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Eu tinha dificuldade pra dormir quando era mais novo. Ontem à noite eu descobri o porquê

Tudo começou quando eu tinha 8 anos. Nessa época, eu comecei a ter esses “estremecimentos” no sono. Lá pelas tantas, perto da meia-noite, eu era arrancado do sono de repente. Era igual àqueles momentos em que você tá quase pegando no sono e o corpo dá um tranco, como se você estivesse caindo, só que esses trancos me faziam sentir que eu tava sendo jogado pro alto. Meus pais, no começo, acharam que era só insônia – a escola tava bem estressante pra mim, com um monte de matéria nova e aula diferente, então até entendo eles pensarem isso. Só que os trancos eram raros no início, mas com o tempo começaram a acontecer toda noite, e aos poucos eu acordava com mais pânico, gritando e socando o ar contra uma ameaça que não existia.

Cinco dias depois que esses trancos pioraram de vez, meus pais começaram a achar que insônia não explicava mais. Começaram a perguntar se eu tava sofrendo bullying na escola, se tinha professor filho da puta, essas coisas. Eu não tinha bully nenhum na época e todos os professores eram legais, então a resposta era sempre “não”. Me levaram pra umas consultas na clínica infantil da cidade, não acharam nada errado fisicamente, mas anotaram que eu tinha um monte de “trauma auto-infligido” – vai entender que porra era essa. Deram uma receita de remédio pra dormir pros meus pais e falaram pra eu tomar um uma hora antes de deitar, pra ver se me mantinha apagado. O remédio nunca funcionou porra nenhuma. Eu até ficava mais sonolento antes de dormir, mas os trancos continuavam acontecendo, toda santa noite, pontualmente à meia-noite.

Isso durou um tempão e eu só queria que aquele inferno acabasse. Acabei perguntando pros meus pais se existia um “médico do sono”. Eles falaram que não tinha isso, mas que podiam me levar num psiquiatra. Logo eu tava sentado num consultório cheio de brinquedo, fidget toy e livro espalhado, enquanto o Dr. Cole, meu psiquiatra na época, me fazia um monte de pergunta. Perguntas ridiculamente básicas: “Quantos anos você tem? Sempre quis procurar ajuda psiquiátrica? Dorme bem? Come direitinho?” e tal. Depois disso ele tirou umas folhas, aquelas com borrões pra ver como a cabeça do paciente funciona identificando imagem. Juro por Deus, cada uma por uma, todas as folhas tinham dois círculos pretos gigantescos dos lados, tão escuros que parecia que eu podia enfiar a mão ali e perder pra sempre. Sei que algumas realmente tinham traços assim, mas pra mim todas eram iguais: vazios absolutos que pareciam me encarar direto. Lá pela nona folha eu desabei chorando e tentei me esconder embaixo da mesa. O Dr. Cole juntou as folhas, guardou na pasta e começou a preencher um relatório. No mesmo dia meus pais foram informados que eu podia ter um caso leve de esquizofrenia, que fazia meu cérebro projetar imagens que eu não queria ver nas folhas. Deram outra receita. Meu pai fez o maior escândalo, falando que não ia deixar o filho caçula tomar remédio pra um transtorno de verdade em vez de tratar de verdade. Resumindo: nunca mais voltei lá.

Por meses eu tive que aguentar aqueles trancos o tempo todo, e ficou tão insuportável que parei de dormir no meu quarto e passei a dormir com meu irmão David. David tinha 10 anos na época e, pra ser sincero, já tava de saco cheio da minha palhaçada, mas ainda me deixava dormir com ele se isso fizesse eu calar a boca. Depois de um tempo chegou meu aniversário. A festa era pra ser uma desculpa pra eu pegar ar livre, mas por causa dos trancos da meia-noite meus pais decidiram que todo mundo ia ficar dentro de casa pra “se conectar mais”. Na festa tinham três dos meus amigos mais próximos – dois eram vizinhos, o outro era da sala. Além deles, dois primos meus que eram pelo menos cinco anos mais velhos que o David, mas ainda curtiam vir em casa zoar com a gente de vez em quando.

Durante a festa eu consegui esquecer completamente dos trancos. Todo mundo jogando, falando de coisa que ia rolar, e principalmente rindo de piada escrota e besta pra caralho. No fim da tarde eu e o David pegamos os sacos de dormir. Ele foi abrir o sofá-cama enquanto eu juntava cobertor e travesseiro. O David parou na frente de todo mundo e avisou que os sacos de dormir eram só pra mim e pra ele, e que o sofá-cama ia ser “quem chegar primeiro leva”. Eu dei um sorrisinho e falei pra eles “se “se matarem pela cama”. Achei que ia rolar guerra de polegar ou pedra-papel-tesoura, mas os primos se ofereceram pra dormir no chão e meus amigos resolveram na queda de braço. Depois de decidir quem dormia onde, ficamos acordados umas boas duas horas depois do horário de dormir, desafiando um ao outro pra ver quem aguentava mais tempo sem apagar. Claro que eu fui o último a dormir.

Enquanto eu ia apagando, sorria com o dia inteiro de diversão, mesmo tendo ficado só dentro de casa rindo até doer a barriga. Aí, lá pela meia-noite, senti aquele tranco me jogando pra fora do sono de novo, e a vontade de gritar e socar o que tivesse mais perto veio com tudo – só que minha voz não saía. Minha boca tava aberta, mas as cordas vocais não funcionavam. Meus braços, já dentro do saco de dormir, não mexiam. Lembrei que meu primo tinha falado que sentia isso direto: paralisia do sono, quando você acorda rápido demais e o corpo não destrava os movimentos. Varri o ambiente com os olhos pra ver se tinha alguém acordado. Só via a bagunça de jogo de tabuleiro e salgadinho, meu irmão, meus primos e meus amigos dormindo, e a janela grande do lado da porta da frente.

Meu primo sempre dizia que, quando ficava paralisado, tentava ficar olhando pras coisas diferentes porque sabia que a mente acabava ficando entediada e inventava monstro. Meu irmão retrucava que ficar olhando em volta só incentivava a mente a criar os demônios. Meu primo dava de ombros e falava que nunca tinha visto nada que não estivesse ali de verdade. Eu fiquei olhando cada canto da sala que conseguia pra garantir que nada mudava. Quando me senti seguro, fechei os olhos e tentei dormir de novo. Logo depois de fechar os olhos, ouvi um farfalhar no mato bem do lado de fora da janela grande. Abri os olhos num pulo e virei pra ver o que porra era aquela. Fiquei apavorado.

O cara – a coisa, melhor dizendo – que tava do lado de fora da janela era alto e todo escuro. Parecia usar um moletom preto, mas o rosto… nunca vou esquecer aquele rosto. Escuro e ao mesmo tempo pálido, sem boca nem nariz que desse pra ver, e os olhos eram exatamente aqueles círculos pretos gigantescos que eu vi nas folhas do Dr. Cole, só que ainda mais fundos. De algum jeito consegui franzir a cara numa careta de raiva, torcendo pra ele ver que eu tava puto e ir embora. Ele viu mesmo a careta, virou pro lado da porta e… caminhou até ela. Pisquei só pra ter certeza que não tava louco, mas a coisa agora tava dentro da minha casa, parada bem na frente da janela. Com medo de piscar de novo, forcei os olhos a ficarem abertos. A coisa começou a andar na minha direção, bem devagar. Meus olhos lacrimejaram, lutei com tudo pra não piscar, até que, de repente, piscar foi inevitável. Quando abri os olhos de novo, a coisa tinha sumido. Varri a sala inteira: nada fora do normal. Percebi que meu corpo já tinha destravado da paralisia e corri pro David pra acordar ele.

“David! David!” gritei. “Tem um cara, eu vi ele! Tá escondido aqui dentro de casa!”

Meu irmão se mexeu e virou de costas pra mim. “Vai dormir, cara, tá tarde pra caralho.”

“Não! Eu não consigo dormir, David! Ele tá na nossa casa! Pode tá esperando pra matar a gente!” retruquei gritando.

David se levantou devagar, espreguiçou e falou bocejando: “Que tal a gente procurar esse cara e, se achar, a gente vai chamar o papai e a mamãe. Combinado?” Eu balancei a cabeça que sim. Levantamos e fomos procurar pela sala: debaixo do sofá-cama, debaixo da mesinha de centro, até no armário do corredor. Nada. Voltamos pra cama e o David apagou quase na hora. Eu sabia o que tinha visto. Sabia mesmo.

