Passamos anos enfrentando quimioterapia e radioterapia, que o deixaram em um estado tão irreconhecível que meus filhos tinham medo de visitá-lo. Não era pela aparência dele, eles não ligavam para isso. Era a mudança de humor.
Às vezes, ele ficava irritado e descontava em quem estivesse por perto, não importava quem fosse. Era algo imprevisível, vinha em surtos depois de momentos em que ele parecia até alegre. Depois, ele esquecia que tinha agido assim e voltava a ser carinhoso com as pessoas que havia maltratado.
A visão dele piorou muito, ele desenvolveu cataratas grossas, então frequentemente confundia as pessoas, achando que você era outra pessoa, alguém que ele detestava, talvez de quando era mais jovem, porque eu não fazia ideia de quem ele estava falando. Talvez fossem só as enfermeiras que tinham que aguentá-lo dia após dia. Não sei ao certo. Ele sempre demorava muito para entender o que os médicos queriam que ele fizesse.
Tenho quase certeza de que ele esqueceu que tinha câncer e passou a acreditar que as pessoas que tentavam ajudá-lo o estavam mantendo refém. Não sei quanto disso era por causa dos tratamentos ou da demência, mas os dois juntos tornavam difícil para mim estar lá, mesmo sem as crianças.
Ele finalmente faleceu aos 84 anos. Tristemente, isso acabou sendo um alívio para mim. Sei que meus filhos também sentiram esse alívio, mesmo que indiretamente, por verem o peso saindo dos meus ombros. Ouvi um deles dizer: “Ele está voltando a ser nosso pai de novo.”
Isso me abalou por um tempo danado. Será que eu não estive presente o suficiente para eles enquanto ele estava no hospital?
Depois que ele morreu, recebi uma carta pelo correio que dizia: “Você pode falar com eles novamente, nem que seja para encontrar um fechamento.”
A carta mencionava meu pai: nome, sobrenome e nome do meio, a idade com que ele morreu e o hospital onde foi internado.
Eu mal sabia de todas essas informações, como é que eles sabiam?
A carta também trazia um endereço. Pesquisei na internet e não encontrei nada de especial. Parecia apenas um prédio qualquer que você passaria sem notar na estrada. Estava bem cuidado. O gramado era impecável. Havia arbustos bem podados, árvores decorativas e um jardim cheio de flores silvestres locais misturadas com orquídeas e rosas. Coisas assim.
Fui instruído a levar apenas a carta para ser admitido, e seria recebido no saguão.
A dor do funeral dele ainda ecoa na minha cabeça. A família e os amigos apareceram com memórias lindas de antes do diagnóstico, mas eles nunca vivenciaram o fim dele como eu vivi. Não tornamos pública a deterioração mental dele. Eles não precisavam saber disso. Não escondi minhas lágrimas. Acho que é bom que as crianças vejam esse lado seu. Que saibam que está tudo bem ficar triste e chorar. Quero que elas entendam que as emoções que sentem são reais e devem ser enfrentadas, não escondidas. Abraçei meus filhos enquanto a família estendida compartilhava histórias do vovô. Eles também tinham algumas memórias dele e, com suas vozinhas, falaram coisas que tornaram tudo ainda mais devastador.
Durante o funeral, a carta não saía da minha cabeça, junto com todas aquelas memórias. Uma pergunta ficou martelando no fundo da minha mente: “Será que posso ter essa versão dele de volta?”
Foram semanas me questionando antes de tomar uma decisão. Guardei a carta na minha cômoda, mas nunca contei às crianças o que era. Não que elas se interessassem, era só um pedaço de papel. Nunca escondi a carta delas, mas também nunca toquei no assunto. Era um lembrete constante do meu pai. Da memória dele. Pensei nisso o tempo todo, a ponto de meus filhos ficarem preocupados comigo.
As perguntas deles acabaram decidindo por mim. Perguntei à minha irmã se ela poderia cuidar das crianças por algumas semanas, dizendo que precisava de um tempo. Nossos filhos se dão super bem, e eu fui o principal cuidador do nosso pai antes de ele falecer. Ela estava lá, mas, como irmão mais velho, quis proteger ela dessa memória dele. Acho que ela ficou grata por isso, mas nunca toquei no assunto, e ela também não. Mantive a carta escondida dela, no entanto. Não sei por quê.
Os mapas não mentiram sobre a aparência do lugar. Era tão bonito quanto parecia na internet. Um doce aroma floral flutuava no ar enquanto borboletas pousavam nas flores silvestres por perto. Sentei em um banco perto da entrada por uns trinta minutos, encarando a carta enquanto pessoas entravam e saíam. Pessoas normais. Pareciam até felizes, ou pelo menos fingindo estar. Isso me fez questionar se a carta era real. Será que as pessoas agiriam assim por algo que a carta prometia? Estavam vestidas de forma casual, como se fossem ao mercado.
No fim, empurrei a porta e fui recebido por uma recepcionista com um sorriso gentil. Ela perguntou como poderia me ajudar, e eu, em silêncio, entreguei a carta. O sorriso dela se abriu ainda mais, e ela me deu as boas-vindas com uma gratidão genuína. Pediu para fazer uma cópia do meu documento de identidade para entradas futuras e um número de telefone para contato. Hesitei por um segundo, mas forneci ambos. Ela disse que eu poderia usar qualquer um dos dois para entrar a qualquer momento. Nem mencionou horários.
