Meus faróis queimaram há três dias — os normais, não os altos — e eu continuava planejando trocá-los, mas o trabalho tem sido punk e eu fui adiando. Então, hoje à noite, voltando pra casa pela Estrada do Condado 12, estou só com os faróis altos, a chuva caindo em cortinas, e mal consigo enxergar cinco metros à frente.
Foi quando o nevoeiro apareceu.
É denso. Absurdamente denso. Diminuo a velocidade, meu pé pisando leve no freio, e através daquela parede branca eu vejo uma forma. Pequena, rente ao chão. Uma criança, talvez. Ou um cachorro. Algo vivo, sólido, bem no meu caminho.
Piso fundo no freio, me preparo pro impacto, fecho os olhos...
E nada.
Quando abro os olhos, estou além do nevoeiro, só tem a estrada vazia à frente, molhada e preta. Meu coração tá disparado. Olho pelo retrovisor, mas o nevoeiro já tá se desfazendo atrás de mim, virando fiapos que somem no nada.
Só nevoeiro. Nevoeiro denso. Devo ter imaginado coisas.
Continuo dirigindo pra casa.
Passo pela fazenda dos Patchett uns três quilômetros depois. Já passei por lá mil vezes. A casa branca, o celeiro vermelho, aquele carvalho antigo no quintal. Só que hoje à noite, quando meus faróis altos varrem a propriedade, vejo a dona Patchett na janela da cozinha.
Ela tá lavando louça.
Não é estranho; conheço meus vizinhos o suficiente pra saber da rotina deles. O estranho é o jeito que ela tá fazendo isso. As mãos dela se movem em círculos precisos, repetidamente, no mesmo movimento, mas tem algo mecânico nisso. Performático, como se ela estivesse interpretando o papel de alguém lavando louça, em vez de realmente limpá-las.
E o rosto dela. Só vejo por um segundo enquanto passo, mas o rosto dela tá virado diretamente pra janela, e a expressão é completamente vazia. Não é cansaço, não é pensativa. Vazia. Oca.
Digo pra mim mesmo que tô imaginando coisas de novo. A adrenalina de quase bater em algo tá me deixando paranoico. A dona Patchett tá só cansada. É tarde. As pessoas ficam avoadas o tempo todo quando lavam louça.
Continuo dirigindo.
Outro banco de nevoeiro aparece uns dois quilômetros depois, ainda mais grosso dessa vez. Reduzo pra um rastejo.
Agora, vejo outros carros. Três deles, vindo na direção oposta. Os faróis cortam o nevoeiro como holofotes, e por um instante — só um Praganas — vejo os motoristas, e minha cara se contorce em algo feio.
Eles não estão dirigindo. Estão consumindo.
Não sei como explicar de outro jeito. As bocas entreabertas, os olhos fixos à frente, e eles não são mais só pessoas voltando do trabalho ou fazendo coisas do dia a dia. Eles tão se alimentando. O movimento em si — o ato de seguir, ocupar espaço, avançar — eles tão devorando isso. Como se a distância fosse algo que precisam engolir só pra continuar existindo.
Uma delas é uma mulher num sedã. Quando nos cruzamos, ela vira a cabeça levemente e nossos olhos se encontram através do nevoeiro e da chuva.
Não tem nada por trás dos olhos dela. Nada mesmo. Só a performance desesperada e automática de ser uma pessoa dirigindo um carro.
Aí passo pelo nevoeiro de novo, e minhas mãos tão agarrando o volante com tanta força que os nós dos dedos tão brancos.
Encosto o carro. Preciso encostar.
Tô numa saída com vista pro lago Miller. Coloco o carro em ponto morto e tô respirando rápido demais. Isso é choque. É meu cérebro dando tilt porque quase atropelei algo e meus nervos tão à flor da pele e não tenho dormido bem e—
Olho pro celular e continuo digitando porque preciso escrever isso. Preciso que alguém veja isso antes que eu me convença de que nada aconteceu.
Tá, tô mais calmo agora. Faz uns dez minutos que tô aqui sentado, engolindo ar pros pulmões e soltando devagar pra acalmar os nervos. A chuva tá mais leve, minha respiração desacelerou, e meu coração não tá mais batendo como um bicho preso atrás das costelas.
Dá pra ver as luzes da cidade daqui, espalhadas pelo vale como moedas jogadas no chão. Pessoas nas suas casas, vivendo suas vidas. Suas vidas normais pra caralho.
Vou terminar de dirigir pra casa. São só mais uns cinco quilômetros. Talvez alguém possa me dizer que tô tendo um ataque de pânico ou que tem algum vazamento de gás me fazendo alucinar. Alguma coisa racional.