Depois daquela noite os trancos pararam. Nunca soube o porquê, então por um tempo achei que era só uma fase de medo de medo de tudo. Hoje eu tenho 19 anos e ontem à noite eu fui provado errado: senti um tranco de novo, olhei pra janela do meu quarto e lá tava ele – o homem sem olhos.

Eu fiz parte de uma equipe de resposta enviada pra uma instalação secreta por causa de um surto. O que a gente descobriu nunca deveria ter existido… e agora eles estão soltos

Não sei quanto tempo eu ainda tenho. Minhas mãos não param de tremer e meu pulmão tá queimando como se eu tivesse respirado fogo, mas eu preciso botar isso pra fora porque não sei se vou conseguir sair vivo dessa mata antes que o que quer que esteja se mexendo ali na beirada das árvores me ache. Se você tá lendo isso, entenda uma coisa: tudo sobre os Laboratórios Helixion não era boato. Não era teoria da conspiração. Era real. E a gente libertou uma coisa que devia ter ficado enterrada pra sempre.

Eu era de uma equipe de cinco caras: Comandante Coleman, Matthews, Fields, Torres e eu. Fomos mandados pra conter uma brecha de segurança numa instalação ultra-secreta. Comunicação cortada, número de mortos desconhecido. Aquela missão que a gente treina a vida inteira mas reza pra nunca cair.

O lugar chamado Helixion Labs não era nenhuma instalação civil. Era financiada pelo governo, enterrada sob uns bons quinze metros de concreto armado no cu do mundo. Pesquisa genética, evolução experimental… aquele tipo de coisa que só existe em filme de terror e fantasia. Eu tinha ouvido os boatos: animais com genes misturados, híbridos humano-animal, supersoldados feitos pra sobrevriar qualquer coisa. Achava que era papo de maluco, mas eu não fazia ideia do quanto tava errado.

Pousamos logo depois do amanhecer. A neblina tava baixa e pesada, engolindo qualquer som antes dele chegar nas árvores. O portão de aço tava escancarado, dobrado pra fora, como se alguma coisa tivesse forçado passagem pra sair.

Antes de entrar, Coleman passou o plano:

“Vamos resgatar sobreviventes, descobrir o que rolou, achar a sala dos geradores, colocar as cargas e vazar pelo túnel que sai dali pros lados da mata”, explicou ele. “A porta é trancada com código que me passaram. Assim que a gente sair, as cargas detonam e levam o prédio inteiro pro saco junto com tudo que tiver dentro.”

Terminou de falar e a gente entrou. Energia cortada. Só as luzes de emergência deixando os corredores num vermelho sufocante. Silêncio total, só o barulhinho do nosso equipamento e o chiado de vapor vazando de cano quebrado. Quanto mais fundo, pior o cheiro: carne queimada, sangue, podre e um troço químico que arranhava a garganta.

Achamos o primeiro corpo na recepção… ou o que sobrou dele. Um cientista, metade do tronco sumida. As costelas abertas pra fora tipo flor desabrochando, as tripas espalhadas pelo chão. Alguém tinha escrito uma palavra na parede do lado com os dedos tremendo.

CORRE.

“Ataque de animal?”, Torres sussurrou.

Coleman nem olhou pra ele. “Animal nenhum faz isso.”

Seguimos mais fundo, varrendo o corredor leste. Cápsula de bala, marca de queimado e jaleco rasgado pra todo lado. Num canto, um corpo meio fundido na parede. Carne e concreto misturados como se fossem a mesma coisa.

Os elevadores eram sucata retorcida, então descemos pela escada de serviço pro Subnível 3 – Divisão Genética. Cada degrau ecoava e meu coração parecia que ia rasgar o peito pra sair.

Aí a gente ouviu: um arranhado, metal no concreto.

Fields virou o fuzil com lanterna pro corredor e, por um segundo, eu vi movimento. Uma coisa pálida, rápida demais pra focar.

“Olhos abertos”, Coleman mandou. “Não tá vazio aqui. Cuidado com a retaguarda.”

Achamos outro corpo. Os ossos moles, dobrados em ângulo impossível. A pele escorrendo como cera de vela.

Torres quase vomitou: “Porra, Jesus Cristo, o que caralhos faz uma coisa dessas?”

Aí veio a respiração. Lenta, pesada e errada.

A coisa apareceu debaixo de uma porta que ela devia ter que se abaixar pra passar. Pele pálida quase brilhando, como se não tivesse sido feita pra luz. A mandíbula desencaixada, dentes pretos e finos que nem agulha, mas os olhos… puta merda, aqueles olhos… me encarando com uma inteligência humana que me congelou no lugar.

Coleman atirou primeiro, mas a coisa era mais rápida que qualquer coisa que eu já vi. Chegou no Fields antes da gente piscar.

Começou a rasgar ele com garras que pareciam lasca de osso. O som não era rugido… era tipo risada, distorcida, mecânica.

A gente abriu fogo tudo. Bala atravessava, mas a coisa não caía. Soltou um grito agudo que fez minha visão embaçar.

Quando ela sumiu de volta no duto de ventilação, Fields não tava mais de pé com a gente. Só sobrou uma poça de carne triturada, roupa, equipamento e sangue.

Seguimos porque tinha que seguir. Parar era começar a pensar no que a gente tinha acabado de ver.

Chegamos na sala de controle. Coleman achou um único vídeo que ainda rodava. A maioria tava corrompida, mas um funcionava: filmagem de uma cela de contenção. Um cara amarrado numa maca, gritando. As costas arqueando enquanto alguma coisa mexia debaixo da pele, aí a pele se abriu como casulo e uma coisa rastejou pra fora. Igualzinha à que matou o Fields.

Nome do arquivo queimou na minha cabeça: SUJEITO 47B – TESTE DE REGENERAÇÃO

Torres quis abortar a missão, mas Coleman bateu o pé que não.

Subnível 4 foi pior. O ar tava úmido e vivo. As paredes pulsavam de leve, como se respirassem junto com a gente. Uma coisa caiu do teto – fina, pálida, mais rápida que o olho consegue acompanhar. Matthews atirou por reflexo.

O clarão do cano iluminou outras penduradas nas paredes, agarradas que nem aranha, mas com forma de gente pela metade da transformação. Andavam de quatro, osso estalando a cada movimento.

A gente correu, mas elas vieram atrás gritando. Uma pulou em cima do Torres e grudou na perna dele. Virei e meti bala à queima-roupa, explodi metade dela fora dele… mas os tentáculos já tavam entrando na pele. Ele gritou até a voz virar gorgolejo.

Elas começaram a enxamear ele, os tentáculos se retorcendo debaixo da carne, esvaziando o cara por dentro. Quando terminaram, arrastaram o que sobrou dele pra parede – usando o corpo dele como saco de ovo.

Selamos o Subnível 4 e tentamos respirar, mas Coleman manteve a gente andando. Não pela missão… pela sanidade, pela ilusão de que ainda tinha algum controle.

O rastreador do Matthews pegou sinais fracos – vários, se movendo devagar e de forma irregular.

“Pode ser sobrevivente”, eu disse, voz falhando.

“Duvido muito”, Matthews respondeu. “Ninguém sobreviveu a isso aqui.”

Coleman suspirou: “Ele tá certo, mas a gente vai conferir mesmo assim.”

Aí veio o som. Primeiro baixo, depois crescendo.

Cantoria.

Uma melodia suave, meio desafinada mas dolorosamente familiar.

Cantiga de ninar. Aquela que toda criança conhece, mas meio segundo fora do tom, como se alguém tivesse esquecido a letra.

O som nos levou pra uma câmara onde o ar era quente e úmido, fedendo a podridão. Cabos pendurados no teto… só que não eram cabos. Balançavam e se retorciam no ritmo da música. Alguma coisa molhada pingou no ombro do Matthews. Quando ele olhou pra cima, congelou no meio da respiração.

O teto não era metal. Era carne viva. Os cabos eram intestino e língua pendurados, com nervo enrolado em volta.

E tinha dezenas… talvez centenas… de bocas humanas cravadas na superfície. Lábios rachados e tremendo, dentes batendo em perfeita harmonia. Algumas articulavam palavras mudas, outras cantavam em tons quebrados. As línguas se esticavam pra baixo, tateando o ar.

“Jesus Cristo…”, eu sussurrei.

Aí elas começaram a gritar. Todas ao mesmo tempo. O som parecia sucção virada do avesso.

