terça-feira, 14 de outubro de 2025

O que deixei na colina

Nunca pensei que voltaria aqui. A cidade está menor do que eu lembrava, e olha que ela nunca foi grande coisa. Tudo está mais quieto agora, como se alguém tivesse abaixado o volume uns graus.

É outono, então a praia não foi limpa pra receber nadadores ou famílias. Montes de algas vermelhas e enegrecidas, misturadas com conchas vazias, emolduram a linha d’água, trazendo o mesmo cheiro de sal, peixe e podridão. Pelo menos isso não mudou.

Voltei porque quis ver tudo de novo. Meus filhos já cresceram e saíram de casa, e meu marido faleceu há algumas semanas — câncer de próstata, quem diria — e eu só precisava de um pouco de conforto. Estava me sentindo tão sozinha.

Tive um sonho com ela, também. Ela estava sentada debaixo da macieira, a maior de todas, com o cabelo grudado no rosto. Aquele sorriso brincalhão estampado, como se tivesse acabado de me vencer em algum jogo que ela mesma inventou. A gente sabia que ela tinha trapaceado.

Encontrei um aluguel bem legal. É fácil achar um, especialmente na baixa temporada. Da janela do meu quarto, dá pra ver as telhas vermelhas da casa amarela. Não são as mesmas, claro. Reconstruíram depois do incêndio. Ninguém diria que uma criança morreu ali.

Também consigo ver minha antiga casa. Parece a mesma, só que renovada. Mais nova do que era. Tem um trampolim no quintal da frente e um balanço pra crianças pequenas. É reconfortante imaginar que uma criança pode estar dormindo no meu antigo quarto, com as paredes recém-pintadas, pôsteres grudados com tachinhas e livros numa prateleira. Eu teria adorado isso. Quando era meu, o teto vazava quando chovia; cheirava a mofo, não a tinta fresca ou produto de limpeza. Eu não podia guardar livros ali.

Naquela época, e acho que agora também, a cidade ficava morta por nove meses do ano. Os adultos brincavam que a gente só acordava quando os turistas começavam a chegar, lá pela metade de junho, pouco antes do solstício de verão. Era quando os restaurantes ficavam abertos mais de dois dias por semana, quando as lojinhas de souvenirs no píer paravam de parecer abandonadas. O mercadinho local ficava bem abastecido com frutas e legumes que não eram só maçãs da região, repolho ou batatas.

Meu pai ficava fora a maior parte do ano, trabalhando na Noruega, mas voltava pros verões. Tinha uma barraquinha no píer onde vendia lanches e balões, e sempre chegava em casa cheirando a pipoca, algodão-doce quente e fumaça de charuto. Acho que ele era mais gentil com os filhos dos turistas do que com os próprios.

Não acho que minha mãe queria ter filhos, mas acabou com três. Ela e meu pai mal se falavam, e aquele verão não foi diferente. Ele estava ocupado demais com o trabalho e, suponho, com outras mulheres. Ela, por sua vez, estava atarefada com meu irmãozinho e minha irmã. Havia sete anos de diferença entre mim e minha irmã, que tinha três anos, e dez entre mim e meu irmão. Naquele verão, eles não eram boa companhia pra brincar. Nem depois, mas por outros motivos.

Eu nunca fui uma criança popular. Não que sofresse bullying, ou que as outras crianças fossem cruéis comigo: eu participava das brincadeiras, como pega-pega ou esconde-esconde, mas nunca era escolhida primeiro. Tinha que lembrar aos outros que eu estava ali. No geral, me sentia meio invisível.

Não me importava tanto, ou pelo menos gosto de fingir que não.

Entre nossa casa e a amarela ao lado havia um pedaço de terreno que, no verão, virava um matagal de ervas altas e flores silvestres, com um pequeno círculo de árvores, meio cercado e inútil pra qualquer construtora. Não era grande o suficiente pra construir nada, e o lote tinha um formato esquisito. Ficava ali, esquecido, zumbindo com abelhas no verão e ficando cinza e duro no inverno. Eu passava muito tempo lá.

Costumava levar um cobertor e um livro da biblioteca, às vezes uma maçã, e sentava debaixo da maior bétula. Era o único lugar que parecia meu. Minha mãe não se importava onde eu estava ou o que fazia, desde que voltasse antes do jantar, e não tenho certeza se meu pai lembrava da minha existência.

