quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Espinhos Dentro da Carne

Você já ouviu alguém dizer que o Sul nunca esquece? Eles têm razão. A terra se lembra, e ela passa essa memória pra quem tiver o azar de herdar isso. Eu não acreditava nisso até voltar pra casa da minha avó no verão de 98, lá no interior do Alabama, onde as amoreiras crescem como veias sobre o barro vermelho. Não pisava lá desde os treze anos, e aos vinte e nove, achei que as memórias pareceriam menores — como as ruas da infância que encolhem quando a gente as revisita adulto. Mas a casa da vovó não tinha encolhido. Pelo contrário, parecia maior, mais pesada. A casa ficava torta sobre suas fundações, no meio de uma clareira cercada por pinheiros e carvalhos que se inclinavam muito perto, como se quisessem sufocar o lugar. Era velha mesmo quando a vovó era menina — tábuas de madeira inchadas pela umidade, varanda telada cedendo com pregos enferrujados, um ar que cheirava a poeira, mofo e madressilva. Tudo pingava. Tudo grudava. Minha mãe nunca gostou de irmos lá. Dizia que o lugar era “pesado demais com pecados antigos”. Essa frase ficou na minha cabeça quando eu era criança. Na época, achei que ela só queria dizer que a casa tava caindo aos pedaços e cheia de lembranças ruins. Mas, com o tempo, entendi que ela falava de outra coisa. Ela queria dizer que a própria terra carregava culpa.  

Minha avó morreu na primavera de 98. Quando o telefone tocou, minha mãe disse que não voltaria lá. Me fez prometer que não ia ficar muito tempo. “Vai, embala as coisas, faz o que precisa fazer. Mas não demora.” Ela disse isso com uma firmeza que não deixava espaço pra perguntas. Então, dirigi sozinho até lá.  

No primeiro dia, andei pela casa, tirando os lençóis empoeirados que pareciam fantasmas grudados nos móveis. O papel de parede descascava em tiras curvas, revelando padrões mais antigos por baixo — camada após camada de videiras, flores, vegetação retorcida. Minha avó devia ter empapelado aquelas paredes umas seis vezes, mas o tema nunca mudava. Raízes e folhas. Sempre raízes e folhas. O ar lá dentro era denso, parado. Abri todas as janelas que consegui, embora a maioria das molduras estivesse tão inchada que não cedia. Na cozinha, potes forravam as prateleiras — feijão em conserva, tomates e dezenas de geleias de amora, as tampas embaçadas de poeira. Minha avó esteve fazendo conservas até o fim.  

Naquela noite, dormi na cama dela. Os lençóis cheiravam levemente a cedro e algo mais doce, meio enjoativo, que eu não conseguia identificar. Sonhei que corria descalço quando menino, os espinhos das amoreiras arranhando minhas pernas, o suco manchando meus dedos. No sonho, a voz da vovó sussurrava dos arbustos, baixa e ritmada, como uma oração.  

No segundo dia, fui até o barracão. Ele parecia que ia desabar, com tábuas empenadas e um cadeado enferrujado, mas ainda solto. Arrombei com um pé de cabra. O cheiro lá dentro era mais terroso que na casa — úmido e agridoce, como fruta podre. Ferramentas forravam as paredes, todas velhas — foices, pás, tesouras de poda, uma roda de amolar. No canto, uma caixa de madeira tinha virado um monte de destroços. Ao tentar levantar uma tábua, ela escorregou, e pregos pontiagudos rasgaram minha palma. O corte foi rápido e fundo. O sangue jorrou quente, grosso. Meu primeiro pensamento não foi “hospital”. Foi as amoreiras ao longo da cerca. Minha avó sempre dizia que o suco de amora estancava sangramento. Quando eu era menino, ela amassava as amoras — escuras, roxo-escuras, manchando tudo que tocavam — e as pressionava em arranhões e cortes. “A terra te cura se você deixar”, ela sussurrava. E sempre parecia funcionar. Então, cambaleei até a cerca, enfiei a mão trêmula nos espinhos e amassei um punhado de amoras até o suco escorrer pegajoso pelo meu pulso, misturando-se ao sangue até eu não distinguir um do outro. A ardência era forte, mas o sangramento diminuiu. Enrolei a mão com um pano e disse a mim mesmo que era só um remédio caseiro antigo.  

Naquela noite, tirei o pano. O corte tinha coagulado, mas dentro da ferida, juro, havia sementes. Pequenos nódulos duros, pretos e brilhantes, incrustados na carne viva. Primeiro, pensei que tinham grudado do suco, mas quando tentei tirá-los com uma pinça, minha mão tremeu tanto que deixei a pinça cair. As sementes afundaram mais. Pela manhã, o corte tinha se fechado — não com casca, não com pontos, apenas fechado, liso como pele curada. Mas, por baixo, eu via elas. Pequenos relevos, como algo crescendo.  