Matthews abriu fogo e sangue – ou sei lá o quê – choveu em cima da gente, chiando no chão. Mas as bocas não paravam. Formavam palavras que não existiam em língua nenhuma.

De repente uma língua desceu chicoteando, enrolou no pescoço do Matthews. Ele arranhou, olhos esbugalhados. Segurei as pernas dele e puxei. A língua se soltou… junto com metade da garganta dele. Morreu na hora nos meus braços.

As bocas começaram a rir.

Coleman jogou uma granada incendiária. Fogo tomou o teto inteiro, carne estourando que nem óleo quente. A cantoria parou e virou grito que foi morrendo no silêncio.

Quando a chama apagou, só sobraram dois de nós.

Chegamos no setor de segurança. A energia reserva piscou por alguns segundos. Naquele clarão, vimos dentro das celas reforçadas: formas que talvez um dia tinham sido gente, ou bicho, ou os dois. Corpos pegos no meio da transformação, congelados em posições que doíam só de olhar.

Foi aí que caiu a ficha: todos aqueles boatos sobre Helixion eram verdade. As aberrações nas celas eram soldados, protótipos que deram errado. Eles tavam tentando construir a própria evolução… e conseguiram.

Achamos a sala dos geradores e armamos as cargas. Coleman mandou eu cobrir a porta.

Quando ele colocou a última carga, ouvi respiração vindo de cima. A coisa começou a falar com várias vozes ao mesmo tempo, tipo rádio trocando de estação sem parar.

Caiu em cima do Coleman com um baque pesado. Essa era diferente – maior, mais completa. As outras pareciam protótipos ou no meio da evolução… essa era o produto final.

O corpo era um remendo perfeito de várias pessoas costuradas. Eu reconheci pedaços… rostos que eu conhecia, olhos que eu conhecia. Não mortos, não vivos… só presentes.

A boca se abriu na vertical, partindo a cabeça no meio, revelando fileira atrás de fileira de dente fino e afiado.

Coleman gritou pra eu correr, mas eu travei, Deus me perdoe, eu travei.

“É ORDEM, MARTINEZ! CORRE! Usa o túnel – código 8593! AGORA VAI!”

Aí a coisa começou a rasgar ele, carne e osso que nem manteiga. Coleman não gritou… foi lutando, enfiando a faca até o corpo amolecer.

Atirei na aberração até o pente acabar. Quando terminou com o Coleman – que agora era só um monte de carne rasgada e sangue – ela olhou pra mim e ficou parada. Aí falou.

Não com palavras, mas a última coisa que eu ouvi antes da explosão foi a criatura imitando perfeitamente a voz do Coleman, implorando pra eu não abandonar ele.

Nem lembro de digitar o código, entrar no túnel ou como cheguei na mata. Só sei que não tava sozinho quando cheguei lá.

Quando as cargas explodiram, a instalação desabou… mas a floresta se mexia de um jeito que não era vento. Da encosta onde eu tava, vi formas rastejando pra fora dos escombros. Dezenas, talvez centenas, se espalhando pela mata.

Tô escondido há três horas. Rádio morto, a mata ficou em silêncio total, como se tudo aqui estivesse prendendo a respiração.

Tô usando o celular pra botar isso no mundo. Já tentei ligar e mandar mensagem, mas o sinal caiu. As criaturas devem ter derrubado as torres, isolando todo mundo aqui do resto do planeta.

Pelo menos a internet ainda pega, então postar isso é minha única chance de avisar vocês. Eu sei que vazar isso vai custar meu emprego, minha carreira, tudo… mas eu não ligo mais. Vou fazer o possível pra continuar atualizando.

Se alguém tá lendo isso: NÃO MANDA RESGATE. NÃO VEM INVESTIGAR. Só espalha esse post pra caralho pra avisar o que tá vindo e prepara tua casa.

Porque eles tão na superfície agora… e evoluíram pra máquinas de matar perfeitas.

domingo, 7 de dezembro de 2025

Mãe

O quarto respirava aquela quietude cara, cara mesmo, daquele tipo de casa que parece montada por decorador de revista, não vivida. Tudo no lugar, tudo perfeito, tudo gritando dinheiro velho e terapia cara. A mãe estava plantada no meio disso tudo como se fosse a peça que segurava o arco inteiro, ombros pra trás, postura impecável, aquela simetria ensaiada que tinha carregado ela por décadas de crise sem nunca deixar rachar a fachada. O mundo dela dependia de superfície intacta. Ordem era sinônimo de nada sair do lugar. Ela sabia disso sem nunca precisar falar em voz alta.

Eu entrei sem cerimônia, não invadi, cheguei. Cheguei com o peso de algo que já estava atrasado vinte anos. Passos lentos, firmes, cada um dizendo que aquilo não era conversa, não era negociação. Não tinha raiva no meu peito. Tinha era uma neutralidade pesada de quem já pagou o preço da briga dentro da própria cabeça antes de abrir a boca. O ar entre a gente engrossou, encolheu, virou uma coisa viva em volta da gente.

Ela me observou chegando do mesmo jeito que sempre observou tudo que ameaçava o equilíbrio do mundo dela: analítica, olhos farejando mudança de tom, de postura, de intenção. A cabeça dela já procurando automático uma gaveta, uma categoria, uma alavanca pra controlar a situação. Mas não tinha. Não tinha linguagem clínica, não tinha manual, não tinha terapeuta pra botar no meio e absorver o impacto. Só nós dois. Só ela. E a sombra comprida da nossa família esticada no chão entre nossos pés como um fantasma.

Ela nunca vai esquecer o segundo em que eu atravessei a linha que sempre existiu entre a gente. Antes, sempre um abismo. Eu não fui pra cima dela com raiva, nem com súplica. Fui com uma calma que desmontava muito mais. Levantei a mão devagar, dedos abertos, desarmado. O gesto era simples, mas o significado era foda: depois de vinte anos rodando um ao outro em órbitas calculadas, eu finalmente escolhi tocar.

Foi aí que apareceu a primeira rachadura fina na máscara dela. Não era medo, nunca. Era o estalo de perceber que ela não estava mais dirigindo aquela cena. A respiração dela falhou quando a palma da minha mão encontrou a dela. A mão dela era quente, firme, absurdamente estável. O instinto dela era gerenciar o momento, moldar aquilo em algo suportável, mas meu aperto recusou o roteiro com jeitinho, mas recusou total.

Eu puxei ela pra um abraço. Um abraço que foi crescendo aos poucos, cada centímetro de aproximação desfazendo mais um tijolo daquela fortaleza que ela construiu desde o dia em que me entregou pra tentar arrancar a dor do próprio peito. Pra mim, aquilo era a subida: a verdade virando carne. Eu segurei ela como quem segura o peso inteiro do passado, sem esmagar mais, só sem deixar escapar de novo sem ser reconhecido nunca mais.

Pra ela, o abraço era desorientação pura. Sentiu meus braços na cintura dela; não era força, não era castigo, era só constância. E foi essa constância que fodeu com ela. Minha mãe, que dominava todas as formas de controle menos essa: o momento em que o passado resolve aparecer vivo e respirando.

Quando meu abraço apertou mais, devagar, com vontade, não era pra dominar. Era pra impedir que o mundo dela desviasse o olho da verdade. O abraço virou cadinho onde tudo que nunca foi dito virou vapor. Eu joguei toda minha resistência ali, músculos tremendo não de esforço físico, mas de contenção. Não pra machucar ela, mas pra impedir que o estrago que eu carregava dentro de mim transbordasse errado. A densidade emocional daquele toque era insana. Eu não estava segurando só o corpo dela. Estava segurando vinte anos de silêncio.

Pra ela, foi o instante em que ela se dissolveu, não porque eu tirei, mas porque a verdade que ela tinha emparedado finalmente arrebentou a parede. Minha insistência era o solvente. Minha firmeza era o instrumento.

Meu ápice veio quieto. Sem grito. Sem acusação. Só o momento em que o abraço chegou no limite. Quando meu corpo começou a ceder sob o peso psíquico que eu arrastei até ali. Senti o tremor nos braços, o corpo querendo colapsar, e segurei mesmo assim, não deixando o momento virar simbólico ou contido.

Ela sentiu também, o tremor, o esforço. Aquilo bateu nela como revelação. Não era dominação. Não era teatro. Era o filho dela segurando ela como se a única forma de falar a verdade fosse sangrando o próprio corpo até o fim.

Eu passei a lâmina no meu pescoço. E aí ela gritou.

