Eu e minha namorada costumávamos rir de fatos assustadores e idiotas, era assim que adormecíamos na maioria das noites, um ritualzinho bobo que parecia seguro, como dar as mãos para o escuro. Ela encontrava as coisas científicas mais nojentas e lia pra mim, e a gente tentava não gritar. Semana passada, ela leu sobre VERMES PLANOS, como a cabeça se lembra quando você a corta, como outro verme pode comer essa cabeça e aprender com ela também. A gente brincava, desafiava um ao outro a imaginar roubar memórias com uma mordida, achei isso doentio de um jeito engraçado, até que ela fez aquela cara, como se tivesse um plano e achasse ele genial.
Ela chegou em casa com um prato de plástico, como se fosse um presente. Vermes branquinhos dormindo lá dentro, se mexendo como arroz molhado, e ela olhou pra eles como se fossem mágicos. Disse que pediu um kit, com a voz toda suave e animada, e eu ri, porque quem diabos compra vermes, quem faz isso, e ela disse, nós fazemos, e o sorriso no rosto dela fez meu peito doer de um jeito que era amor e, ao mesmo tempo, algo errado.
Ela treinou um deles, batendo no vidro, piscando uma luz, sussurrando como se fosse um segredo entre eles. Eu fiquei lá, pensando que era uma fase idiota, mas vi o verme aprender, ele se virou pra luz como se já soubesse disso pra sempre, como se estivesse só lembrando. Senti meu estômago afundar, lento e pesado, como se o chão debaixo de mim estivesse desistindo.
Aí ela pegou uma lâmina, sem hesitar, sem tremer, e cortou o verme. Não consegui olhar, mas olhei porque não consegui desviar os olhos, e ela deu os pedaços pros outros vermes e observou com um orgulho terrível. Os dentes dela pareciam afiados sob a luz da lâmpada, e ela estava sorrindo, e eu quis vomitar, quis beijá-la, quis correr pra rua e nunca mais voltar. Algumas horas depois, os vermes novos também se viraram pra luz, e ela bateu palmas como criança e disse, viu, viu, funciona, e eu quis mandar ela parar, mas minha voz virou algodão.
Naquela noite, ela me acordou respirando como se tivesse corrido uma maratona, com os olhos arregalados, como se alguém tivesse aberto uma porta no crânio dela e apontado uma lanterna pra dentro. Ela ficou sussurrando que lembrava de lugares onde nunca esteve, coisas pequenas no começo, um cheiro, um barulho de metal, um número entalhado na madeira, e falava como se estivesse lendo uma página que não era dela. Eu a abracei, e estava tão orgulhoso por ela estar viva, e tão assustado, como um cachorro mostrando os dentes.
Aí começaram os sonhos, ou talvez sejam memórias agora, não sei mais. Ontem à noite, eu estava em um porão que cheirava a ferrugem, concreto molhado e sangue velho, com correntes penduradas, como se estivessem esperando pra abraçar alguém. Acordei engasgando, e ela estava sentada no escuro, olhando pra parede, e disse, era lá que me mantinham, como se fosse uma fala de uma peça de teatro. Ela nunca morou perto de um porão, nunca me contou uma história sobre ser sequestrada ou trancada, e disse isso como se estivesse aliviada por finalmente lembrar.
Hoje de manhã, o prato estava vazio. Sem vermes, sem água, nada. A pia estava limpa, como se alguém tivesse lavado tudo. O sorriso dela quando perguntei foi lento, suave e errado, e ela disse, não se preocupa com isso. O hálito dela cheirava a terra e algo azedo, e eu quis arrancar minha própria pele. Acho que ela me deu um verme enquanto eu dormia, fico repassando a noite em pedaços, um flash da mão dela, um gosto de metal na minha boca, uma maciez como pão quente, e depois nada, como acordar com um pedaço preso na garganta.
Agora eu vejo imagens, como se alguém estivesse folheando um álbum de fotos dentro da minha cabeça, e não sou eu virando as páginas. Rostos que não são meus, a mão de um homem com um anel que não reconheço, uma criança gritando uma vez e depois silêncio, uma porta sendo fechada e a tranca girando devagar. Às vezes, sinto algo se mexendo sob minhas costelas, não é meu coração, é algo com pezinhos frios. Me pego cantarolando uma música que não conheço, escrevendo um nome no dorso da mão que não consigo ler.
Eu a amo, a amei com uma intensidade feroz e idiota o suficiente pra acreditar em pra sempre. Fecho os olhos e sinto o cheiro das flores que ela me deu no último mês, ouço a risada dela quando se esconde atrás das mãos como criança, e esse amor faz tudo isso doer muito mais. Porque a pessoa que cortou aquele verme e o deu pros outros, a pessoa que sorriu com o jeito que eles aprenderam, é a mesma que dorme do meu lado. As mesmas mãos que seguraram meu rosto são as que deslizaram algo dentro de mim que não consigo tirar.
Às vezes, ela me olha e vejo pena nos olhos dela, como se estivesse triste, mas também como se tivesse encontrado a solução pra um problema, e eu sou o experimento. Às vezes, ela me olha como sempre olhou, suave, quente e apaixonada, e eu quero acreditar nisso. Tento falar com ela, e minhas palavras saem pequenas e idiotas, e ela responde como se eu estivesse sendo dramático. Depois, encontro marcas de corda no meu braço, de um sonho onde meus pulsos estavam amarrados, e ela diz, talvez você esteja andando enquanto dorme, talvez esteja estressado, talvez esteja inventando coisas, e eu acredito nela, porque o que mais posso fazer além de confiar na pessoa em quem mais confio?
Estou perdendo a confiança em mim mesmo mais do que tudo. Não sei se a memória do corte é minha ou se engoli ela como uma semente que cresceu nas coisas que agora vivem sob minha pele. Minhas mãos tremem quando tento segurar as dela, como se quisessem fazer algo que só conseguem se forem mandadas. Peço desculpas por coisas que não lembro de fazer. Me pego olhando pra faca da cozinha sem saber dizer por quê.
Se você ler isso e achar que estou sendo dramático, pode me chamar de louco. Talvez eu seja. Talvez ela seja. Talvez os dois. Talvez nenhum. Só sei que estou acordando com lugares que nunca vi, com o mesmo cheiro no meu travesseiro e aquele pânico quente e apertado que desliza pela minha garganta quando penso na ideia de ser devorado vivo por alguém que amo.
Se este post terminar no meio de uma frase, é porque o que está dentro de mim encontrou as teclas do meu celular. Se você tiver alguma ideia do que fazer, me diga, porque estou com medo, estou cansado, ainda estou tão apaixonado e não sei qual parte salvar.
Por favor, alguém me diga como voltar a ser eu.
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