Depois que assinei a cópia com meu documento e telefone, ela apontou para uma porta atrás dela. As luzes da sala eram de um laranja suave, e havia um leve aroma das mesmas flores que tínhamos no funeral dele. Quase saí correndo. Um homem estava sentado em uma poltrona de couro diante de uma biblioteca cheia de livros antigos e plantas exuberantes. Ele vestia um estilo casual de negócios e tinha um sorriso tranquilo. Ele apontou para um sofá confortável e disse: “Olá, meu nome é Mike. Sou o conselheiro de luto deste lugar. Por favor, sente-se.”
Respondi: “Oi, Mike. Eu sou o Paul.”
“Olá, Paul. Prazer em conhecê-lo. Posso perguntar quem você perdeu?”
“Perdi meu pai há pouco tempo. Ele faleceu de câncer e demência. O final foi difícil, ele...”
“Por favor, vamos lembrar dos bons momentos”, ele interrompeu. “Ajuda a longo prazo. Vai tornar tudo mais fácil para você e seu pai.”
“Então é verdade? O que a carta dizia?”
“Claro, Paul. Nosso objetivo é aliviar as dores dos vivos, dando a eles acesso àqueles que nos deixaram.”
“Como vocês fazem isso?”
“Seria mais fácil mostrar a você”, ele respondeu. “Por favor, deite-se.”
Fiz o que ele disse.
“Agora, pense no seu pai. Na sua memória favorita dele. Isso será o gatilho.”
A memória que escolhi foi dele assinando a guarda das crianças, que vieram da minha outra irmã, viciada em drogas. Eu as vejo como minhas, embora sejam minha sobrinha e meu sobrinho. O pai biológico deles morreu de overdose, e minha irmã está na prisão por assalto à mão armada. Ela roubou a pistola do meu pai e usou para assaltar um posto de gasolina para sustentar o vício. Meus filhos eram muito pequenos para lembrar de qualquer coisa, então me veem como o pai deles.
“Tá bem. Mantenha essa memória na cabeça. Veja o sorriso orgulhoso dele. Sinta o perfume amadeirado enquanto ele assina a guarda da Kelly e do Cameron.”
“Pai?” Ele estava diante de mim, com sua jaqueta jeans e calça cáqui. Sorrindo para mim com o braço estendido para que eu o segurasse. Estava exatamente como naquela época. Tão cheio de vida. Tão grato por eu ter assumido as crianças.
“Vamos buscar o Cameron e a Kelly. Eles estão te esperando no hospital”, ele disse.
Então ele sumiu no ar. O toque dele ainda ficou na minha mão. Parecia tão real. Dormi profundamente em um hotel, sem coragem de voltar para casa. Não sei por que peguei um quarto. Pela primeira vez em anos, senti paz.
Liguei para meus filhos para saber como estavam. Eles contaram que foram à praia com a tia Carol. Brincaram nas ondas e fizeram o maior castelo de areia de todos, depois o destruíram com toda a força. Pensei: “Será que o pai poderia levá-los à praia?” Mas também: “Será que isso os confundiria?” Eu poderia tentar explicar.
Depois da ligação, agradeci ao meu pai por eles.
No dia seguinte, voltei. Tinha que voltar.
A mesma recepcionista me cumprimentou com o mesmo sorriso gentil. Ela disse, no entanto: “O Mike não está aqui hoje, mas você pode entrar na sala principal.” Ela apontou para outra porta por onde outras pessoas entravam e saíam livremente. Ela não pediu meu documento, o que achei estranho. Mas também não pediu o dos outros. Então, fui junto.
A sala era confortável, com poltronas, janelas grandes que deixavam entrar a luz quente da manhã, uma mesa farta de café da manhã contra a parede e pessoas desaparecendo em quartos no fundo da sala. Um homem me cumprimentou, dizendo que eu poderia usar os quartos no final para as pessoas que perdi. Peguei um prato e comida, pois não tinha comido, e refleti sobre o que ele disse. Pessoas. Enquanto comia, pensei: “Será que posso chamar mais do que só meu pai?”
Um cartaz chamou minha atenção. Dizia: “Menos sofrimento para todos. Abriremos 24 novas instalações pelo país e nove internacionalmente. Conte para sua família agora!”
Depois de comer, me preparei e entrei em um quarto vazio.
O quarto era tão bonito quanto o escritório do Mike, mas sem janela. Fiz como me lembrava, guiado por instruções visuais pintadas na parede.
“Oi, pai”, disse, admirando a presença dele. Estava com as mesmas calças cáqui de antes.
“Oi, filho”, ele sorriu. “Você é bem-vindo para se juntar a nós quando quiser. Pode trazer a Kelly e o Cameron também. Eles gostariam do além tanto quanto eu. Voltar é maravilhoso.”
Rememoramos os velhos tempos. Tempos de paz. Fiquei com ele por três horas antes de ir embora. Tirei uma foto do cartaz, mas ela sumiu depois que saí do prédio.
Acho que realmente era meu pai. Parecia mesmo ele, embora eu mesmo o tenha enterrado. Joguei terra sobre o caixão enquanto o baixavam na sepultura. Coloquei flores ao lado da lápide.
Pesquisei e algumas das novas instalações já estão abertas. Acho que ninguém deveria entrar nesses lugares, mas, ao mesmo tempo, ainda quero vê-lo de novo. Isso faz meu coração disparar. Ele quer ver as crianças de novo, e estou tentado a levá-las. Estou preocupado que, se as vir, vou acabar levando-as lá.
Não sei mais o que fazer.
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