Não era medo. Não era choque. Era o som do controle dela, a língua materna dela, estilhaçando. Explodiu do fundo da alma, cru, sem filtro, a nota exata que ela engoliu por vinte anos toda vez que repetiu pra si mesma “ele vai ficar bem”, toda vez que assinou mais um cheque, toda vez que preferiu acreditar nos profissionais do que no próprio instinto.

Eu aguentei o grito, deixei passar por mim como tempestade. Quando minha força acabou, não foi desabar. Foi conclusão. Afundei, não pra longe dela, contra ela, corpo dobrando enquanto meus braços amoleciam, esgotados de carregar a verdade até onde precisava.

Ela me amparou sem pensar, joelhos cedendo, o suéter de lã merino branca fudido pra sempre. O grito foi morrendo, deixou ela ofegante, tremendo, suspensa nas ruínas da própria certeza. Ela me apertou porque não sobrava mais nada pra fazer. Nenhuma estrutura, nenhum roteiro, nenhum sistema pra consultar. Só consequência.

Eu fiquei lá no chão, não quebrado, não derrotado. Não mesmo. Só vazio. Ela meio ajoelhada, meio de pé em cima de mim, mãos tremendo, respiração curta, olhando o ponto exato onde filho e culpa se encontravam numa cena impossível de negar.

No silêncio que veio depois, nada foi resolvido. Nada foi perdoado. Nada foi consertado.

Mas tudo foi visto, finalmente, sem os filtros que o sistema ensinou ela a usar.

E pela primeira vez em vinte anos, ela não tinha controle nenhum.

Só verdade.

Os olhos da minha senhora não são nada parecidos com o sol…

Eu não tô escrevendo isso porque acho que alguém vai poder me ajudar.

Tô escrevendo porque, se eu não tirar isso da cabeça, vou vacilar — e se eu vacilar, talvez eu fique. E ficar é pior.

As pessoas dizem que o luto faz a gente ver coisa onde não tem. Que ele preenche o vazio com qualquer forma que doa menos. Eu acreditava nisso, naquela época em que acreditar ainda parecia uma escolha. Hoje eu sei que o luto não inventa nada. Ele só arranca as partes de você que dizem “não”.

Eu tinha trinta e quatro anos quando minha esposa morreu. Sou corretor de imóveis — daqueles simpáticos, que lembram nome de cliente, que riem fácil demais, que ouvem o tempo todo que são “gente boa”, como se isso fosse um mérito só por não ser um babaca completo. Antes de tudo isso, eu tinha uma vida normal. Não perfeita. Mas real. Tínhamos uma casa que rangia no inverno e uma cafeteira que só funcionava se você desse um tapa do lado. Brigávamos por cor de tinta, esquecíamos aniversário um do outro e nos beijávamos na cozinha como se o tempo fosse infinito.

O local de trabalho dela pegou fogo numa terça-feira.

Na quinta, a imprensa já chamava de “evento com múltiplas fatalidades”. Na sexta, os restos eram “não identificáveis”. Eu lembro da frase porque quem falou disse com voz mansa, como se isso tornasse mais leve. Como se ainda não significasse que você nunca mais vai ver a pessoa.

Eu nunca vi o corpo dela. Não tinha corpo pra ver. Tinham fragmentos, disseram. Cinza, calor, desabamento. Então assinei papéis que não li e fiz que sim com a cabeça pra gente cujos rostos escorregavam da minha memória assim que paravam de falar. Uma semana depois, alguém me entregou uma caixinha e disse que eu podia levar ela pra casa.

O velório foi de caixão fechado. Claro que foi. Não tinha nada pra abrir.

Naquela noite, coloquei a urna na mesa da cozinha e sentei na frente dela até o sol se pôr. Lembro de pensar, absurdamente, que era mais leve do que eu esperava. Isso me incomodou mais do que qualquer outra coisa. Como se uma prova mínima, baseada em peso, tivesse sumido.

Apaguei no sofá depois da meia-noite.

Ela me acordou falando meu nome.

Não da porta. Não do corredor. Da sala, como sempre fazia quando me pegava cochilando em lugar idiota.

Eu lembro exatamente do que pensei, porque pareceu tão lógico que quase doeu.

Eles erraram.

Erro de identificação acontece. Eu já tinha ouvido falar. Registro dentário incompleto. DNA demora. Incêndio é caos. Em algum hospital que eu ainda não chequei, ela tinha acordado confusa, machucada e sozinha, e agora tinha voltado pra casa porque pra onde mais ela iria?

Ela estava na porta quando levantei a cabeça, vestindo roupa que devia ter ganhado no hospital porque não servia direito.

Sorriu pra mim do jeito que sempre sorria quando queria que eu parasse de fazer pergunta.

“Não quero falar sobre isso”, disse, antes mesmo de eu abrir a boca. “Eu vi muita coisa. Não quero reviver.”

Aquele deveria ter sido o momento.

Em vez disso, pareceu piedade.

O luto deixa a gente grato pelas menores permissões.

Por um tempo — mais tempo do que eu gostaria de admitir — quase funcionou. Ela circulava pela casa do mesmo jeito. Sabia onde ficava tudo. Reclamava da dobradiça frouxa do armário e dava comida pro gato do vizinho quando eles esqueciam. Dormia encolhida em mim, quente e respirando, como uma pessoa que nunca tinha sido queimada pra fora do mundo.

Eu não contei pra ninguém. Dizia pra mim mesmo que era cautela. Que precisava de tempo antes de corrigir o erro oficialmente. Ia ter papelada. Pedidos de desculpa. Investigações. Imaginava notícias sendo atualizadas discretamente, o nome da minha esposa retirado das listas de mortos.

Mas toda vez que eu tentava imaginar a explicação, algo travava na minha cabeça. A explicação engasgava. As palavras se desfaziam.

Então eu esperei.

Ela nunca falava do incêndio. Se eu chegava perto demais sem querer, ela virava o rosto, ou encostava a cara no meu peito, ou dizia que ainda não aguentava. Eu me convencia que trauma fazia isso. Pesquisei sintomas. Dissociação. Mutismo seletivo. Culpa de sobrevivente. Tudo encaixava se você forçasse o suficiente.

No começo eu nem notei os olhos.

Ou notei e escolhi não processar. Isso é mais difícil de explicar, mas é mais verdadeiro.

Foi durante o sexo. Acho que isso importa. Não foi uma descoberta carregada de romantismo. Não foi ela sorrindo no escuro nem parada errada na frente do espelho. Foi cru, perto, humano. Suor, respiração, o som que ela fazia quando eu fazia aquela coisa que ela gostava.

O rosto dela estava a centímetros do meu. Me inclinei pra beijar e os olhos dela se abriram.

Pupila e córnea eram pretos.

Não dilatados. Não sombreados. Pretos, como se alguém tivesse preenchido com caneta. O resto do olho era normal — branco onde tinha que ser branco, veias fininhas e rosadas. Mas o centro engolia luz de um jeito que não fazia sentido.

Eu travei.

Ela percebeu na hora. Claro que percebeu. Minha esposa sempre percebia quando eu ficava assim, parado.

“Ei”, sussurrou, tocando meu rosto. “Tá tudo bem?”

Eu disse pra mim mesmo que era a luz. Que meu cérebro tava dando pane de tanto estresse, luto, alívio absurdo de tê-la de volta. Quando pisquei, quando me afastei só o bastante pra respirar, ainda estavam lá.

Pretos.

Nunca voltaram ao normal.

Eu não falei nada.

Essa é a parte que eu não consigo me perdoar — não completamente. Eu sabia que algo estava errado. Uma parte de mim soube na hora, com a clareza de um sino batendo. Não que ela tinha sobrevivido. Não que tinham errado. Algo mais frio.

E mesmo assim eu escolhi.

Depois disso, os olhos dela eram sempre assim quando eu olhava de perto. De manhã, à tarde, refletidos em janelas e na TV. Às vezes eu quase conseguia esquecer se ficasse no ângulo certo, se não focasse. Mas se ela me pegasse encarando, a ilusão quebrava de novo.

Uma vez ela perguntou por que eu olhava pra ela “daquele jeito”.

“Que jeito?”, perguntei, já sabendo.

“Como se estivesse vendo um fantasma.”

Eu ri. Até fiz piada. Alguma besteira sobre falta de sono.

Ela me olhou por um tempo longo antes de se inclinar pra beijar minha bochecha. Os lábios estavam quentes. A pele cheirava como ela.