Ninguém mais se incomodava com aquele lugar, nem as outras crianças. O capim era alto o suficiente pra se esconder. Eu me lembro de deitar ali, olhando o céu por entre os talos, sentindo que o mundo fora do meu santuário estava pausado. Que nada importava além das nuvens e de mim, que éramos as coisas mais importantes — as únicas — no universo.

Um dia, encontrei um ninho. Estava mais baixo que o normal, no espaço onde um galho quebrado se encontrava com o tronco. Era lindamente trançado com gravetos e palha, com um fio de plástico vermelho entrelaçado nas formas complexas. Dentro, três ovos: pequenos, azuis com pintas escuras, cada um único. As coisas mais lindas que eu já tinha visto. Me lembro de prender a respiração enquanto me aproximava, com medo de que até isso pudesse quebrá-los. Parecia que tudo aquilo era pra mim, e tornava minha clareira ainda mais mágica.

Eu os visitava todo dia. Nunca toquei neles, nem ousava encostar no galho pra ver melhor. Só ficava na ponta dos pés, contava-os e sussurrava pra eles. Contava o que comi, o livro que estava lendo, como odiava ouvir os choros do meu irmão através da parede. Como me sentia sozinha. Que estava torcendo por eles. Era o melhor tipo de segredo.

Depois, eu sempre ia pra casa amarela. O jardim, cheio de banheiras pra pássaros, macieiras e pedras gastas, parecia uma extensão da magia. Eu caminhava por ali, tocando as árvores, fingindo que era filha de uma família rica que me amava, e que um dia aquela casa seria minha. Viveria ali com meu marido, comendo bolinhos frescos com geleia na varanda branca, vendo minhas filhas subirem na velha macieira.

A rotina era quase sempre a mesma, e eu geralmente terminava o dia sentada na pequena colina atrás da casa amarela, onde ela encontrava a floresta. Era cheia de morangos silvestres e cheirava a pinho e bétula, abafando o fedor do mar. Era perfeita pra rolar morro abaixo, se você não se importasse com as manchas de grama.

Um dia, eu estava deitada de bruços na grama no topo da colina. O sol estava se pondo, e eu observava uma fileira de formigas pretas cruzando meu braço. Era uma cócega. Tinha acabado de decidir parar de enfiar morangos silvestres em talos secos quando ouvi o zumbido. Um som suave carregado pelo vento, mas suficiente pra quebrar minha rotina e me assustar.

Havia uma garota debaixo da velha macieira, olhando pros galhos. Seu zumbido parecia distraído, como se estivesse pensando muito em algo.

Ela usava um vestido branco com detalhes azul-claros, do tipo bonito demais pra correr ou subir em árvores, e seus sapatos tinham fivelas prateadas. Fiquei imediatamente com ciúmes, mas também intrigada. Suas mãos estavam cruzadas nas costas, educadamente, e eu me lembro de pensar que ela não pertencia àquele lugar, no meio do matagal.

Ela virou a cabeça quando me viu, e eu congelei. Ninguém vinha aqui, e parecia que eu tinha sido pega fazendo algo secreto e errado. Então, ela sorriu e acenou, animada. Pulando, ela veio em direção à colina, com a mão ainda nas costas.

“Oi!” disse ela, sem um pingo de timidez. “Não sabia que alguém brincava aqui.”

Não respondi de imediato. Sentei, tentei limpar a grama e as manchas de morango das calças, cruzei os braços.

“Não é bem um lugar pra brincar,” falei com cuidado, as bochechas ardendo. “Só gosto de sentar aqui.”

“Ah, é onde eu sento também!”

Quase disse que não era, mas desviei o olhar.

“Meu nome é Clara,” disse ela, soltando as mãos e colocando-as na cintura. “Você mora por aqui?”

Assenti, e ela começou a subir a colina, sem se importar que o vestido ia ficar verde e vermelho. Não falei nada.

Ela se jogou ao meu lado e suspirou.

“É o único lugar que parece meu,” disse ela.

A partir daquele dia, ela ficou. Foi gradual: não me lembro de termos dito que éramos amigas, mas foi o que aconteceu.

Alguns dias, ela estava sentada debaixo da macieira de manhã quando eu chegava, com os joelhos dobrados, o cabelo brilhando ao sol. Outros dias, ela vinha pulando da casa amarela até a clareira, chamando meu nome.

