sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Tive que abandonar meu apartamento depois do que gravei à noite

Ainda não sei como explicar o que aconteceu sem parecer louco, mas preciso contar antes que eu esqueça pedaços da história. Apaguei e reescrevi isso três vezes porque todas as versões pareciam organizadas demais, como se fosse um roteiro. Isso é o que realmente senti, bagunçado e meio esquecido.  

Pra dar um contexto, moro sozinho no último andar de um prédio velho. O proprietário é um cara que nunca conserta nada direito, os canos fazem barulho como se estivessem conversando entre si, e a luz do corredor pisca sempre no mesmo padrão toda noite. Trabalho no turno da noite em um supermercado, então durmo durante o dia. É uma rotina esquisita, mas pagava as contas e me mantinha meio isolado, o que até gostava.  

Há algumas semanas, cheguei em casa por volta das 8 da manhã, exausto, e desmaiei no sofá. Meu celular estava na mesinha de centro, e um podcast ainda tocava no alto-falante em volume baixo. Acordei duas horas depois porque o podcast parou no meio de uma frase. O alto-falante tinha mudado pra um chiado de rádio, e havia um barulho fraco vindo da parede do meu quarto, como se alguém estivesse batendo de leve, mas com ritmo. Pensei que fossem os vizinhos, mas as batidas eram três rápidas, uma pausa, depois duas lentas. Parecia intencional.  

Levantei, enrolei um cobertor nos ombros e fui até a porta do quarto. As batidas pararam no exato momento em que cheguei. Fiquei ouvindo por um tempo. Em um prédio velho, você aprende a identificar de onde vêm os sons pra culpar algo normal. Dessa vez, o barulho vinha de dentro do quarto, como se alguém estivesse do outro lado da parede onde fica a cabeceira da minha cama. O radiador chiou. O prédio estalou. Ri de mim mesmo e voltei pra sala, mas não consegui me sentir à vontade.  

Naquela noite, não consegui dormir direito. Toda vez que pegava no sono, tinha a sensação de que alguém estava parado no pé da cama, me observando. Não era exatamente a sensação de um intruso, era mais como um peso. Atribuí isso ao cansaço e dormi por algumas horas antes do alarme pro trabalho tocar. A estranheza ficou, como um gosto na boca, suave, mas insistente.  

Na semana seguinte, as batidas viraram rotina. Sempre três rápidas, pausa, duas lentas. Sempre quando eu estava tentando dormir. Num impulso infantil, como se fosse um experimento, colei um bilhete na parede: “Se for você, bata uma vez.” Ri de mim mesmo enquanto colocava o bilhete e não esperei nada. Naquela noite, três rápidas, pausa, duas lentas. E então, uma batida forte e única no meio da madrugada. O bilhete ainda estava lá de manhã.  

Comecei a gravar. Deixava o celular na mesa de cabeceira enquanto dormia. De manhã, o arquivo estava cheio de ruídos do ambiente e, algumas horas depois, uma frase inconfundível captada pelo microfone. Não eram exatamente palavras, mais como sílabas arrastadas pelos canos. Às vezes, parecia “aqui”, às vezes “fique”, às vezes nada que eu conseguisse identificar. Uma vez, mais claro que tudo, parecia meu nome.  

Quando algo cruza a linha entre coincidência e intenção, você muda. Comecei a deixar as luzes acesas, o celular plugado na tomada, a verificar a porta duas vezes. Acordava embolado no cobertor e, por um segundo, via a silhueta de uma pessoa no canto do quarto, que sumia logo depois. Dizia a mim mesmo que era uma combinação do chiado do rádio, o prédio se acomodando e privação de sono. Contei pro meu amigo por mensagem, e ele fez piada e disse pra eu me mudar. Naquela noite, as batidas foram mais lentas, deliberadas, muito próximas.  

Na manhã seguinte, encontrei arranhões na parede atrás da cabeceira. Pequenos, como unhas, sem formar nenhuma palavra que eu pudesse ler. Lembro de tocar neles, de como o gesso estava frio sob meus dedos. Não contei pra ninguém. Comprei um gravador barato e deixei ele ligado dia e noite por três dias. Ao ouvir, escutei sons normais do dia: a cidade, a chaleira, a porta do vizinho batendo. Às 3:12 da manhã do segundo dia, havia um som de respiração no arquivo, que não era minha. Combinava com o ritmo que eu sentia quando não conseguia dormir. O áudio então cortou, e os últimos trinta segundos eram só um ruído grave e contínuo que fez meus dentes doerem quando ouvi com fones de ouvido.  