No trabalho, o pessoal dizia que eu parecia melhor. Menos oco. Diziam que era bom eu estar “seguindo em frente”.

Ninguém mais via os olhos.

Eu testei, primeiro de leve. Convidei gente pra vir em casa. Observei reflexos. Fiquei atrás de amigos enquanto ela conversava com eles, procurando confusão, medo, qualquer coisa nos rostos deles. Nada. Pra todo mundo, ela era exatamente o que parecia ser.

Quando ela me contou que estava grávida, eu chorei tão forte que assustei nós dois.

O bebê parecia prova. Não exatamente da humanidade dela — mas de continuidade. De um futuro que não tinha sido totalmente queimado. Eu me convencia que nenhum monstro se daria ao trabalho com algo tão pequeno, tão frágil. Que nenhuma mentira se deixaria crescer daquele jeito.

A gravidez foi normal. Consultas, vitaminas, vontades. Ela ficou mais doce naqueles meses, mais suave, como se soubesse que estava sendo observada mesmo quando eu tentava não olhar.

Comecei a beber mais. Fumar também. Só o suficiente pra tirar a ponta, pra amaciar o quanto eu percebia as coisas. Não fazia os olhos sumirem, mas desacelerava o jeito como meus pensamentos se encaixavam. Me deixava existir no meio-termo.

Eu dizia pra mim mesmo que fazia isso por ela. Pelo bebê.

Nosso filho nasceu quieto.

Saudável, disseram os médicos. Peso bom. Coração forte. Olhos normais. Não chorava muito. Na verdade, quase não fazia nada. Só olhava.

Só chorava quando ela demorava demais pra voltar.

Ela era uma boa mãe. Talvez essa seja a parte mais cruel. Paciente, atenciosa, delicada. Segurava ele como se ele importasse. Se tinha algo errado no jeito que ela o amava, era sutil demais pra eu separar do meu próprio medo.

Eu achava que dava pra viver assim. Achava mesmo.

Achava que saber, em silêncio, era suficiente. Que enquanto eu não dissesse em voz alta — você não é minha esposa — o mundo não ia desabar com a confissão.

Mas só dá pra olhar pros olhos de alguém e sentir algo recuando dentro de você um número limitado de vezes.

Perto do fim — acho que isso aqui é o fim, né? — comecei a observá-la quando ela achava que eu não estava vendo. Parado nas portas. Parando no meio da escada. Me convencendo que era só cuidado, como um homem protegendo a família.

Uma noite eu não consegui dormir. O baby monitor zumbia baixinho na mesinha de cabeceira. Ela tinha se levantado mais cedo, ido pro quartinho.

Eu fui atrás.

A porta estava entreaberta. Não sei o que eu esperava. Acho que uma parte de mim ainda torcia pra não ver nada. Pra eu ter estado errado de um jeito que doesse, mas que desse pra sobreviver.

Ela estava de costas pra mim, em pé ao lado do berço.

Os braços estavam longos demais.

Não de um jeito dramático. Não uma transformação grotesca repentina. Simplesmente errados — esticados além da proporção, dobrando em ângulos que sugeriam juntas que eu nunca tinha visto antes. As pernas eram iguais, alongadas e finas, a postura levemente curvada pra dentro, como um marionete cujas cordas tinham afrouxado.

Ela balançava.

O bebê não chorava.

Eu não respirava.

Por um momento — só um momento humano e idiota — achei que ela parecia cansada.

Aí ela virou a cabeça, e mesmo sem ver o rosto dela, eu soube que se ela me olhasse, algo dentro de mim ia se quebrar de vez, sem conserto.

Recuei. Devagar. Com cuidado. Como quem sai de uma cena de crime que ainda não quer nomear.

Foi aí que admiti pra mim mesmo, de verdade, sem escapatória nem linguagem suavizada.

Eu tinha sabido o tempo todo.

Só tinha amado mais a mentira do que a verdade.

Arrumei uma mala antes do sol nascer. Pouca coisa. Só o suficiente pra parecer decisão. Ela não acordou. O bebê continuou dormindo.

Fiquei na porta mais tempo do que deveria. Tempo suficiente pra gravar na memória o formato do quarto como ele estava. Tempo suficiente pra imaginar, idiotamente, que eu podia congelar tudo ali.

Não disse pra ela o que eu ia fazer. Não sei se ela teria me impedido.

Não sei se ela teria se importado.

Agora tô aqui no carro, digitando isso com as mãos tremendo, tentando ter coragem de terminar o que comecei. Não tenho respostas. Não sei o que ela é, o que ela quer, nem no que nosso filho vai se transformar.

Só sei que não aguento mais carregar isso.

Se você tá lendo isso e acha que reconhece a situação — se o luto um dia te devolver algo que parece quase certo — por favor, olha pros olhos. E se eles não forem o que deveriam ser, não faça o que eu fiz.

Não fique.

Tô tão cansado.

Desculpa.

sábado, 6 de dezembro de 2025

O Urso Morango

“Ei, olha ali! É o Urso Morango!”

Era uma tarde de sexta-feira escura e deprimente. Minha irmãzinha de oito anos, a Emma, deu um gritinho animado e puxou a barra do meu moletom enquanto a gente voltava da escola a pé. Tirei os olhos do celular e olhei pro outro lado da rua. Lá estava um cara dentro de uma fantasia de pelúcia de urso, com traços exagerados e bem caricatos: olhos azuis enormes cheios de brilho, um laço vermelho gigante no pescoço e um monte de acessórios de morango da cabeça às patas. Ele segurava um buquê de balões flutuantes e dançava de um jeito meio apático.

Coitado, pensei. Deve estar morrendo de calor lá dentro o dia inteiro, balançando pra lá e pra cá entretendo criança barulhenta. O tecido barato do pelo parecia molhado e grudado, provavelmente por causa da chuva forte de mais cedo.

“Posso tirar uma foto com ele, por favor, Luke?”

Emma implorou. Eu fiz cara feia.

“Não, a gente tem que chegar cedo em casa, lembra? Não quero a mãe surtando e me ligando igual da última vez.”

Eu tava sendo um babaca, eu sei. Todas as crianças daqui amavam o Urso Morango, e a Emma não era exceção. A Strawberry Bear Co. começou como uma rede de sorvete e doces, depois o mascote fez sucesso e eles começaram a vender mercadoria e bichos de pelúcia do urso querido. Tirar foto com o Urso Morango era tipo o auge do “cool” pra molecada.

A Emma ficou visivelmente triste. Mas ela sempre foi uma irmãzinha gente boa, então só segurou minha mão e a gente continuou andando pra casa. Eu lembro que fiquei puto. Nenhum de nós queria essa merda. A Emma já tinha idade pra voltar sozinha, a escola dela ficava a poucos quarteirões de casa. Já a minha escola ficava mais longe, e eu tinha que pegar outro ônibus só pra buscar ela. Ou seja: perdia os rolês depois da aula com a galera e, óbvio, descontava nela.

Era uma bosta.

Meus pais não eram assim antes. Na verdade, eles incentivavam a gente a se divertir depois da aula e a ser independente. Tudo mudou quando crianças do bairro começaram a sumir. Algumas foram encontradas… ou melhor, pedaços delas. Quem fez aquilo era um filho da puta monstruoso. Eu ouvi a polícia usar a palavra “espalhados” pra descrever os restos que achavam. Isso deixou minha mãe paranoica pra caralho; ela passou a me obrigar a buscar a Emma todo santo dia e ainda botou horário pra gente chegar junto em casa.

Na sexta passada eu pensei “um sorvete não mata ninguém” e levei a Emma pro parque. Resultado: minha mãe ligando, chorando, fazendo escândalo. Tentei entender, mas uma parte de mim ficou com raiva e se sentindo impotente. Comecei a odiar tudo isso. A Emma era nova demais pra entender o tamanho da parada, mas dava pra ver que ela também tava assustada e frustrada.

Quando passamos correndo pelo Urso Morango, senti ela apertar mais minha mão. Tinha alguma coisa errada naquela fantasia, mas eu não sabia o quê.

O urso ficou parado. Completamente imóvel.

Os dias foram passando, zero pistas sobre as crianças desaparecidas, e eu tava ficando louco de tédio buscando a Emma todo dia. Sentia falta de jogar bola com os caras e, em alguns dias de sorte, ver a Alex no banco também. Ela é legal, vai. Eu me pegava encarando o cabelo curto, fofo e loiro-morango dela mais do que eu queria admitir. O Sam foi o primeiro da turma a sacar.

