Vim trabalhar na Igreja de Santo Anselmo para fugir de tudo. Naquela época, achei que um emprego tranquilo como zelador numa cidade pequena me daria espaço para respirar, uma chance de esquecer.
Eu não era religioso, mas havia algo na calma daquele lugar que me tocava profundamente. Talvez fosse o silêncio reconfortante dos bancos ou a forma como a luz do sol atravessava os vitrais antigos, como o sopro de Deus. Eu só precisava de paz — e a igreja tinha isso de sobra.
A igreja fica em Rochester, uma cidade esquecida por Deus no interior do estado de Nova York, perdida entre florestas densas e rodovias abandonadas. As pessoas aqui são educadas, mas reservadas, como costumam ser em cidades pequenas. Nunca são rudes, mas também não fazem perguntas. Ninguém quis saber por que um cara de trinta anos, vindo da cidade grande, se mudou para a casa da igreja. Eles só ficaram felizes por alguém finalmente cuidar do lugar.
Santo Anselmo estava vazio havia muitos anos. O zelador anterior, um velho chamado Abdiel, morreu em circunstâncias estranhas. Ninguém sabia a causa exata — alguns diziam que foi insuficiência cardíaca, outros que ele simplesmente “foi embora e nunca voltou”. Não insisti no assunto; não estava particularmente curioso.
A igreja era antiga, construída no século XIX, com pisos rangentes e correntes de ar nos corredores. A torre do sino não funcionava havia anos, e os bancos de madeira haviam sido polidos até brilhar por inúmeras mãos.
Mas o que mais me perturbava — o que realmente me deixava inquieto — eram os ícones. Havia muitos deles. Não apenas os crucifixos comuns e os vitrais com santos, aos quais todos estão acostumados, mas grandes painéis pintados pendurados em lugares estranhos: ao lado das portas, acima do confessionário, até mesmo ao pé do púlpito. Eram antigos, claramente trazidos de longe. Estilo ortodoxo oriental — com olhos grandes, abertos, e expressões severas.
Durante toda a minha vida, esse tipo de arte sempre me deu a sensação de estar sendo observado. Mesmo sabendo que não estava, ainda me causava um profundo desconforto.
Não sou especialista, mas não era preciso ser um erudito para perceber como era estranho encontrar ícones assim numa igreja católica no interior da América. Eles não pertenciam àquele lugar — era o que eu pensava. E talvez eu também não pertencesse.
Então, as coisas estranhas começaram. No começo, culpei a adaptação. Eu estava sozinho num prédio antigo e enorme, cheio de rangidos e gemidos. Pensei ter ouvido sussurros de vez em quando, mas atribuí isso à fadiga e às noites sem dormir.
Até que os ícones começaram a mudar.
No início, era quase imperceptível. Uma manhã, vi manchas vermelhas na lança de São Jorge, perto da entrada. Pensei que fosse tinta. Talvez sempre tivesse sido assim, e eu simplesmente não havia notado. Mas então os olhos da Virgem Maria, no ícone perto da escada para a reitoria, começaram a brilhar — não por causa da luz, mas como se fossem lágrimas. Aproximei-me e observei a imagem por um longo tempo antes de tocar a madeira. Arrepios percorreram meus braços quando percebi que estava úmida. Esfreguei a superfície, concluindo que deveria haver um vazamento na parede.
Mas no dia seguinte, aconteceu de novo. A umidade estava apenas no rosto dela, como se a própria madeira estivesse chorando.
Uma semana após minha chegada, acordei por volta das três da manhã. A casa estava em silêncio absoluto, exceto por um leve farfalhar, como garras arranhando pedra. Presumi que fosse algo nas paredes — até perceber que o som vinha da própria igreja. Vesti um suéter e caminhei descalço pelo chão frio. Não havia necessidade de luz; o luar entrava, banhando o corredor em prata.
Quando entrei no santuário, o ar mudou. Sutilmente, mas inconfundível — cheirava como o ar carregado antes de uma tempestade. Os bancos estavam envoltos em sombras, e o ícone de São Sebastião, perto do altar, parecia mais escuro que o normal. Suas feridas — pequenas flechas em seu peito — pareciam frescas e úmidas. Juro por tudo que tenho: elas estavam sangrando.
Fiquei paralisado por dez minutos, com o cheiro metálico de sangue nas narinas. Então o farfalhar veio novamente, mais alto e rítmico, vindo da direção do altar.
Avancei, com a boca seca e um nó na garganta. Contornei o púlpito — e tudo ficou em silêncio. Olhei atrás do altar.
