sábado, 6 de setembro de 2025

A Travessia

Quando criança, fui a um acampamento de verão bem estranho. Acho que algo horrível aconteceu lá.

Sou formado na universidade e voltei para minha cidade natal. Recentemente, tomei um café com uma velha amiga, que vou chamar de S, pago com os cupons que consegui graças à minha bolsa na sociedade histórica local. Ultimamente, temos feito isso com frequência, nos encontrando no centro para colocar o papo em dia e trocar histórias sobre nossas infâncias aqui.

Meu trabalho principal é digitalizar fitas do arquivo da cidade e catalogá-las, cruzando informações com jornais e moradores locais, se ainda estiverem vivos. Recentemente, encontrei uma fita.

Também tenho tentado montar uma linha do tempo da minha própria história aqui. Excursões escolares. Fogueiras. Aulas de natação. Tudo fica meio embaçado quando me concentro demais em uma memória específica, como se alguém estivesse suavemente fechando as cortinas. Faço o meu melhor para prestar total atenção quando S fala, gravando suas palavras na memória. Sempre posso anotar depois.

Às vezes, fico preocupado que ela pense que só voltei a falar com ela para conseguir as respostas que quero. É verdade que esse foi o motivo inicial para procurá-la, mas, fora as circunstâncias e investigações, tem sido um tempo bem agradável.

Então, estávamos lá, tomando nossos cafés. Uma pausa na conversa. Ao nosso redor, alguns outros clientes digitavam em seus teclados ou conversavam em pequenos grupos. Finalmente, perguntei:

“Lembra do acampamento de verão?”

Os olhos dela brilharam. Ela deu um longo gole no latte antes de colocá-lo na mesa.

“Qual parte?”

“Sei lá… tudo, acho.”

S apertou os olhos e me olhou por cima do nariz, com a cabeça inclinada. Ela fazia essa cara muito quando éramos crianças. Geralmente, quando eu dizia algo meio idiota ou estranho. Ou quando tentava mentir, o que, para ser honesto, nunca foi meu forte.

“Foi o Graves que te mandou perguntar isso?”

“Não.” Eu nem tinha contado ao meu chefe que estava falando com S ultimamente. “Eu só queria…” Saber o que aconteceu? Conseguir respostas? Muito direto. “…relembrar.” S arqueou uma sobrancelha, mas pareceu aceitar.

“Lembra da Travessia?” disse S, rindo. “Aquilo era foda.”

Eu lembrava.

No Acampamento Crepúsculo, todo campista precisava ser um nadador competente antes de participar de qualquer atividade no lago. A Travessia era o teste final. Era uma medalha de honra e a fonte do meu mais absoluto pavor. Nas primeiras horas da manhã, depois que os monitores nos reuniam nos píeres em grupos de cinco, mergulhávamos. Nosso monitor nos tranquilizava com um sorriso cheio de dentes, dizendo que estaria de olho caso algo desse errado. Isso não ajudava em nada a aliviar minha ansiedade.

Ele apitava, e o teste começava.

Não me lembro de quanto nadamos. Parecia quilômetros. Parecia uma eternidade.

Eu não sou um bom nadador nem agora. Naquela época, era péssimo. Não importava quantas horas eu passasse praticando com meus colegas de chalé, eles sempre pareciam estar muito à frente. Em algum momento, mudei para o nado de lado, mas até isso ficou difícil de sustentar à medida que meus braços ficavam cada vez mais exaustos. Eu tinha certeza de que, a qualquer momento, meus músculos iriam ceder e eu afundaria como uma pedra.

Quando joguei a cabeça para trás, olhando para a margem, seja para pedir ajuda ou para me orientar, percebi que não conseguia mais ver os píeres. Vi apenas uma faixa distante de areia, tingida de cinza na luz suave da manhã. Estava deserta.

Olhei para a frente novamente e vi apenas as águas calmas e vazias do Lago Abel se estendendo até a névoa, imóveis e silenciosas como sempre. Não conseguia ver S nem os outros três garotos do nosso grupo. Será que estavam tão à frente assim? Estiquei o pescoço, batendo as pernas na água, tentando avistar cabeças balançando ao longe.

Nada. O pânico me envolveu em garras apertadas. Eu estava perdendo força a cada braçada. Se não fizesse mais nada, pelo menos precisava manter a boca e o nariz acima da água.

Algo agarrou meu tornozelo esquerdo.

Era uma pegada fria e firme, que me segurava no lugar como uma âncora, mas, estranhamente, macia ao toque.

Parecia dedos.

Quando me puxou para baixo, engoli água sem querer, fria e áspera contra a garganta.

E eu estava me afogando.

Por um momento terrível e interminável, meu mundo escureceu. Uma escuridão difusa fechava as bordas da minha visão. Pensei, distante, se iria morrer ali em silêncio, falhando no meu teste de natação.

Me debati uma, duas vezes, até que finalmente consegui me soltar com um chute. Os dedos afrouxaram o aperto, mas senti unhas cravando na minha pele com força suficiente para deixar marcas.

Subi à superfície, meus pulmões ardendo, meu corpo cheio de água gelada.

Lembro de gritar algo. Acho que pode ter sido o nome da S. De qualquer forma, foi ela quem vi nadando de volta na minha direção, surgindo da névoa. Foi ela quem passou as mãos por baixo dos meus braços, batendo os pés para nos manter na superfície até que eu conseguisse respirar fundo novamente.

Recontando isso, S fez uma careta. “Nossa. Eu tinha esquecido completamente como isso foi traumático pra você. Não devia ter começado por essa.”

Eu disse que estava tudo bem. Lembrar era bom. Era uma coisa boa.

“Espera, e qual foi a história de você ser agarrado?”

Fiquei paralisado. “Algum garoto fazendo uma brincadeira, provavelmente.”

“Nossa, sim, acho que foi aquele garoto, o Cain. Ele era um babaca naquela época.”

Nisso, a gente concordava.

“Enfim, estou tirando um ano sabático pra me focar antes de ir pra pós-graduação. E você com essa vibe de arquivista? Olha só a gente!” Percebi que S queria mudar de assunto, então acompanhei, assentindo e dando meu discurso de sempre sobre a sociedade histórica.

“Parece que você tá bem empolgado com esse projeto,” ela disse.

“É,” respondi, surpreendendo a mim mesmo. Era verdade. Desde que abri aquele armário empoeirado nos fundos do escritório da prefeitura e digitalizei a primeira fita, esse trabalho parece mais uma missão. Era algo que precisava ser feito. Até aquele momento, eu não tinha percebido que realmente gostava de ser quem fazia isso.

É mais fácil conversar com S do que com outras pessoas. É legal. Por algum motivo, minha mente fica mais calma perto dela, mais inteira. Quase consigo imaginar que estamos de volta à escola. Por um momento, ela está com o uniforme de corrida dos Carneiros Dourados, falando sobre seu recorde pessoal, e eu estou com meu moletom largo e jeans rasgados, um caderno de desenho cheio de adesivos no colo, um demônio silencioso no ombro, e nada mudou.

Sonhei com a Travessia ontem à noite. Eu estava lá, batendo as pernas no meio de um lago vasto e calmo, lutando para respirar. Havia muitas mãos. Agarrando meus membros como tornos. Me puxando para baixo até meus pulmões colapsarem.

Dessa vez, S não estava lá.

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