“Ei, tu não vem pro jogo hoje não?” Ele perguntou no recreio. “A Alex vai estar lá.”

Revirei os olhos, mas meu coração acelerou.

“E tu tem certeza disso porque…?”

“Uma amiga dela me contou. Sabe como é, eu sou o queridinho das minas.”

Eu ri. O Sam sempre se acha o engraçadão, mas aquilo me animou. Era bom pensar em qualquer coisa que não fosse minha irmã e um assassino filho da puta solto por aí.

“Cara, eu adoraria ir, mas tenho que buscar a Emma. Não tem negociação.”

“Pô, mano. Deixa ela sozinha um dia só. A gente sente falta de você no time.”

“Veremos.”

Falei e me despedi. Fiquei pensando nas possibilidades durante as aulas da tarde. Desde o mês passado eu buscava ela todo dia e nunca aconteceu nada. Ninguém chegou perto dela nem tentou levar. Nossa casa era logo ali. Ela já sabia gritar por socorro e minha mãe tinha martelado o papo de “perigo de estranho” na nossa cabeça.

Não ia fazer diferença se eu deixasse ela sozinha um dia só.

Um diazinho. Pra mim. Pros meus amigos. Pra Alex. Como recompensa por eu ser tão responsável o tempo todo. Fazia total sentido. A Emma chegaria em casa antes da minha mãe perceber. Fui inventando desculpa atrás de desculpa até o sinal tocar. Não peguei o ônibus pra escola dela. O Sam me jogou a calça de futebol reserva dele e disse que tava orgulhoso de eu finalmente “ter virado homem”. O tempo tava bom. Uma brisa leve bagunçava o cabelo da Alex enquanto ela sorria pra mim do banco. Ela tem olhos azuis claros, iguais aos meus, iguais aos da Emma. Iguais aos das crianças desaparecidas que eu via nos jornais.

Aquilo me deu náusea.

“Ei, cara, tu tá bem?”

O Sam pareceu preocupado. Tentei respirar fundo e me preparar pro jogo, mas meu estômago revirava. Antes que eu conseguisse organizar a cabeça, já soltei:

“Sam, empresta tua bike?”

“Claro, mano… mas pra quê?”

“Preciso ir buscar a Emma.”

Peguei as chaves dele e saí voando. Não sei se andar de bike daquele jeito dá multa, mas se desse eu teria levado umas dez naquele dia. Pedalei sem parar até ver a Emma voltando sozinha pra casa. Ela tava com carinha triste, provavelmente porque eu não apareci, e pelo tanto que já tinha andado, deve ter esperado pelo menos uma hora antes de desistir.

“Emma!”

Gritei.

“Luke!”

Ela virou a cabeça e abriu um sorriso enorme. Correu e me deu um abraço bem apertado.

“Eu fiquei tão preocupada! Achei que o ‘cara mau’ tinha te pegado.”

Na hora eu quis dar um soco na minha própria cara do passado. Enquanto eu pensava só em mim e nos meus rolês, esqueci que a Emma também tava estressada e com medo por causa de tudo que tava rolando… e mesmo assim ficou preocupada comigo.

“Desculpa, Emma.”

“Tá tudo bem!” Ela murmurou. “Essa bike é do Sam? O que aconteceu?”

“Nada importante. Vamos pra casa.”

Enquanto a gente andava pela rua, eu vi o Urso Morango de novo. Era o mesmo de antes, dava pra reconhecer pelo pelo molhado e grudado e pelo mesmo buquê de balões. Dessa vez a Emma nem pediu pra tirar foto. Só agarrou a manga do meu moletom e abaixou a cabeça. A ficha caiu como um caminhão de isekai (essa eu aprendi com o Sam). Pessoas vestidas de Urso Morango sempre ficam em lugares lotados — parque, shopping, evento — pra fazer propaganda. Por que esse tava ali parado? Numa rua vazia, à tarde, num dia cinzento do caralho? Um arrepio subiu pela minha espinha. Falei pra Emma:

“Pula na bike.”

Ela estranhou, mas não discutiu. Fiquei de olho no urso enquanto a gente passava por ele. Imaginei que ele fosse sair correndo atrás da gente com uma faca ou alguma merda assim.

Mas o Urso Morango só ficou lá. Parado.

Da próxima vez que eu vi ele, tava em tudo que era canal de TV.

Lembro da foto do urso na tela, da bile subindo pela garganta, do medo tão real que arrepiava a pele inteira. Era ele o monstro que tinha matado todas aquelas crianças. O cara, que já tinha trabalhado na Urso de Morango Co., roubou uma fantasia e usava pra atrair as crianças pro porão dele. Só foi pego porque ficou confiante demais e tentou pegar uma criança mais velha, que conseguiu correr e avisar a polícia. Meu corpo inteiro tremia sem parar. Se eu tivesse deixado a Emma sozinha naquele dia, se eu não tivesse largado o jogo e a chance de falar com a Alex…

“Luke?”

A Emma botou a cabeça pra fora do quarto, confusa. Eu só fui até ela, me ajoelhei e puxei ela pra um abraço bem forte, com os dedos tremendo. Eu tava apavorado com o que poderia ter acontecido com ela. Como eu já disse, a Emma é uma irmãzinha gente boa, então só ficou parada ali e deu uns tapinhas sem graça nas minhas costas.

“Luke, não fica triste. Eu te dou meu ursinho antigo, tá? A mamãe comprou um novo pra mim.”

Ela tirou do bolso um bichinho de pelúcia do Urso Morango. Eu dei uma risada meia-boca e recusei — ia ter pesadelo pro resto da vida se aceitasse aquela coisa no meu quarto. Mas olhando pro bicho de novo, com luz do dia, finalmente entendi o que tinha me incomodado tanto.

O ursinho oficial da Emma era rosa choque, quase neon. Abracei minha irmã mais forte ainda, segurando a vontade de vomitar. O Urso Morango assassino que a gente encontrou tava com uma fantasia molhada, grudenta, de um tom bordô escuro.

Estava encharcada de sangue.

Listras

Quando eu era mais novo, a hora de dormir sempre foi uma parada difícil e assustadora pra mim. Não era medo do escuro, não – era uma coisa bem mais sinistra, por conta própria.

Minha cabeça de criança sempre botava a culpa nos sonhos ou na minha família zuando comigo. Olhando pra trás, eu me sinto um completo idiota por achar que alguém da família ia se dar ao trabalho de me sacanear tão tarde da noite.

Família, no caso, era só uma pessoa mesmo. Cresci só eu e minha mãe.

Minha mãe era artista – ou pelo menos era louca por coisa artística quando eu era pequeno. Ela curtia especialmente fazer roupa. Por isso, tinha uns manequins espalhados pela casa. Eles ficavam sempre no ateliê dela, onde ela usava pra provar as peças.

Queria que a gente tivesse sacado o que tava rolando bem antes.

Eu tinha pesadelos com frequência. Experiências aterrorizantes que minha mente inventava na hora de dormir. Acho que era por isso que era tão difícil aceitar. Também era o principal motivo de ir pra cama ser um sacrifício daqueles. Até hoje não sei se os primeiros foram realmente pesadelo ou não.

Eu lembro com detalhes das três vezes que aquilo aconteceu.

A primeira vez eu nem liguei muito. Deitei, consegui dormir sem drama. O problema foi continuar dormindo. Primeiro era só escuridão. Aí meus olhos abriram.

Eu tava no meu quarto, ainda na cama. Só que alguma coisa tava diferente. O quarto tava muito mais escuro do que algumas horas antes – normal, quanto mais tarde, mais escuro fica.

Mas não foi isso que me apavorou. O que me fez mergulhar debaixo do cobertor foi uma figura parada bem no meio do quarto. Só conseguia ver porque tinha uns fiapos de luar entrando pelas frestas da persiana.

Olhei pro vulto o tempo suficiente pra sacar uns detalhes da roupa. A pessoa tava completamente imóvel, vestindo o que parecia uma calça social preta e uma camisa branca com listras pretas. Só isso. Não dava pra ver o rosto, e nem precisava. Ficou lá, parada. Eu não consegui gritar – não era que eu tava segurando, eu literalmente não conseguia. Fiquei tão apavorado que só consegui me enfiar no cobertor e esperar aquilo sumir.

Pode ser que eu tenha dormido de novo. Não sei, não lembro direito. Só sei que num momento eu tava escondido e no outro já tava acordando com o quarto todo iluminado pelo sol. A figura tinha sumido, então achei que tinha sido sonho.

