Juro que não estou louco. Mas tenho observado minha cidade se transformar, e parece que me jogaram cem anos no futuro.
Quando eu era garoto, as ruas eram de terra batida, e as crianças jogavam beisebol de taco até o anoitecer. Você conseguia ouvir o estalo das tacas e o riso dos vizinhos de um canto da Rua Principal até o outro. Fazendeiros vendiam ovos e maçãs na beira da estrada. Cavalos trotavam passando, carroças rangiam, e o prédio mais alto da cidade era a biblioteca, três andares imponentes com vitrais no topo.
Todo mundo andava a pé. Era a coisa mais simples do mundo. Até a padaria, à igreja, ao armazém. Você cumprimentava metade da cidade só dando um rolê de duas quadras.
Mas aí, de repente, as coisas começaram a mudar.
Na primeira semana, as estradas de terra foram raspadas e cobertas com asfalto preto. A calçada debaixo dos bordos, aquela que todo mundo usava pra ir ao mercado, foi aplanada. “Progresso”, o prefeito chamou. O mercado em si foi reconstruído mais pra longe. Ninguém se importou, exceto eu, quando percebi que a caminhada tinha dobrado de tamanho.
Na segunda semana, a estrada dobrou de largura, depois dobrou de novo. Ontem, duas carroças cabiam lado a lado; hoje, seis faixas rugindo de máquinas zumbem passando. Atravesar virou tipo ficar na frente de um pelotão de fuzilamento. Um garoto chamado Samuel não conseguiu atravessar. Os motoristas só buzinavam, como se ele não tivesse o direito de estar ali.
Os prédios mudaram em seguida.
A biblioteca, que um dia teve janelas de vidro colorido no terceiro andar. Lembro de subir as escadas com meu pai. Mas uma manhã, era só uma caixota de tijolos baixa, sem graça e sem janelas. A casa da Margaret perdeu o segundo andar da noite pro dia. As pessoas só deram de ombros.
E aí alguns prédios não só encolheram; eles sumiram. O correio. A farmácia. O velho teatro. Uma noite eles tavam lá. De manhã, os lotes tavam lisos, pintados com listras. Ninguém nem comentou a perda.
A Rua Principal não lamentou também.
Os negócios de família foram pro brejo, um por um: o alfaiate, a padaria, a loja de brinquedos. Eu pensei que ia rolar uma tristeza, mas em vez disso as pessoas sorriram. Elas diziam: “Tudo bem, tem uma loja maior a vinte minutos daqui”. Diziam como se fosse uma boa notícia, como se facilitasse a vida. Até os donos das lojas, com as caras pálidas nas vitrines vazias, forçavam sorrisos durinhos e assentiam, como se fosse tudo pro bem maior.
Foram os sorrisos que me deixaram mais encucado.
A vendinha da esquina rolou diferente.
Eu acordei uma noite e vi uma multidão parada do lado de fora. Eles não gritavam. Não discutiam. Só encostavam as mãos no tijolo. As paredes rangiam como se algo vivo estivesse se contorcendo de dor. Ao nascer do sol, a loja tinha sumido. O chão tava liso e preto. O Sr. Alvarez também. Quando perguntei por ele, as pessoas viravam a cara pro outro lado.
Até as casas começaram a se torcer.
Onde antes tinha calçadinhas levando das portas da frente pra rua, os caminhos dobraram pro lado da noite pro dia. Agora eles só levam pras garagens. Sai pela porta e você é guiado direto pro carro. As casas em si parecem se afastar um pouquinho mais pra trás a cada noite. Dez metros. Vinte. Em alguns casos, você mal consegue vê-las da rua. As vozes não carregam tão longe assim.
E os gramados não param de se esticar.
Lembro quando o Sr. Dawson empurrava a cortadeira assobiando, e a Sra. Henson manejava a foice como o pai dela antes. Os quintais eram pequenos, o trampo rápido. Agora parecem campos. Ninguém mais corta a grama a pé. Eles andam em máquinas pequenas por gramados infinitos que não eram tão grandes ontem. De longe, os caras pilotando parecem brinquedos rodando em círculos sem fim.
As crianças sumiram também; não sumiram, mas se esconderam.
Elas costumavam jogar beisebol de taco na rua, linhas de giz rabiscadas no asfalto, gritos ecoando pelo quarteirão. Agora, toda vez que um motor ronca, as mães saem correndo e puxam elas pra dentro. Portas batem, cortinas se fecham de supetão. O jeito que a rua esvazia me lembra daqueles Westerns antigos, bem antes da troca de tiros. Só que isso rola todo dia.
O momento mais esquisito foi quando eu tava voltando pra casa uma noite.
Eu vi os Dawson na varanda deles. Quando me viram descendo a rua, congelaram. A Sra. Dawson apertou o braço do marido. A cara dele tava dura de medo até eu chegar perto o suficiente pra ele me reconhecer.
“Ah”, ele disse, quase rindo. “É só você. Achamos que era outra pessoa.”
Eles não disseram quem. Mas o jeito que entraram correndo depois, trancando a porta, eu soube. Por aqui, qualquer um andando a pé é tratado como uma ameaça.
Eu tentei andar até a beira da cidade na semana passada, pra ver se as fazendas ainda tavam lá.
O Sr. Whitaker costumava vender maçãs e ovos de uma barraca na beira da estrada. Meus filhos adoravam as frutas dele. Mas quando cheguei no ponto, só tinha casinhas arrumadinhas e garagens. Sem curral. Sem barraca. Nem um poste de cerca. Um cara regando o gramado franziu a testa quando me viu demorando.
“Você se perdeu”, ele disse, seco. Aí virou e a porta da garagem dele fechou atrás.
E meus amigos também estão mudando.
O James, que um dia andava pra todo lado com a filha, apontando as velhas lojinhas. Era a alma mais gentil que eu conhecia. Mas da primeira vez que o vi no volante, ele quase me acertou na faixa de pedestre. Não acenou. Não pediu desculpa. Buzinou forte e acelerou tão perto que eu senti o calor do motor dele. Não era mais o James.
Na quarta semana, eu era o único que sobrou andando a pé. As ruas rugiam com ferro e fumaça. As árvores sumiram. As varandas esvaziaram.
Até o velho caminho de terra pro centro da cidade foi apagado. Onde ele começava, uma placa nova tá lá: PROIBIDA A ENTRADA. ISSO É PRA VOCÊ. Eu conseguia ver o centro ali do outro lado do gramado, perto o suficiente pra tocar. Mas não dava pra chegar.
E agora tá na minha porta.
Esta manhã, a calçada sumiu. Meus degraus levam direto pra doze faixas de trânsito.
Se eu quiser comer, vou ter que tentar atravessar.
Não sei se volto vivo.
A coisa mais estranha é que todo mundo parece feliz.
Se você um dia ouvir obras do lado de fora da janela, se acordar e encontrar a rua mais larga do que ontem, não fique. Corra.
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