Comecei a notar coisas se mexendo pelo canto do olho. Uma cadeira ligeiramente fora do lugar, uma moldura virada pra baixo, o celular numa posição diferente na mesa quando acordava. Comecei a fazer armadilhas bobas. Colocava objetos pequenos no chão — tampinhas de garrafa, uma caneta — e verificava de manhã. Às vezes, estavam no mesmo lugar. Uma vez, a caneta sumiu, e havia três marcas fundas no carpete onde ela devia ter sido pressionada.  

Pensei nas opções racionais: ratos, sonambulismo, um vizinho babaca. Filmei a mim mesmo dormindo pra ver se me levantava, mas as imagens nunca mostravam o movimento que eu esperava. Nas noites em que revi as gravações, vi meu corpo completamente imóvel enquanto algo no quarto se movia, como meu ouvido percebe um som cruzando o espaço. Em um clipe, o cobertor tremula como se tivesse uma brisa, mas a janela estava fechada, o ar-condicionado desligado. Algo passa pela lente da câmera, uma sombra como tecido, mas mais densa, como um xale arrastado bem devagar.  

A gota d’água foi o celular. Acordei às 4 da manhã e chequei porque o chiado do rádio tinha virado um zumbido na minha cabeça. Havia três mensagens de voz não lidas. Eu não deixo o celular gravando ao lado da cama, alguém tinha que ter deixado elas lá. Cada mensagem tinha trinta segundos de nada. Sem voz, nada, até o final, quando uma respiração soprou diretamente no microfone e algo disse, claramente, “Não vá.”  

Fiz uma mala. Disse a mim mesmo que iria pra casa de um amigo por uma noite e depois decidiria. Quando abri o armário pra pegar um casaco, o cabide raspou na madeira como unhas. Agora há marcas na parte interna da porta do armário, paralelas, como se alguém tivesse riscado o comprimento da moldura com as unhas. Não ignorei isso.  

Fui embora. Não olhei pra trás. Dormi na casa do meu amigo, num sofá que cheirava levemente a cigarro, e senti um alívio idiota. De manhã, mandei uma mensagem pra mim mesmo pra lembrar de voltar e pegar o resto das minhas coisas, e, quando abri o celular, a mensagem apareceu como entregue às 5:03 da manhã da noite anterior, marcada enquanto eu estava no sofá, dormindo.  

Nunca voltei. O proprietário ligou uma vez perguntando se eu tinha deixado as chaves. Ele parecia estar lendo um roteiro. Ainda tenho vontade de checar as mensagens que mandei pra mim mesmo naquela noite, achando que vão conter alguma explicação, uma pista que perdi. Mas parei de ouvir as gravações. Não quero ouvir a respiração no final. Não quero ouvir nada que soe como meu próprio nome dito por alguém que não sou eu.  

Se você acha que posso estar sendo só dramático, volte e veja os horários das suas próprias mensagens. Pergunte pra qualquer um que mora em um prédio velho como é fácil acreditar que as paredes estão só se acomodando, até que não estão. Não sei o que estava no meu apartamento. Talvez fosse a solidão ganhando dentes. Talvez fosse a própria casa, cansada de ser uma caixa. Talvez fosse algo que aprendeu a imitar as pausas entre minhas respirações.  

Tenho uma cópia do último arquivo de áudio salvo numa pasta que nunca abro. Às vezes, à noite, quando o mundo está quieto e meu celular está na mesa, imagino três batidas rápidas, uma pausa, duas lentas. Parece um pulso agora, como um metrônomo marcando o tempo pra algo que aprendeu o padrão do meu sono. Continuo me dizendo que fui sortudo por sair quando saí, mas às vezes acordo e, por um instante, ainda estou naquele sofá, sinto o peso no pé da cama, e o mundo se resume a uma única voz impossível dizendo, “Fique.”

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Escritor do gênero do Terror e Poeta, Autista de Suporte 2 e apaixonado por Pokémon