Ainda assim fiquei na dúvida, e na hora do café perguntei pra minha mãe.

“Oi, mãe.” Eu falei. “Você… você colocou um dos seus manequins no meu quarto?”

O rosto dela mudou de tranquilo pra nervoso na hora. “O quê? Não, claro que não. Por que tá perguntando isso?”

“Ah, tá bom.” Respondi. “Então deve ter sido sonho.”

“Como assim?” Ela perguntou.

“Tinha uma pessoa no meu quarto, mas eu mal conseguia ver. Quando acordei de vez, não parecia que alguém tinha entrado. Acho que foi sonho.”

“Hmm.” Ela fez. “Que estranho. Qualquer coisa você me avisa, tá?”

“Tá bom.”

Preciso deixar claro: minha mãe nunca foi burra, em tempo nenhum. Ela pensou nas possibilidades. Revistou a casa inteira depois da nossa conversa e não achou nada. Não tinha como ela imaginar que aqueles sonhos, por mais reais que parecessem, podiam não ser só sonhos. Mas eu tô divagando. Não tinha como ninguém ter invadido a casa. Ela até desceu pro porão, inclusive nas partes que a gente evitava entrar. Nada.

O fato de ela não ter encontrado nada torna o que aconteceu depois ainda mais difícil de explicar, mas vou tentar.

O último caso foi mais ou menos uma semana depois do primeiro. Eu tinha acabado de pegar no sono e tava até sonhando uma coisa boa quando fui interrompido.

Dessa vez teve barulho de verdade. Acordei com o som do meu despertador caindo da cômoda e se espatifando no chão. Eu tinha certeza que tinha deixado ele bem longe da borda, mas vai que eu errei. Achando que tinha sido descuido meu, levantei um pouco o cobertor e me inclinei pra pegar.

Recuei horrorizado. Ali, saindo um pouco debaixo da minha cama, tinha um braço. Não era braço cortado, não – tava claramente ligado a alguém. O despertador não tinha caído perto da mão, então não dava pra ver direito, mas já saquei que era a mesma situação da semana anterior.

A luzinha do despertador mostrou que o braço era da mesma figura. Mesma camisa branca com listras pretas. Eu voltei pra trás na hora e me enterrei de novo no cobertor. Fechei os olhos com força. De algum jeito, mesmo com o pavor absoluto de ver aquela mesma coisa debaixo da minha cama, eu consegui dormir.

Na manhã seguinte, minha mãe tava puta da vida. Desci pro café já me preparando pra contar o que eu achava que podia ter sido sonho de novo. Ela tava de mau humor pra caralho. Pelo visto algum bicho tinha mexido lá fora e quebrado uma das janelas que davam pro porão.

Ela tava resmungando duas coisas. Primeiro: que o bicho que quebrou a janela ainda podia tá lá dentro. Quando ela foi ver, umas coisas tinham sido mexidas, principalmente perto daquela área escura tipo um vão de engatinhar. Segundo: como diabos ela ia pagar pra consertar a porra da janela. Eu e ela descobrimos que ela não ia precisar se preocupar com isso quando eu tentei falar com ela.

“Que foi?!” Ela cortou.

“Eu… hm.” Gaguejei.

“Desculpa.” Ela disse. “Tô só puta com essa janela. O que você queria me contar?”

“Eu vi de novo.” Falei. “A figura. Acho que eu tava sonhando?”

“Você sonha muito com isso.” Ela disse. “Lembra de algum detalhe?”

“Tava usando uma daquelas camisas listradas que você fez.” Respondi.

O rosto da minha mãe congelou. Ela ficou quieta um tempo. Quando falou, foi sério pra caralho. Me pegou pela mão e fomos direto pra porta de entrada. Enquanto eu calçava o tênis, perguntei:

“Por que você tá nervosa?”

Ela só respondeu quando já tava dentro do carro e ligando o motor. Olhou pra mim com aquele tom grave:

“Eu não fiz isso. Eu nunca fiz camisa listrada.”

Nós mudamos naquele mesmo dia.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Não vá até o local do Experimento de Inanição de Minnesota. Eles ainda estão com fome…

Estou escrevendo isso do meu apartamento, e preciso que você entenda uma coisa antes de eu contar o que aconteceu. Preciso que você saiba que o Experimento de Inanição de Minnesota foi real.

Em 1944, na Universidade de Minnesota, o Dr. Keys conduziu um dos estudos psicológicos mais perturbadores da história americana. Trinta e seis objetores de consciência — caras que se recusaram a lutar na Segunda Guerra Mundial — se ofereceram pra passar fome. Durante seis meses, recebiam umas 1.800 calorias por dia enquanto faziam trabalho pesado. Depois, passaram por três meses de “reabilitação”, sendo realimentados aos poucos.

Os resultados foram o puro terror. Os caras ficaram obcecados por comida: juntavam receitas, lambiam os pratos, alguns até pensaram em canibalismo. Entraram em depressão profunda, se mutilavam, mudaram tanto de personalidade que vários nunca mais voltaram ao normal. Um deles, tá registrado, cortou três dedos da própria mão com um machado — e nem lembrava se tinha sido de propósito ou não.

O objetivo do experimento era entender como realimentar populações famintas na Europa pós-guerra. Tudo aconteceu no porão do laboratório da Universidade de Minnesota, num prédio sem graça que ainda está de pé até hoje.

Eu sei disso tudo porque eu era consultor de demolição. Era. Era consultor de demolição.

Há três semanas, a Universidade finalmente liberou a demolição do laboratório antigo — o prédio onde o experimento rolou. A maior parte estava abandonada desde os anos 80, considerada obsoleta e cara demais pra reformar. Meu trampo era avaliar a estrutura, identificar materiais perigosos e planejar a forma mais segura de derrubar aquilo.

Entrei lá numa manhã de terça-feira. Sozinho.

O prédio cheirava errado desde o momento em que pisei lá dentro. Não era o mofo e podridão comum de lugar abandonado. Era mais forte, mais orgânico. Parecia uma fábrica de sebo que eu tinha vistoriado anos atrás, mas com um fundo azedo, de vômito.

Os andares principais eram normais: escritórios vazios, laboratórios sem nada, poeira de décadas. Meus passos ecoavam demais. As plantas mostravam quatro andares, mas quando chequei as escadas, vi marcações de um subsolo que não constava em nenhuma das minhas documentações — só um bilhetinho escondido no final do arquivo.

Curiosidade profissional é um perigo no meu ramo. Eu devia ter deixado pra lá.

A escada era estreita, de concreto institucional pintado de cinza há mil anos. A lanterna pegou algo nas paredes enquanto eu descia: arranhões. Profundos. Cinco linhas paralelas descendo o concreto, como se alguém tivesse cravado as unhas com força suficiente pra rasgar pedra.

O subsolo era um corredor comprido com várias portinhas. Celdas, na real. Cada uma com uma cama de ferro, uma mesinha e uma lâmpada pelada no teto. A anotação no meu arquivo dizia que aquele nível tinha sido usado pra “observação prolongada” em vários estudos. As portas ainda tinham números pintados: S1 até S36.

Trinta e seis quartos.

Trinta e seis cobaias.

Fiquei gelado apesar do casaco.

Os arranhões estavam em tudo ali embaixo: batentes, chão, até no teto. Num dos quartos, alguém tinha gravado na parede: AINDA COM FOME AINDA COM FOME AINDA COM FOME, repetido em espirais loucas que cobriam a parede inteira. A letra ia piorando, ficando mais descontrolada, mais rasgada.

No fim do corredor tinha uma porta pesada de aço com várias trancas. Uma placa dizia: OBSERVAÇÃO DE LONGO PRAZO. SOMENTE PESSOAL AUTORIZADO — DR. KEYS.

As trancas já estavam abertas.

Eu devia ter dado meia-volta. Meu Deus, eu devia ter dado meia-volta.

O cômodo lá dentro era enorme, uns 12 por 18 metros, com o teto sumindo na escuridão acima do alcance da lanterna. O cheiro me acertou como um soco: aquele cheiro de fábrica de sebo multiplicado por cem. E por baixo, outra coisa. Uma coisa que fez meu cérebro reptiliano gritar.

Tinham camas arrumadas em fileiras perfeitas. Trinta e seis camas.

Vinte e três estavam ocupadas.

Preciso que você entenda: eu já vi cadáver antes. Acidente em obra, uns suicídios em prédios que eu avaliei. Eu sei como é um corpo morto. Aquilo não eram cadáveres.