Os dias ganharam um novo padrão. Nos encontrávamos de manhã, explorávamos os jardins, subíamos a colina, fazíamos coroas de margaridas e deitávamos na grama até cheirarmos a verde. Ela falava sem parar: sobre a cidade, a escola, os pais que a deixavam ter um toca-discos próprio. Eu ouvia, na maior parte. Ela gostava de decidir o que faríamos, e eu ficava feliz em seguir. Ela era ótima em inventar jogos, e igualmente boa em mudar ou ignorar as regras pra vencer. Não me incomodava. Eu gostava de ser escolhida.

Às vezes, eu a pegava me olhando com uma pequena ruga no canto da boca, como se estivesse tentando entender algo. Outras vezes, ela ficava quieta no meio de uma história, distraída, e então ria de novo como se nada tivesse acontecido. Era um pouco estranha, assim, mas eu não ligava. Finalmente tinha uma amiga.

Eventualmente, levei ela pra clareira. Foi quando tudo começou a dar errado.

O ar naquele dia estava quente e pesado. O céu parecia desbotado e manchado. Passamos a manhã correndo ao redor da macieira, olhando flores e rolando a colina até meu cabelo ficar cheio de sementes e o vestido dela não estar mais branco. Ela riu o tempo todo. Eu me lembro de pensar que não era possível rir tanto de algo tão comum. Será que ela não fazia coisas mais emocionantes do que rolar uma colina na beira da floresta?

Quando deitamos na grama, depois, contei sobre a clareira. Sobre como era mágica pra mim, como ninguém mais ia lá. Sobre o ninho, com os ovinhos azuis, e como eu tinha certeza que logo iam chocar. Como me sentia quase uma mãe, de um jeito mágico: que sussurrava meus segredos pros ovos, e inventei uma história sobre desejos se tornarem realidade se contasse pros ovos antes de chocarem. Não sei por quê. Acho que, naquele momento, queria algo que fosse meu. Tentar ser quem guiava, pra equilibrar nossa amizade. Talvez eu devesse algo a ela.

Ela se apoiou num cotovelo, me olhou com os olhos arregalados.

“Você vai me mostrar?” perguntou.

Assenti, sentindo um misto de orgulho e nervosismo. Fomos juntas, dedinhos mindinhos entrelaçados. Meu coração estava cheio, e havia uma excitação no ar.

Fui tão cuidadosa, afastando os galhos pra mostrar o ninho no berço, garantindo que ela visse como eu era delicada.

Os ovos estavam iguais. Três ovais azuis perfeitos, aninhados entre a palha e o fio vermelho. Então, o ar pareceu esvaziar.

“Só isso?” disse ela, com uma sobrancelha erguida.

Senti um frio repentino. Desviei o olhar, dei de ombros. Não sabia o que dizer.

Clara olhou pros ovos, depois pra mim. Sentia seus olhos queimando na lateral do meu rosto. Ela ficou na ponta dos pés, levantou um dedo pros ovos.

“Não!” falei, segurando seu braço. Puxei de leve, mas ela continuou o movimento. O dedo roçou a palha, deu um empurrãozinho. Os ovos balançaram.

“São só ovos,” disse ela, suspirando. “Quem liga? Vamos nadar.”

Ela puxou a mão, deixando os galhos voltarem. Eles bateram no ninho. Então, ela saiu pulando da clareira.

Eu a segui. O que mais podia fazer?

Naquela noite, não dormi. Toda vez que fechava os olhos, via os passarinhos: rosados e indefesos, sem asas, logo abaixo das cascas. Vivos e esperando, alheios. Um dedo grande, a ponta manchada de suco de morango, bem ali do lado. Eles não sabiam.

Na manhã seguinte, estava tudo errado.

O galho estava quebrado na base. O ninho pendia por um fio de palha, o cordão vermelho partido ao meio por alguma força. Dois ovos caíram na terra, um deles rachado. Nas frestas da casca, dava pra ver a membrana fina como papel molhado. Dentro, algo que deveria ficar escondido — rosado e malformado, inacabado, ossinhos brancos brilhando onde as formigas começaram. O outro estava esmagado, cacos azuis com pintas numa bagunça de vermelho, amarelo e viscoso que revirou meu estômago.