Nada. Sem ratos, sem pedras caídas. Apenas uma cruz de madeira e os ícones. Um deles fez meu coração parar: um monge sombrio com olhos como abismos negros, segurando um livro inscrito com símbolos vermelhos. Eu nunca o tinha visto antes.
Quando acendi as luzes, o ícone havia desaparecido. Não consegui dormir pelo resto da noite.
As coisas pioraram nos dias seguintes. O ícone de Cristo no santuário começou a mudar de expressão. Sua boca, antes serena, contorceu-se num franzido profundo. Seus olhos me seguiam — não metaforicamente, mas literalmente. Testei, andando de um lado para o outro. Eles me rastreavam. Um dia, do coro, vi Sua mão levantada num gesto que não estava lá antes: dois dedos erguidos em bênção... ou advertência.
Continuei dizendo a mim mesmo que era tudo coisa da minha cabeça — talvez eu estivesse enlouquecendo. Eu já tinha passado por coisas tristes e pesadas na vida. Talvez isso tivesse quebrado algo dentro de mim. Estava muito sozinho. Era o que eu pensava... até os sonhos começarem.
Muito vívidos — tanto que às vezes eu me perguntava se estava realmente sonhando. Acordava encharcado de suor, coração disparado, sem saber se ainda estava dormindo.
Era sempre o mesmo lugar: a igreja, iluminada por velas. Ícones cobriam todas as superfícies — paredes, teto, até o chão — e eles sussurravam numa língua que eu não entendia. O ritmo das palavras parecia um batimento cardíaco. O rosto da Virgem se contorcia em luto. Pedro roía as próprias mãos. As feridas de Cristo sangravam, enchendo o ar com um fedor metálico. A pior parte... era que, quando os ícones mudavam nos sonhos, também mudavam na realidade — tornando-se cada vez mais grotescos e aterrorizantes.
No final de cada sonho, o monge do ícone desaparecido aparecia. De pé ao pé da minha cama, livro na mão, a boca costurada com linha preta. Ele apontava um dedo ossudo para mim, e era quando o sonho terminava — não com o despertar, mas com meu grito.
Queria desistir. Não era para isso que eu tinha me inscrito. Contei ao padre Bellamy, o pároco, que estava me sentindo sobrecarregado. Falei sobre os sonhos. Sobre o que vi na igreja. Ele me lançou um olhar estranho — não de piedade, mas... de compreensão. Não tentou me dissuadir. Apenas fez uma pergunta:
“Você abriu a caixa na sacristia?”
“Quê?”
Ele se afastou sem dizer mais nada, deixando-me atônito.
Naquela noite, encontrei a caixa. Não a tinha notado antes — embutida na base de um armário na sacristia, escondida atrás de um painel falso. Dentro, havia uma pasta cheia de papéis amarelados. Anotações, esboços de natureza religiosa estranha e um diário. O diário de Abdiel.
Li as primeiras entradas, minhas mãos tremendo incontrolavelmente.
“Os ícones vieram da Rússia. Supostamente doados em 1912 por um bispo visitante. Mas algo está errado com eles. Conheço a arte ortodoxa. Essas não são apenas imagens. São prisões. São recipientes.”
“Eu os ouço à noite. Sussurrando. Às vezes chorando. A Virgem implora para que eu a liberte. Sebastião uiva de agonia. Cristo chora sangue. Eles estão presos em sofrimento eterno.”
“Encontrei um ritual para purificá-los. Mas requer sangue. O meu não serve. Tem que ser uma alma boa. Não consigo fazer isso. Perdoe-me, Senhor.”
Larguei o diário e me curvei, meu estômago revirando. Quase vomitei. Na manhã seguinte, dirigi até a cidade para exigir respostas do padre Bellamy.
Ele não ficou surpreso. Convidou-me para seu escritório, serviu uísque para nós dois. A sala estava abarrotada de livros — tomos antigos, encadernados em couro, que pareciam mais ocultos do que teológicos.
“Você é o primeiro a durar mais de um mês”, disse ele, bebendo calmamente. “Você e o Abdiel. Aquele velho aguentou por anos. Até o fim.”
Mostrei o diário. Ele assentiu.
“Sabemos há muito tempo... Os ícones nunca deveriam ter vindo para cá. Foram criados durante uma fome por um culto que acreditava que os santos podiam absorver o sofrimento humano — literalmente. Eles despejaram seu tormento nas pinturas. Passaram fome. Mataram os seus. Alimentaram os ícones, selando-os com oração e sangue.”