Eles estavam se mexendo.

Pouco. Só a respiração lenta, subindo e descendo. E eram… errados. Esquelético nem começava a descrever: eram corpos que tinham se devorado por dentro, queimado toda a gordura e depois começado no músculo, deixando só pele esticada sobre osso e tendão. Mas eram compridos demais. As proporções estavam tortas. Os dedos passavam muito do que deviam, com unhas grossas, amarelas e curvadas. As articulações inchadas, joelhos e cotovelos do dobro do tamanho normal.

E os olhos.

Quando a luz da lanterna passou pela cama mais próxima, os olhos se abriram de repente. Enormes, ocupando quase metade do rosto, pupilas tão dilatadas que pareciam buracos negros. Refletiam a lanterna como olho de bicho.

A boca daquela coisa se escancarou e eu ouvi um som que nunca vou esquecer: um estalo molhado, desesperado, como alguém tentando falar com a boca cheia de baba. A mandíbula desceu demais, e eu vi que os dentes tinham mudado — mais afiados, mais numerosos.

Depois ele se mexeu.

Nunca vi nada acelerar daquele jeito. Num segundo estava deitado; no outro já estava agachado na cama, cabeça inclinada num ângulo que quebraria o pescoço de qualquer pessoa normal. Não se movia fluido — dava uns trancos, como vídeo pulando quadro.

Todos os vinte e três acordaram. Vinte e três pares daqueles olhos gigantes, famintos, cravados em mim.

Eu corri.

Atrás de mim veio um barulho, não de passos, mas um estalar horrível, como se estivessem correndo de quatro. Ou de mais de quatro. Eu não olhei pra trás. Cheguei na escada e subi três degraus de cada vez, pulmão queimando, coração batendo tão forte que achei que ia explodir.

Uma coisa agarrou meu tornozelo.

Caí com tudo, queixo batendo no concreto. Atordoado, olhei pra trás.

Um deles tinha me pegado. A mão — se é que dava pra chamar assim — envolveu minha perna inteira, aqueles dedos compridos se encontrando do outro lado. O rosto dele estava a centímetros do meu, e eu conseguia ver cada detalhe na luz de emergência da escada.

Tinha sido homem um dia. Ainda dava pra ver na estrutura óssea, nos restos de humanidade agarrados às feições. Mas a fome tinha refinado ele em algo que a evolução nunca quis. A pele era translúcida, veias azuis visíveis como mapa. Os olhos desesperados, famintos, insanos.

A boca se abriu mais do que era possível, e eu vi a garganta se contorcendo, baba escorrendo pelo queixo em fios. O cheiro do hálito era indescritível: podre, ácido estomacal e algo químico.

Ele falou.

“Fome”, sussurrou, voz de folha seca. “Tanta… fome…”

Chutei a cara dele com o outro pé. Algo fez crack. Ele não soltou, mas recuou o suficiente pra eu arrancar a perna. Subi a escada engatinhando, depois me levantei e corri.

Cheguei no andar principal. A saída estava ali, luz do dia visível pelas janelas sujas. Eu ia conseguir.

Aí eu vi eles de novo.

Três no corredor à frente, bloqueando a porta. Deviam conhecer outro caminho pra subir. Se moviam daquele jeito horrível de stop-motion, pulando de um ponto pro outro, cabeças fazendo movimentos bruscos de ave pra me acompanhar.

O do meio usava o que sobrou de um crachá de voluntário da U of M. Ainda dava pra ler o ano: 1945.

Setenta e oito anos. Eles estavam lá embaixo há setenta e oito anos.

Olhei em volta desesperado e vi outra escada subindo. Corri pra lá, ouvindo aquele estalar atrás de mim de novo. Subi um lance, dois. Terceiro andar, corredor de escritórios vazios. Ali — uma janela, e uma escada de incêndio do lado de fora.

Não diminuí. Levantei os braços e me joguei no vidro.

Caí na escada de incêndio com força suficiente pra ver estrelas, vidro cravado na jaqueta e no cabelo. Embaixo, ouvi eles se atirando contra o batente da janela, incapazes ou sem vontade de seguir. Desci meio escalando, meio caindo, e corri pro meu caminhão.

Só parei de tremer direito quando já estava a mais de um quilômetro dali.

Não contei pra ninguém. Quem ia acreditar? Liguei pra universidade e disse que o prédio estava estruturalmente comprometido, que precisariam lacrar antes de qualquer demolição. Eles falaram que iam resolver.

Isso foi há três semanas.

No começo achei que estava bem. Assustado pra caralho, claro, mas bem. Tinha levado um susto, escapado, acabou.

Aí eu comecei a sentir fome.

Não fome normal. Era outra coisa. Eu comia uma refeição completa, enorme, mais do que eu costumava comer, e uma hora depois estava morrendo de fome de novo. Não só com vontade. Fome de verdade, dolorida, como se eu não comesse há dias.

Fui no médico. Ela fez exames. Tudo normal, disse. Metabolismo perfeito. Sugeriu que podia ser psicológico, me deu o contato de uma terapeuta.

Mas não é psicológico.

Eu sei porque perdi sete quilos em três semanas, mesmo comendo sem parar. Sei porque quando olho pras minhas mãos, meus dedos parecem mais compridos. Pouco. Só um pouco. O suficiente pra eu perceber quando digito ou pego um garfo.

Sei porque minhas articulações doem. Meus joelhos estalam quando levanto, e parecem inchados, quentes.

Sei porque ontem olhei no espelho e meus olhos pareceram grandes demais pro meu rosto.

Sei porque não consigo parar de pensar em comida. Todo pensamento volta pra isso. Sonho comendo, acordo com a mandíbula doendo de tanto ranger os dentes. Comecei a juntar receita de forma obsessiva, imprimi e cobri as paredes do apartamento com elas. Quando como, me pego lambendo o prato. Ontem me peguei calculando quantas calorias tem o cachorro da vizinha.

Sei porque a fome não tá mais na barriga. Tá nos ossos, nas células, no meu DNA. Tá me reescrevendo por dentro.

Passei de carro pelo prédio ontem. Tinham caminhonetes da manutenção da universidade lá fora, operários instalando chapas pesadas de aço em todas as janelas e portas. Nova placa: CONDENADO, PROIBIDA A ENTRADA, ESTRUTURA PERIGOSA.

Eles estão lacrando. Lacando eles lá dentro.

Mas pra mim já era.

Escrevo isso como aviso. O Experimento de Inanição de Minnesota não acabou em 1945. Continua rolando. Aqueles caras se voluntariaram pra passar fome pela ciência, pra ajudar a humanidade, e alguma coisa naquele processo transformou eles em algo que não devia existir. Talvez tenha sido a duração, a fome por tanto tempo que os corpos se adaptaram de formas impossíveis. Talvez tenha sido outra coisa, algo naquele prédio, naquele porão.

Não importa mais.

O que importa é que eu sinto acontecendo. As mudanças estão acelerando. Meus dedos estão definitivamente mais compridos hoje. Tive que aumentar o teclado no trabalho. Minha mandíbula estala quando mastigo, como se os ossos estivessem se soltando, se preparando pra esticar. Tô com tanta fome que mal consigo pensar, e comer não adianta mais. Nada adianta.

Ontem à noite senti vontade de voltar. Voltar pro prédio, pro porão. A fome me chama, sussurra que o alívio tá esperando no escuro com os outros. Que eu pertenço lá agora. Que sempre pertenci.

Tô tentando resistir. Tô tentando muito resistir.

Mas eu tô com tanta fome.

E meu contrato de aluguel vence mês que vem. Acho que não vou renovar.

Se você estiver lendo isso, fique longe do laboratório antigo no campus da Universidade de Minnesota. Não chegue perto. Não tente investigar. Lacrararam agora, mas lacre se quebra.

E pelo amor de Deus, se um dia você estiver perto daquele lugar e ouvir som de arranhões vindo de baixo da terra, se sentir aquele cheiro de fábrica de sebo misturado com vinagre e coisa errada, corra.

Porque eles ainda estão com fome.

Nós ainda estamos com fome.

E eu não acho que aguento muito mais tempo.

Meus dedos estão compridos demais pra digitar direito. Vou parar aqui.

Tem trinta e seis camas lá embaixo. Acho que uma delas sempre foi minha.
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Escritor do gênero do Terror e Poeta, Autista de Suporte 2 e apaixonado por Pokémon