A maioria das memórias da minha infância é meio embaçada, como fotos antigas que ficaram expostas ao sol. Mas essa, essa é afiada como uma navalha, cravada em mim como uma farpa que não sai. Era o verão de 95, numa cidadezinha de Oklahoma, daquele tipo onde o calor grudava na pele como um pano úmido. Nossa casa era um forno, sem ar-condicionado, só um ventilador velho que espalhava o ar quente. À noite, as cigarras gritavam lá fora, e o cheiro oleoso de asfalto quente entrava pelas janelas abertas.
Ricky, meu melhor amigo, morava a três quarteirões dali. A mãe dele, Karla, era o segredo aberto da cidade. As prateleiras dela eram cheias de potes de ervas, velas queimadas até o fim, cartas de tarô espalhadas como folhas secas. Ela chamava isso de bruxaria; os outros chamavam de bobagem. Eu achava fascinante. Ela nunca escondia, encarava os cochichos com um sorriso esperto.
Naquela tarde, Ricky e eu perambulávamos pela cidade pra fugir do calor insuportável de casa. Acabamos numa venda de garagem, um amontoado triste de caixas de papelão e fitas VHS tortas. Foi aí que eu vi, o espelho. Era mais alto que eu, com uma moldura cinza e toda desgastada. O vidro também era estranho, as bordas pareciam cheias de fumaça presa dentro dele. Passei os dedos pela superfície: sem poeira, sem sujeira, só um frio que não fazia sentido em julho.
— Cinco pratas — murmurou a velha que organizava a venda, mal levantando o olhar.
Paguei, pensando que a Karla poderia usar pra vidência, já que a bola de cristal embaçada dela não prestava, como ela mesma admitiu. Arrastando o espelho pra casa, meu suor encharcou a camiseta, o troço era mais pesado do que parecia. Minha ideia era levar pra ela, mas nunca cheguei a fazer isso.
Naquela noite, encostei o espelho numa cadeira no meu quarto, planejando levar no dia seguinte. O ar cheirava a poeira e suor enquanto eu me sentava na cama, me abanando com uma revista *Sports Illustrated* toda amassada. Olhei pro espelho e travei.
Meu cabelo não era o meu.
Eu sempre tive cabelo loiro claro, tão claro que as crianças chamavam de “loiro de bebê”. No espelho, era vermelho acobreado, como ferrugem, como sangue seco. Não era o brilho amarelado da lâmpada. Não era reflexo de sol na pele. Vermelho, vivo, errado.
Levantei, as molas do colchão rangeram. Meu reflexo ficou sentado, me encarando. Coração batendo forte, cheguei mais perto. O ar perto do espelho estava gelado, como uma corrente de ar vinda do nada. Meu reflexo sorriu, mas não como eu. Largo demais. Como se estivesse faminto por algo.
Tropecei pra trás, os joelhos bateram na cama. O reflexo inclinou a cabeça, me olhando como um coiote avaliando a presa. Meu pescoço formigava, o suor ficando gelado. Peguei um cobertor e joguei sobre o espelho, coração martelando enquanto me enfiava debaixo dos lençóis.
Essa foi a primeira noite.
Na manhã seguinte, o cobertor estava dobrado direitinho na cadeira. O espelho estava descoberto, o vidro brilhando. Chequei meu cabelo no espelho do banheiro, ainda loiro, graças a Deus. Mas quando voltei, o cabelo do reflexo era vermelho de novo, e os olhos estavam mais escuros, com olheiras, como se não dormisse há anos.
Disse a mim mesmo que era o calor, desidratação, qualquer coisa. Arrastei o espelho pro porão, enfiando atrás de latas de tinta velhas. Ao anoitecer, ele estava de volta no meu quarto, encostado na cadeira.
Não contei pra ninguém. Nem pra minha mãe, nem pro Ricky. Quem acreditaria num garoto dizendo que seu espelho estava errado?
O reflexo ficou mais ousado. Às vezes, era eu, mas mais afiado, com maçãs do rosto muito marcadas, sorriso largo demais. Outras vezes, mostrava mais.
Numa noite, acordei com silêncio, as cigarras mudas. O relógio do corredor tiquetaqueava como um martelo. No espelho, o Ricky estava deitado aos pés do meu reflexo, uma corda apertada no pescoço, lábios azuis, olhos vidrados. O corpo dele balançava, como se tivesse acabado de ser cortado. Meu reflexo estava lá, sentado de pernas cruzadas, batendo no joelho como se esperasse que eu notasse. Então sorriu, como se exibisse um troféu.
— Não — sussurrei, a voz falhando. — Não, não, não…
O reflexo sorriu mais largo, os olhos brilhando.
Dois dias depois, a Karla encontrou o Ricky pendurado no poste da corda de varal no quintal deles. A polícia chamou de acidente. Eu sabia que não era. O espelho tinha me mostrado.