“E quem os trouxe para cá?”
“O bispo que os doou morreu queimado semanas depois. Ninguém sabe quem realmente os enviou. Mas já era tarde demais. A igreja os aceitou, e agora eles não podem ser removidos. Toda vez que alguém tenta, algo terrível acontece — peste, incêndio, loucura. Paramos de tentar. Um homem local tentou destruir o ícone da Santíssima Trindade. Ele desapareceu. E um novo ícone apareceu — um que nunca tínhamos visto antes.”
“E vocês simplesmente... convivem com isso?”
Ele me olhou com olhos vazios.
“Que mais podemos fazer? Eles agora são parte do prédio. Como podridão nos ossos. Estamos condenados, meu filho.”
Saí, meu corpo tremendo com o peso daquilo. O que me aterrorizava não era o que ele disse — mas a calma com que disse.
Tentei fugir. Fiz uma mala, reservei um motel, planejei ir para o sul. Mas a estrada estava bloqueada. Uma árvore caída. As pessoas disseram que foi uma tempestade. Eu não acreditei.
Tentei sair a pé pela floresta — caminhei por horas, mas sempre acabava voltando para a cidade. Pedir ajuda aos moradores era inútil. Eles apenas me olhavam com desespero.
Algumas vezes, quando pensei que estava escapando, uma enxaqueca cegante me paralisava em segundos. Eu desmaiava. E acordava na casa da igreja. Quando finalmente ousei voltar ao santuário, os ícones haviam mudado novamente. Todos me encaravam. Não com julgamento — mas seus olhares faziam minha pele arrepiar.
Eles sabiam que eu tentei fugir.
Os pesadelos pioraram — o monge começou a falar. Sua boca não estava mais costurada. Sua voz era como gelo rachando sob os pés.
“Você vive onde eles descansam. Alimente-os. Ou tome o lugar deles. Tente destruí-los — e junte-se a mim.”
Os sons agora vinham durante o dia: arranhões sob o assoalho, gemidos nas paredes. Abri uma grade de ventilação e encontrei um embrulho de pano. O que vi quase me causou um ataque cardíaco. Uma mão humana decepada, segurando um crucifixo retorcido em espiral.
Parei de dormir.
A igreja começou a mudar. Corredores que levavam a lugar nenhum. Quartos que não existiam antes. Portas que se trancavam sozinhas. Uma vez, encontrei escadas atrás do púlpito, descendo para a escuridão. No dia seguinte — elas haviam sumido.
E os ícones continuavam chorando. Sangrando e se movendo.
Comecei a ouvir vozes enquanto acordado — implorando, gritando, às vezes rindo. Alguém sussurra meu nome. Outros prometem libertação... se eu obedecer.
Não podia viver assim. Vi a espada do Arcanjo Miguel enferrujar diante dos meus olhos. Um líquido espesso e viscoso pingava da lâmina. Sangue escorria do crucifixo. O ícone da Santíssima Trindade — os três anjos me encaravam diretamente na alma.
Trouxe uma marreta à noite. Parei diante da Virgem que chorava e a ergui. O rosto dela mudou. As lágrimas pararam. E, pela primeira vez desde que cheguei — ela sorriu.
Larguei a marreta e corri. Isso foi na semana passada.
Agora, algo está vindo. Eu sinto. A igreja está faminta. À noite, os ícones pulsam. A tinta se move como carne viva. Vejo mãos por trás das superfícies — empurrando, rasgando, tentando se libertar.
Agora entendo o que o monge quis dizer. Eles precisam de uma alma. Uma alma disposta. Alguém para sofrer por eles. Para se tornar um deles. Para se tornar o novo ícone.
Abdiel resistiu, mas cedeu. Não sei se serei mais forte.
Comecei a pintar. Não sei por quê. Apenas olhei para as tintas que Abdiel deixou, e minhas mãos começaram a se mover. Desenho rostos que nunca vi, mas que parecem familiares. Eu não sabia desenhar antes. Agora, o pincel se move sozinho. Alguns dos rostos... parecem o meu.
Vejo meu reflexo no vidro que cobre os ícones. Os olhos não se movem. A boca não corresponde à minha.
Está quase acabando para mim — como foi para Abdiel, e os outros.
Minhas ligações para a polícia não são atendidas. Ninguém responde. Percebi que estou preso aqui. Nunca sairei vivo. Se você algum dia encontrar esta igreja — corra. Nem pense em entrar.
Ninguém merece se tornar parte deste lugar.
Nem mesmo eu.
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