Nunca contei isso pra ninguém. Nem pra minha família. Mas sinto que preciso escrever isso depois do que vi há alguns dias.
As pessoas gostam de pensar que seus pensamentos são privados, que ninguém além delas mesmas pode vê-los. Mas, pra mim, as mentes são como janelas abertas. Fáceis de espiar e invadir.
É como se eu estivesse sintonizando um rádio. Posso escolher de quem quero ouvir os pensamentos e quando quero me aprofundar.
Eu simplesmente nasci com essa habilidade. Não sei exatamente por quê.
Aprendi a deslizar pela vida sem chamar muita atenção. Sorrio quando as pessoas esperam que eu sorria, concordo com a cabeça quando precisam de um pouco de confiança. É fácil quando você já sabe o que elas esperam ouvir.
Mas, claro, nem todo dom vem sem seus lados ruins.
Alguns pensamentos é melhor que fiquem escondidos. Já ouvi coisas que eu realmente queria não ter ouvido. Não só verdades dolorosas ou arrependimentos deprimentes. Não. Já vi coisas muito mais sombrias que isso. As fantasias sexuais mais doentias e distorcidas. O desejo ardente e sádico de matar e causar sofrimento. Ódio fervilhante e pulsante contra toda a humanidade. Você ficaria surpreso com o que algumas pessoas escondem por trás de uma fachada calma.
O que estou tentando dizer é que eu achava que já tinha visto de tudo. Achava que sabia quais eram as coisas mais escuras e sinistras deste planeta. Isso mudou há alguns dias.
Estou trabalhando no varejo há alguns meses enquanto escrevo isso. Faço o turno de fechar numa mercearia barata. Sabe aquele tipo com luzes brilhantes, música pop alta e plantas secas na entrada? Era tão sem graça quanto parece. Isso até ele aparecer.
Ele simplesmente surgiu na escala um dia, como “Jack”. A gerência disse que era uma transferência. O primeiro turno que tive com ele foi há três dias, organizando as prateleiras do estoque juntos. Ele não falava muito. Não fazia perguntas. Não parecia confuso com nada. Ele simplesmente sabia onde tudo ia.
Esse foi o primeiro sinal vermelho.
O segundo foi o silêncio.
Não importa o quão meditativo alguém seja, ninguém consegue parar de pensar completamente. A mente humana simplesmente não funciona assim. Mesmo quando você está dormindo, seu cérebro continua criando pensamentos. As mentes podem ser quietas, claro, mas nunca silenciosas.
A de Jack era um silêncio mortal.
A mente dele era como um buraco negro. Quase sufocantemente silenciosa. Sem pensamentos, sem sentimentos, nem o menor sussurro. Apenas um vazio frio onde deveria haver uma pessoa.
Não consigo descrever o choque que senti ao tentar ler os pensamentos dele pela primeira vez e me deparar com nada. Era tão antinatural, tão impossível. Parecia que toda a minha percepção do universo estava sendo jogada fora.
Me esforcei mais, me concentrando ao máximo pra cavar mais fundo na mente dele, desesperado pra encontrar alguma coisa. Qualquer coisa.
E eu encontrei algo. Pelo menos um vestígio de algo.
Consegui captar, bem no fundo de todo aquele silêncio, algo como um leve cheiro rançoso vindo de muito longe, apodrecendo à distância. Era sinistro. Era vil. Era nojento. Parecia que estava me encarando de volta. Como se eu estivesse olhando pra um oceano negro e turvo, com um rosto imenso e desumano mal visível a algumas dezenas de metros abaixo da superfície, sorrindo pra mim com um prazer maligno.
E então, por um breve momento, eu vi algo. Não apenas um vestígio. Não apenas uma sensação. Eu vi. Só uma fração de segundo, e embaçado, mas por alguns segundos, eu vi.
Não era um pensamento. Não era como nada que eu já tivesse visto na mente de alguém. Não sei bem como descrever, mas vou tentar.
Pelo que consegui distinguir: um labirinto colossal, maior que um planeta, construído de carne vermelha podre, mofada e apodrecida. Tudo isso fervilhando com trilhões de larvas, moscas e outros insetos infernais, alguns deles mutados em proporções grotescas. Havia algumas milhares de pessoas no labirinto, cada uma mutilada de uma forma horrível e única. Elas devoravam a carne podre com uma fome voraz, seus estômagos inchando a tamanhos absurdos, apenas pra depois cagar tudo isso. Esse era o eterno delas. Não acho que podiam morrer. Não acho que o labirinto permitia isso.
E então, não consegui mais ver. O vislumbre acabou. Foram menos de cinco segundos, mas pareceram horas. Eu tinha visto tanto, e mesmo assim, de alguma forma, sabia que só tinha arranhado a superfície. Aquele labirinto era só a ponta do iceberg, e se eu continuasse cavando mais fundo, encontraria coisas muito, muito piores.
Lembro de ficar parado ali por vários minutos, completamente paralisado, com suor escorrendo de mim da cabeça aos pés. Acho que nunca senti tanto medo na vida.
Parecia que minha mente estava se desfazendo. Eu tinha visto algo que não deveria. Algo que nunca foi feito pra ser visto. E o pior de tudo é que aquilo me viu de volta. Sabia que eu estava olhando. Tenho cem por cento de certeza disso. Não sei como sei. Mas sei. Talvez seja um sexto sentido, ou talvez aquilo quisesse que eu soubesse. Não importa. O que importa é que me viu.
Jack não prestou atenção em mim. Continuava organizando as prateleiras em silêncio, agindo como se eu nem estivesse ali, com uma expressão vazia no rosto.
Ele não era humano. Isso nem era uma discussão. Ele… Não… Aquilo estava apenas vestindo um corpo humano sem vida, como uma fantasia barata.
Saí correndo do prédio o mais rápido que pude, garantindo que estava bem longe antes de ligar pro meu chefe. Disse a ele que tinha uma emergência familiar, que provavelmente não poderia voltar pro trabalho por alguns dias. Ele é um cara compreensivo, então entendeu.
Faz três dias desde então, e não consigo parar de pensar nisso. No que vi. Naquele labirinto. Nas pessoas lá dentro. Os detalhes ainda estão queimados na minha mente, e acho que nunca vou conseguir me livrar deles.
Minhas mãos não param de tremer, e sinto minha sanidade escapando aos poucos. Mas o que mais me apavora é que o que vi não era o pior. O labirinto era só a coisa na superfície, a primeira que vi. Dava pra sentir que tinha mais. Muito mais. O buraco do coelho descia muito, muito mais fundo.
E agora, não consigo me livrar da sensação horrível de estar sendo observado. Não sei o que fazer. Acho que não há muito que eu possa fazer. Eu vi algo que não deveria. E agora vou ser punido.
Existem destinos piores que a morte neste mundo. Só posso rezar pra não encontrar um deles.
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