Mudamos para a casa no final da primavera — uma velha construção colonial de dois andares que parecia estar afundando sob o peso da própria história. A corretora disse que era “cheia de charme”. O que ela quis dizer, na verdade, era “barata”. Minha esposa e eu não resistimos; estávamos desesperados para fugir do nosso apartamento apertado com duas crianças.
Na primeira noite, a casa parecia respirar. É a única forma de descrever. A madeira velha se expandindo e contraindo, como se suspirasse pelas paredes. Mas, enquanto eu estava deitado, juro que ouvi algo além dos rangidos, como uma voz abafada, escondida dentro da madeira. Um sussurro baixo e constante, como se alguém estivesse falando com as mãos em concha contra o reboco.
Eu disse a mim mesmo que era só a casa se “acomodando”.
Na terceira noite, minha filha me perguntou com quem eu estava “conversando dentro das paredes”.
No começo, as vozes não faziam sentido. Eram só murmúrios fracos, sem forma, suaves. Vinham mais à noite, mas, às vezes, na calmaria da tarde, eu pegava uma frase escapando do papel de parede.
Então, as palavras ficaram mais nítidas.
Não eram mais murmúrios aleatórios. Eram frases. E o pior: eram frases destinadas a nós.
“Não conte a ela o que você fez.”
“Lembra do que aconteceu em 2006.”
“Ela ainda não sabe. Ainda.”
O problema é que… elas estavam certas.
Não eram segredos que dá pra jogar no Google e descobrir. Eram coisas que eu nunca contei pra ninguém. Coisas que enterrei tão fundo que, às vezes, conseguia me convencer de que eram fruto da minha imaginação. As paredes estavam desenterrando tudo. Um por um.
Quando começaram a imitar nossas vozes, achei que estava ficando louco.
Eu estava na cozinha lavando louça e ouvi minha esposa me chamando lá de cima. Mas, quando subi, ela estava na cama, meio adormecida, jurando que não tinha dito nada.
Ou meu filho, chorando à noite. Só que, quando abri a porta, ele estava dormindo profundamente, enquanto o choro abafado escorria de dentro do reboco.
Uma vez, ouvi minha própria voz. Vindo de dentro da parede perto da escada. Ela sussurrou: “Você não deveria ter feito isso. Não deveria.”
Os sussurros viraram ordens.
“Fica quieto.”
“Faz isso, ou a gente conta.”
“Sangue sela os segredos.”
No começo, achei que era só uma metáfora. Algum jogo doentio que minha cabeça estava inventando. Mas, numa noite, as bocas se abriram.
Não estou falando de bocas figurativas. A tinta nas paredes borbulhou e rachou, inchando como bolhas até se rasgarem em aberturas úmidas, sem lábios. Carne rosada se projetando para o ar. Não pareciam humanas. Eram largas demais. Cruas demais.
Elas falaram em coro. Centenas de bocas formando palavras com línguas viscosas que pingavam saliva.
“Se você quer nosso silêncio, sabe o que fazer.”
Começaram com exigências pequenas. Coisas que quase pareciam razoáveis.
“Corte-se.”
“Dê pra gente o que tá dentro de você.”
Eu estava na cozinha, com a faca tremendo na mão, encarando meu pulso. As bocas se abriram, famintas pelo sabor da verdade.
Eu me cortei. Só uma linha. Mal sangrou. Mas as bocas suspiraram. Lambiam os lábios, tremiam como se tivessem sido alimentadas. E, pela primeira vez em semanas, elas se calaram.
Não contei pra minha esposa. Não dava. Mas, uma semana depois, notei as crostas finas no braço dela.
As crianças não estavam seguras.
Numa manhã, encontrei meu filho no corredor, com as duas mãos contra a parede, o ouvido colado no reboco. Ele balançava a cabeça, ouvindo, os lábios se movendo como se repetisse o que a parede dizia.
Eu o puxei dali, mas a parede não parava de sussurrar.
“Eles sabem onde estão os fósforos.”
“Eles sabem o que a mamãe esconde.”
“Eles vão contar, a menos que você os faça calar.”
Naquela noite, peguei minha filha com um isqueiro debaixo do travesseiro. Ela desabou em lágrimas quando o tomei, sussurrando: “As paredes disseram que, se eu não fizesse, elas contariam o que eu fiz.”
Quando perguntei o que ela quis dizer, ela ficou pálida. Nunca respondeu.
Tentei ignorar. Fingir que não estavam lá. Foi quando elas gritaram.
Não eram sussurros, nem murmúrios — eram gritos. Berros tão agudos, tão ensurdecedores, que faziam cada tábua e viga da casa tremer. Não dava pra pensar. Não dava pra respirar. Nos amontoamos na sala enquanto a casa inteira sacudia com vozes rugindo:
“FAÇA. FAÇA. FAÇA.”
As bocas se rasgaram ainda mais, o reboco desmoronando em pedaços, as paredes de drywall se partindo. Eu as vi se espalhando pelo teto, descendo pela escada, rastejando pelo chão como feridas abertas rasgando a casa.
Cada segredo que eu já tinha enterrado sangrava daquelas bocas. Elas sabiam de tudo. E não estavam mais blefando.
Na noite em que tudo terminou, as paredes nos deram um ultimato.
Elas queriam silêncio. Mas o silêncio tinha um preço.
Não sei se foi ideia da minha esposa, ou da casa. Talvez dos dois. Talvez, àquela altura, isso não importasse mais. As paredes queriam sangue. Queriam silêncio permanente. Foi quando percebi: talvez nunca tenha sido sobre os segredos. Talvez a casa só estivesse usando eles, como isca num anzol.
Ela não queria confissões. Queria obediência.
Estou escrevendo isso de um motel, a duas cidades de distância. A casa está vazia agora, mas não vai ficar assim por muito tempo. A corretora vai pintar tudo, tampar os buracos e vender pra outra família desesperada atrás de “charme”.
Mas, se você se mudar pra lá, escute com atenção na primeira noite.
A casa vai respirar. As paredes vão sussurrar. E, cedo ou tarde, as bocas vão se abrir.
E se elas já souberem dos seus segredos… É tarde demais.
O pior? As vozes não pararam quando saímos. As paredes do motel são mais finas. Agora eu as ouço através do reboco, mais claras do que nunca.
Elas não estão na casa. Estão dentro de nós.


0 comentários:
Postar um comentário