Na semana seguinte, a casa ficou insuportável. Toda noite, as cigarras gritavam como se a própria terra estivesse sendo rasgada. As amoreiras se aproximavam, como se tivessem crescido metros da noite pro dia. Seus espinhos raspavam nas paredes, batendo no escuro como unhas. O cheiro de fruta madura era pesado, quase podre, tão doce que me dava ânsia. Minha mão coçava. Não na pele, mas lá dentro, no fundo. Quando pressionei a palma contra o espelho do banheiro, os relevos se mexeram. Raízes, finas e fibrosas, subiam pelo meu pulso. Eu sentia elas se apertando dentro de mim, serpenteando pelas veias. Revirei a casa atrás de respostas. Na última gaveta da mesinha de cabeceira da vovó, sob contas de rosário e cartões de funeral murchos, encontrei os diários dela. Minha mãe tinha me dito pra não lê-los, mas eu tava desesperado. A letra era febril, irregular, páginas cheias de falar sobre “alimentar a terra”, de “dar sangue pras raízes frutificarem”. Uma passagem se gravou na minha mente: “A ferida é o portal. Você precisa se plantar, pra que o campo se lembre. Deixe as amoras beberem, e você nunca será esquecido.” Fechei o diário com força, mas as palavras ficaram comigo.  

Naquela noite, sonhei que era menino de novo. Estava na cozinha da vovó, ajoelhado no linóleo enquanto ela pressionava amoras amassadas nos meus joelhos ralados. Só que, dessa vez, as mãos dela tinham espinhos. As amoras pulsavam como corações batendo. E, quando olhei pros meus cortes, eles não tavam fechando — tavam florescendo. Acordei encharcado de suor, com a boca cheia de terra. Quando cuspi na mão, não era terra. Eram sementes.  

Na terceira noite, acordei com um som de mastigação. Não eram ratos. Não eram insetos. Uma mastigação úmida, deliberada. Segui o som, meio sonhando, até a varanda. As amoreiras tavam se movendo. Não balançando, não dobrando com o vento, mas se movendo, como cobras se retorcendo ao luar. As amoras não eram mais frutas — pulsavam, brilhantes e viscosas, como cachos de olhos inchados. A mastigação não vinha dos arbustos. Vinha de mim. Olhei pra baixo. Minha mão esquerda tinha se partido ao longo do velho corte. Não sangrando — florescendo. Hastes de amora brotavam da minha palma, rasgando a pele enquanto cresciam. Folhas se abriam entre meus dedos. Frutas inchavam onde deveriam estar minhas juntas. E minha boca — meu Deus, minha boca tava cheia. Sementes rangendo entre meus dentes. Minha língua grossa com polpa. Eu tava mastigando, engolindo, engasgando com amoras que não tavam ali. Minha garganta doía com raízes subindo, se enrolando apertadas. Tentei gritar, mas o que saiu foi um jorro úmido de suco roxo. Foi aí que entendi. Minha avó não tava me curando todos aqueles verões atrás. Ela tava me plantando. Cada vez que pressionava aquelas amoras nos meus cortes e arranhões, ela tava semeando o terreno que me reclamaria depois. Isso não era uma infecção. Era uma herança.  

No quinto dia, eu mal conseguia engolir comida. Tudo tinha gosto de amora — metálico e doce, grosso na língua. Minhas unhas rachavam enquanto pontas verdes forçavam passagem por baixo. Meu reflexo parecia menos comigo, mais com algo que a mata poderia reivindicar. Tentei ir embora. Arrumei o carro, girei a chave — nada. Juro que tinha enchido o tanque, mas o motor só tossiu, como se tivesse engasgado. Comecei a andar pela estrada, mas, depois de uma hora, as árvores não mudavam. As mesmas cercas caídas, as mesmas valetas de barro zumbindo com moscas. Quando voltei, a casa tava lá, esperando, com as amoreiras abraçando suas laterais como um carinho.  

Naquela noite, os diários me chamaram de novo. Li até o amanhecer, palavras rastejando pelas páginas como cipós. “A terra se lembra do que é alimentada.” “Quem vai embora tá verde.” “A fruta precisa voltar pro espinheiro.” No sétimo dia, eu não sonhava mais. Ou talvez nunca tenha acordado. As amoreiras sussurram à noite. Elas raspam nas paredes, famintas. Querem me levar pra elas. Minha mão não é mais uma mão — é um caule, pesado com frutas. Minha pele se parte ao longo dos braços em costuras roxas, cada uma brotando. Quando respiro, é denso com pólen. Agora sei que não tô morrendo. Tô sendo enraizado.  

A casa não será limpa. Não será vendida. Vai ficar, embrulhada em cipós, gorda com frutas que carregam pedaços de mim. Se algum dia você estiver nas velhas estradas de terra perto de Gadsden e vir amoreiras sufocando uma casa de fazenda abandonada, não demore. Não toque nas frutas, por mais maduras e doces que pareçam. Porque o Sul não esquece. E, uma vez que ele prova seu sangue, ele te planta também.

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