Olhando pra trás, eu devia ter contado pra alguém, mas quem, caramba, ia me levar a sério?
Naquela manhã, meus tênis estavam sujos de terra, a mesma argila vermelha do quintal do Ricky. Minhas mãos doíam, com marcas leves de corda em volta. Esfreguei até a pele sangrar.
Fui até a Karla, desesperado. A casa dela cheirava a sálvia e cera, os olhos dela inchados de tanto chorar.
— O Ricky já falou alguma coisa sobre um espelho? — perguntei.
Ela balançou a cabeça. Então me encarou por um tempo. — Chris… seu cabelo. Tá mais escuro.
Toquei o couro cabeludo, o coração despencando. No espelho do banheiro dela, meu loiro estava intacto, mas nas raízes, a cor sangrava vermelha. Dei uma risada forçada, murmurei algo sobre a luz e saí correndo.
As visões vieram mais rápido. No espelho, vi a Karla, a pele toda queimada, fumaça enchendo o quarto. Ela não se mexia. Meu tio, esmagado pelo próprio caminhão, sangue se espalhando na terra.
Eu acordava com cinzas sob as unhas, o cheiro de fumaça na camiseta. Ou graxa manchando minhas mãos, óleo de motor nas unhas. Uma semana depois, a casa da Karla pegou fogo. Dias depois, o caminhão do meu tio o esmagou. Nas duas vezes, o espelho me mostrou antes.
Tentei quebrar o espelho. Peguei o martelo do meu pai, bati até faiscarem. A cabeça do martelo rachou. O espelho, não.
Comecei a me amarrar na cama à noite. De manhã, os nós estavam desfeitos, minhas roupas sujas de cinzas ou terra. Um vizinho disse à polícia que me viu andando perto do quintal do Ricky. Jurei que não estive lá. Minha mãe mexia a sopa uma noite, me olhando com aquele olhar que só mães têm.
— Você não tá sendo você mesmo ultimamente, Chris.
A voz dela era suave, mas me deu vontade de gritar. Fiquei olhando pras mãos dela, firmes na colher. Naquela noite, no espelho, essas mesmas mãos estavam escorregadias de sangue.
Pesquisei sobre o passado do espelho. O microfilme da biblioteca trouxe uma notícia: um culto dos anos 1920, membros desaparecendo após “rituais com um vidro amaldiçoado”. A foto mostrava meu espelho; a moldura entalhada com símbolos que pareciam mudar se eu olhasse por muito tempo.
— Cuidado com histórias antigas, garoto — disse a bibliotecária.
Dois dias depois, o obituário dela saiu. Ataque cardíaco, disseram. O espelho me mostrou antes, ela agarrando o peito enquanto meu reflexo ria.
Parei de comer. A comida apodrecia no prato. Cocei os braços até sangrarem. Meu nariz sangrava sem parar, os lençóis manchados de um marrom enferrujado. O zumbido do espelho ficou mais alto, como um diapasão dentro do meu crânio.
Meu cabelo agora era totalmente vermelho acobreado. Meus olhos, escuros como carvão. Minha pele, pálida como osso. Meu reflexo não sorria mais, só encarava, paciente, esperando.
Chegou a noite em que o mundo inteiro ficou parado. Sem cigarras. Sem vento. Só o espelho zumbindo.
O vidro mostrou minha mãe na cozinha, a camisola encharcada de vermelho, a garganta cortada como um segundo sorriso. Meu reflexo estava atrás dela, a faca pingando no azulejo.
Tranquei a porta do quarto, me amarrei com força. Mas quando acordei, estava na cozinha, faca na mão, o corpo da minha mãe estendido aos meus pés. Exatamente como eu tinha visto.
Não lembro de ter saído do quarto.
Sirenes tocaram. O vizinho chamou a polícia por causa dos gritos.
Os policiais arrombaram a porta, armas em punho. — Solta, Chris!
Deixei a faca cair, engasgando, mas quando olhei na janela da viatura, não era eu me encarando de volta. Era a coisa de cabelo vermelho, sorrindo, enquanto meu rosto de verdade batia no vidro do outro lado.
Chamaram de surto psicótico. Agora que penso bem, talvez eu esteja aliviado por não ter contado pra ninguém.
Me colocaram aqui depois disso. Um lugar pra quem “perde o contato com a realidade”. Os corredores fedem a água sanitária, as paredes brancas demais. Tiraram todas as superfícies refletoras, mas eu ainda vejo flashes numa colher ou numa vidraça. Sempre o cabelo vermelho. Sempre o sorriso.
Semana passada, soube que o espelho foi vendido num leilão de evidências. Alguém tá com ele agora, encostado numa cadeira em algum quarto novo.
Quem comprou esse espelho… vai me ver. E, quem sabe… talvez seja burro o suficiente pra me deixar sair.
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