O último ovo ainda estava no ninho, mal se segurando. A casca tinha uma rachadura no meio, um buraco do tamanho de um polegar. O conteúdo coagulou no ar da noite, e uma única pena estava grudada na meleca, tremendo ao vento. Eu tinha certeza de ouvir a mãe pássaro lá em cima, chorando.

Fiquei lá, tremendo. Meu estômago parecia vazio, mas não chorei. Não de imediato. A clareira estava quieta e parada, exceto pelo zumbido das moscas perto do meu ouvido.

Naquela tarde, encontrei Clara sentada nos degraus da casa amarela, balançando as pernas e comendo uma maçã. Era do mesmo tom de vermelho dos restos dos meus pássaros.

“Cadê você?” perguntou, com um tom mais ríspido que o normal. Dava pra ver que estava irritada comigo.

Dei de ombros, não olhei pra ela. Sentei ao seu lado nos degraus, as mãos cruzadas no colo.

“Aconteceu algo com os pássaros?” continuou, com simpatia.

Estremeci, meus olhos fixos no rosto dela.

“Como você sabe?” engasguei. As lágrimas vieram, então. Via os pássaros toda vez que piscava, e era triste demais.

“Bem, você não devia ficar contando sobre essas coisas por aí. Sabe como são os meninos.”

“Eu não contei pra ninguém—”

“Contou, sim! Quando brincamos de esconde-esconde com os meninos ontem. Te falei que era má ideia.”

Não discuti com ela, nunca discutia. Mas naquela noite, pensei nas palavras dela, revirando-as até fazerem ainda menos sentido.

Eu não tinha contado pra ninguém. Sabia que não. Mesmo assim, no dia seguinte, na praia, os meninos sorriram estranho pra mim. Um deles imitou o bater de asas com os braços, depois fez um gesto de esmagar algo entre as palmas.

Quando contei pra Clara, ela só deu de ombros.

“Viu? Te falei que eles descobririam. Meninos estragam tudo.”

Algo dentro de mim rachou, então. Pequeno, mas permanente.

Depois disso, ela começou a querer passar mais tempo com as outras crianças. Eu a via correndo descalça pela areia, gritando, rindo e brincando de luta, com o vestido levantado até que, mais tarde, trocou por um short e uma camiseta amarrada na cintura, como as turistas mais velhas. Ela não olhava mais pra mim com frequência, e eventualmente parou de me chamar de manhã. Nunca estava em casa quando eu chegava, e, com o tempo, parei de ir também.

Quando ela finalmente apareceu de novo, uma semana depois, já era agosto. Não chovia há um tempo, e tudo estava amarelo e seco. A grama estalava sob seus pés quando ela correu até mim aquela manhã. O sol já estava alto: precisei semicerrar os olhos pra vê-la.

Ela falou rápido, como sempre fazia quando queria dominar o ar entre nós, e me puxou junto. Segui, mais por hábito, deixando ela me arrastar pro jardim. Ela garantiu que mantivéssemos uma boa distância da clareira, e nenhuma de nós olhou pra lá ao passar.

Enquanto subíamos a colina, senti esperança. As últimas semanas foram como antes de Clara, e eu não estava mais acostumada com a solidão. Era bom ouvir a voz dela de novo. Talvez tudo pudesse voltar ao que era antes.

Mas, em vez disso, ela tirou uma caixinha de lata do bolso do short. Era azul, com iniciais gravadas na tampa. A caixa de fósforos do meu pai, que ele usava pros charutos.

“Tô entediada,” começou, sorrindo com expectativa. “Vamos brincar de algo novo. Só pra nós.”

Uma inquietação me acertou como um tijolo, mas sentei ao lado dela mesmo assim. Bem no topo da colina, onde as raízes das árvores apareciam e o chão era pelado. Íamos levar bronca por sujar a roupa.

Clara abriu a caixinha, derramou os fósforos na palma da mão. Rolou-os entre os dedos, o sorriso nunca deixando o canto dos lábios. Ela não me olhou diretamente.

“Olha,” disse, e riscou um. A faísca pulou, e uma pequena chama nasceu na ponta; laranja, depois azul na base. Ela a trouxe perto, muito perto do rosto, os olhos brilhando de deleite.

Mal conseguia respirar. “Clara, para. Você vai se queimar.”

Ela riu, aquela risada fácil que parecia feita pra me fazer sentir menor. “Tá tudo bem. Olha? É só um pouco de fogo.”