Tem um posto de gasolina 24 horas na entrada da cidade. Não tava planejando parar, mas o tanque tá quase vazio e não quero lidar com isso amanhã de manhã.
Encosto. As luzes fluorescentes são brilhantes demais depois de dirigir no escuro, e tudo parece desbotado e artificial. Só tem mais um carro aqui — uma picape azul na bomba três.
Saio do carro. A chuva parou, mas o ar tá pesado de umidade, e dá pra ver meu hálito.
O cara na bomba três tá enchendo o tanque. Eu o reconheço. David alguma coisa — trabalha na loja de ferragens. Já comprei tinta e lâmpadas com ele, aquelas interações rotineiras de cidade pequena onde vocês não são bem amigos, mas conhecem o rosto um do outro.
Ele me vê e aceno com a cabeça. Aceno de volta.
Começo a bombear gasolina, e aí o nevoeiro volta.
Vem do nada, denso e baixo, seus tentáculos se acumulando ao redor das bombas como algo vivo. O David tá lá parado, olhando pra bomba, e eu tô olhando pra ele, e o nevoeiro tá subindo.
A mão dele tá no bico da bomba, mas ele não tá olhando pros números. Tá olhando pro nada. E agora eu vejo — vejo de verdade — do jeito que não vi antes.
Ele tá oco.
Não é metáfora. Eu vejo a forma dele, o contorno de um cara de jaqueta segurando uma bomba, mas não tem nada dentro. Sem pensamentos, sem sentimentos, sem... essência. Só a performance em si. O comportamento aprendido de ser o David-no-posto-de-gasolina, executando o roteiro: encher o tanque, checar os números, guardar o bico, pegar o recibo, ir embora.
E por baixo disso tudo, por baixo da performance, tem só essa necessidade desesperada e corrosiva de fazer alguma coisa, de continuar se movendo, porque parar significa enfrentar o vazio.
Ele tá se alimentando do ato de completar tarefas, da ilusão de que qualquer coisa — qualquer uma dessas merdas — significa alguma coisa.
O nevoeiro engrossa, e eu me vejo no reflexo da janela do carro.
Meu Deus.
Meu Deus, eu tô fazendo isso também.
Tô aqui parado bombeando gasolina à noite porque é isso que as pessoas fazem. É isso que eu devo fazer. E vou dirigir pra casa, vou entrar, vou fazer café ou checar meus e-mails ou assistir alguma coisa no celular, e cada ação é só eu tentando preencher o vazio. Tentando me convencer de que não sou oco.
Mas eu sou.
Todos nós somos.
O David-alguma-coisa entra na picape e vai embora enquanto o nevoeiro começa a se dissipar.
Minha bomba desliga com um clique. Coloco o bico de volta. Pego o recibo.
Executo o roteiro.
Dirijo mais sete minutos rua abaixo, e agora tô em casa.
Tô parado na garagem há vinte minutos, encarando a porta da frente.
Lá dentro tá a minha vida. Meus móveis, minhas rotinas, minha existência cuidadosamente construída. A pessoa que eu finjo ser quando acordo, faço café, vou pro trabalho, volto pra casa e faço tudo de novo.
Mas agora não dá pra desver.
Cada escolha que faço, cada palavra que digo, cada interação com outra pessoa — é tudo só uma performance, uma ilusão compartilhada e elaborada de que somos reais, de que importamos, de que qualquer uma dessas merdas significa alguma coisa.
E a pior parte? A pior parte de todas?
Vou continuar fazendo isso.
Vou entrar. Vou tirar o casaco. Vou escovar os dentes, ir pra cama, acordar amanhã e fazer tudo de novo. Porque o que mais tem pra fazer?
Então vou continuar performando. Continuar consumindo. Continuar alimentando o vazio.
Igualzinho a todo mundo.
Tô postando isso agora porque talvez seja tudo o que podemos fazer — estender a mão pelo vazio, na esperança de que outra pessoa veja também, na esperança de que compartilhar o horror torne ele mais suportável.
Mas agora eu sei.
Esse post é só mais uma performance. Mais uma forma de preencher o vazio. Tô usando a atenção de vocês, a validação de vocês, as respostas de vocês pra me convencer de que eu existo.
Todos nós fazemos isso. Cada post, cada comentário, cada interação — somos todos coisas ocas tentando se sentir sólidas por um momento.
O nevoeiro não mudou nada, não de verdade.
Preciso entrar agora. Preciso continuar performando. Porque a alternativa é admitir que não tem nada pra performar.
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