Você já ouviu falar do Homem do Não-Não? Se sim, já é tarde demais pra você.
Não tem jeito fácil de dizer isso, mas eu sou um cara branco de 36 anos, obeso mórbido. Já assistiu A Baleia do Darren Aronofsky? Pois é, eu peso o dobro do que o Brendan Fraser usava de próteses naquele filme. A diferença é que, enquanto o Brendan pode tirar aquele peso falso depois das filmagens, minhas banhas oceânicas são tão vastas quanto inescapáveis. Como você pode imaginar, isso é um baita problema.
Eu nunca quis ser tão gordo. Sempre fui um gorducho quando criança. Minha mãe até me chamava de “O Grande Presunto Inglês”. Ser um gordinho é fofo quando você é pequeno, mas a coisa desandou rápido. O fenômeno dos transtornos alimentares que duram a vida toda e vêm de abusos dos pais é bem conhecido, e, infelizmente, eu não fui exceção.
Sabe, meu pai batia pra caralho em mim e na minha mãe todo dia. Enquanto minha mãe encontrava paz no ketamine, eu achava a minha no pote de biscoitos.
Pula pra três meses atrás. Eu tava na minha, fazendo meu trampo: vendo hipotecas subprime pra imigrantes ilegais que ganham uma grana preta com construção. Não é um trabalho que Jesus faria, mas paga as contas melhor do que lavar pé de prostituta ou sei lá o quê.
Era um dia qualquer no escritório. Eu me abaixei entre as pernas pra pegar uma barra de sorvete GoodHumor de Morango no frigobar que ficava encaixado embaixo da minha mesa, mas fui recebido com uma resistência violenta.
PÁ! Um tapa seco e firme interceptou minha mão que buscava o tesouro cremoso.
Soltei um “Que porra é essa?” frustrado, atraindo olhares de canto de olho do Stephen, nosso especialista em Microsoft Excel.
Mas quando levantei a cabeça pra ver quem tinha sido o filho da puta que atrapalhou meu momento com a barra de sorvete GoodHumor de Morango, me vi cara a cara com algo completamente desumano. Não que ele não parecesse humano: as costelas saltavam sob a pele amarelada, esticada como látex, o estômago era tão chupado pra dentro que dava pra ver o contorno ondulado do intestino grosso, e os ombros eram tão curvados que ele parecia um S gigante. Estava tão pelado que eu gritei.
Olhei pro rosto dele, meio que querendo mandar ele tomar no cu, quando vi aquele rosto horrível, desumano. Era meio humano porque tinha olhos, nariz e boca, mas tudo completamente bizarro. Os olhos eram escurecidos pela sombra de uma testa enorme e franzida, as bochechas gigantes forçavam os olhos em meias-luas lindas. O nariz era tão comprido que eu hesitava em olhar direto pra ele, com medo de ficar vesgo. E a boca, meu Deus, aquela boca inchada e horrível, franzida num biquinho enorme que descia além do queixo e se projetava uns, sei lá, uns sete centímetros do rosto.
Aí, com uma voz estrondosa, mais alta do que qualquer coisa que eu já ouvi na minha vida inteira, ele gritou: “NÃO! NÃO! NÃO! NÃO!”
Um dedo esquelético balançava como um pêndulo saindo dos nós de pedra dele. Eu não conseguia acreditar, não, eu me recusava a acreditar que isso tava acontecendo comigo. Esfreguei meus olhinhos rápido, como se dissesse “por favor, que isso seja só um pesadelo”. Mas não era. Era real pra caralho.
Olhei pro Stephen com os olhos cheios de desespero e confusão. “Você tá vendo isso, cara?” gemi.
“Quê?” ele respondeu, como se nada estivesse acontecendo.
“Você não tá vendo isso?” falei, a burrice dele quase me levando à loucura.
Tentei de novo pegar a minha suculenta barra de sorvete GoodHumor de Morango, e o cara me deu um tapa ainda mais forte que o primeiro. “Ai, porra. Isso é foda pra caralho!” gritei enquanto meus dedos começaram a sangrar.
Um “NÃO! NÃO! NÃO! NÃO!” ensurdecedor sacudiu as bases da minha realidade.
“Quê?” murmurou o Stephen idiota, hesitante.
“Tenta! Pega a barra de sorvete GoodHumor de Morango! Você vai ver!” lati como um cachorro raivoso.
“Sério? Você nunca deixa eu tocar nos seus lanches. Sempre late quando peço uma das suas barras de sorvete GoodHumor de Morango”, retrucou o Stephen, cuspindo merda pela boca.
“FAZ ISSO!!!” uivei, com o lábio inferior pra fora, balançando pra cima e pra baixo na minha cadeira giratória minúscula, batendo os braços como um pássaro birrento. “AGORA! AGORA! AGORA! RÁPIDO!”
Então, o Stephen veio até minha mesa com uma cara de dúvida. Abriu o frigobar e pegou uma barra de sorvete GoodHumor de Morango.
“Agora me dá, Stephen. Me dá e eu te dou um aumento e talvez o Microsoft Word também”, negociei, todo ansioso.
“Beleza, legal”, ele disse.
Mas antes que o Stephen pudesse me passar o doce que meu coração tanto desejava, o cara em forma de S pegou suas mãos malignas e rasgou o Stephen em pedaços! O ombro dele saiu com um POP de revirar o estômago. Ele quebrou os ossos das pernas do Stephen e chupou o sangue como um baltimoriano experiente devorando pernas de caranguejo. O cara rasgou a carne do Stephen com a mesma facilidade que minhas mãos de criança rasgavam cobertura de bolo aquecida no micro-ondas. Ele enfiava montes de carne e vísceras na garganta alongada, enchendo-a muito além da capacidade, e então virava pra mim, mastigando bem devagar, garantindo que eu visse cada detalhe nojento do que antes era um colega de trabalho perfeitamente produtivo deslizando pateticamente pela sua garganta.
O Stephen gritava e gritava, mas eu tampei os ouvidos porque o som do grito doía. Quando destampei, o que sobrou do Stephen estava encharcado no carpete novinho que eu tinha instalado fazia nem duas semanas. Caí de joelhos e chorei.
Foi aí que aprendi que, quando o Homem do Não-Não diz “Não”, é melhor ouvir.
Já faz três meses agora. Tô deitado em posição fetal, meu corpo esquelético formando um O irregular no tapete falso de pele de tigre espalhado no chão da minha sala de charutos. Minha língua pende pra fora, lambendo o chão, e cada lambida ganha um tapa rápido nas papilas gustativas, como uma pata de gato em forma de S brincando com um inseto indefeso. “Não, não, não”, ele ronrona.
Ele não me deixa comer, nem uma lambida de poeira. E, embora eu esteja com a melhor aparência da minha vida, meio que nem o Christian Bale em O Operário, tô morrendo pra caralho. Minha fome tá me consumindo do jeito que eu queria consumir comida agora.
Tô usando o restinho das minhas forças pra escrever isso. Precisava avisar os outros caras brancos obesos mórbidos desse mundo sobre um destino pior que a morte. Bom, eu tô morrendo, mas tenho certeza que minha morte tá doendo mais que a morte da maioria das pessoas.
Adeus e até nunca. E lembre-se: se o Homem do Não-Não aparecer… bom, vamos torcer pra que ele não apareça.
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