Ela começou a falar sobre homens das cavernas, mas eu não ouvia. O fósforo queimava rápido, e meus olhos estavam grudados nele. Cada músculo do meu corpo estava tenso.

Quando chegou na ponta dos dedos, ela gritou e soltou o fósforo. Caiu sem som na grama seca. Uma fumaça começou a subir, serpenteando entre as lâminas. Ela pisou com o pé descalço, o sorriso crescendo. “Viu? Nada.”

Mas ela não parou. Outro risco, outra chama. Um leve cheiro de enxofre, misturando-se ao aroma seco do campo e da floresta. Cada fósforo ela jogava mais rápido, mais brilhante, mais perto da parte mais seca do mato.

“Clara, para,” implorei. “Só criança acha que brincar com fósforos é legal.”

Ela me ignorou, agachando, observando enquanto o vento empurrava as brasas pro lado.

Foi quando disse que ela ia pra casa, que estava sendo idiota. Que eu ia me meter em encrenca, e eu não queria isso.

Ela nem olhou pra mim. Só riu, e riscou outro fósforo.

Virei e comecei a descer a colina, em direção a casa. Não corri, embora quisesse. Sentia o sol queimando minha nuca, e minha garganta estava apertada. Ouvi o fósforo riscar de novo, e o cheiro de fumaça. O leve chiado que veio depois, e então, nada. Eu já estava muito longe.

Não vi o que aconteceu depois.

Não vi.

Mas, às vezes, quando penso nisso, consigo imaginar como deve ter sido. Ela agachada, acendendo outro fósforo, o cabelo caindo pra frente, a fita azul um pouco perto demais da chama no chão. A grama seca finalmente pegando fogo, primeiro baixo, depois rápido demais. Ela pensaria que era só um fio de fumaça, mas estava muito, muito seco. A chama se inclinando, pegando num cardo seco, a fita dela encostada ali. Então, puff. A camiseta branca grudada nas costas com o suor, ela se levantando rápido, em pânico, derrubando a caixinha. O vento fazendo o resto.

A próxima coisa que me lembro é o cheiro de madeira queimando, e minha mãe gritando meu nome da varanda. O céu, lá no horizonte, estava laranja: uma fumaça preta e densa subia da colina numa linha bagunçada, como um tornado desenhado no papel.

As pessoas corriam e gritavam, apontando.

Nunca mais subi aquela colina.

Também não fui pra casa. Fui pra clareira, sentei ao lado da árvore onde estavam meus passarinhos. Onde ainda via pedaços de casca azul com pintas espalhados pela grama. Peguei o maior que encontrei e guardei no bolso.

Depois, chamaram de acidente. O chão estava muito seco, que azar. Não era incomum, crianças brincando com fogo. Estúpido, mas não incomum.

O funeral foi de caixão fechado, e os adultos decidiram que era melhor eu não ir. A mãe dela me deu uma mecha do cabelo dela, amarrada com uma fita azul. Ainda a tenho.

Trouxe a caixa de memórias pra cá. Acho que sei por quê. Minha infância não foi feliz, mas teve pedaços que me fizeram quem sou hoje. Aquela Barbie que eu tinha, o cabelo todo embaraçado de tanto brincar; o pedaço de casca de ovo, ainda azul com pintas; alguns gizes de cera, a mecha de cabelo; coisas aleatórias que guardei.

Hoje de manhã, quando voltei de um passeio na praia, a caixa estava na bancada da cozinha. A caixinha azul de fósforos. Tenho certeza que não a tirei de lá.

A luz do sol batia nela, perfeita. Refletindo no esmalte azul gasto. A tampa estava meio aberta, e eu podia ver as pontas vermelhas dos fósforos que sobraram.

Agora, no escuro, meus olhos ficam voltando pra casa amarela, aquela que não estava vazia naquele verão. As macieiras cresceram tortas e cheias de galhos, curvadas sob o peso, as copas cheias de maçãs vermelhas, prontas pra colher. Parecem crocantes.

De vez em quando, a vejo ali, debaixo da maior delas. Uma figura pequena, de branco, com fitas azuis no cabelo loiro que brilha na luz. Quando pisco, ela some.

Acho que amanhã levo a caixinha de fósforos pra colina. Só pra devolver ao lugar certo. Parece que ela está se aproximando, e isso me assusta.

Sempre que fecho os olhos, sinto o cheiro do mar — e da fumaça.

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