Estou sentado na rodoviária Galgo, na Rota 66, no centro da cidade. O lugar fede a mijo e diesel, um santuário para fantasmas e causas perdidas. As máquinas de venda automática zumbem com neon meio quebrado, cuspindo luz sobre os azulejos manchados de chiclete. Respiro fundo pra me centrar e solto o ar devagar. Minhas mãos pesam sobre os joelhos. Sinto o gosto do ferro de cada milha que me trouxe até aqui.
Um cara do outro lado da sala compra um pacote de batatinhas. O pulso dele brilha vermelho quando o scanner lê seu sinal. Ele sorri como se o sal e o óleo fossem uma hóstia sagrada. Uma mulher com seu filho se aproxima atrás dele, o scanner dela piscando amarelo. Não registrou devoção suficiente essa semana. A máquina a recusa. O menino chora, mas ninguém se mexe. Desvio o olhar. O mundo já decidiu o valor dela.
Eu trabalho com a verdade. Não por amor à verdade. A verdade não paga aluguel. Eu lido com a verdade porque cada lado de uma história merece ser ouvido antes que o mundo vá pras cucuias. Os negócios têm ido bem ultimamente. Tempos finais têm um jeito de deixar os clientes desesperados.
Enquanto o relógio se arrasta pra meia-noite, uma guerra mastiga as costuras da realidade. A maioria não vê. Eu vejo. E posso te dizer que as coisas não estão boas pro nosso lado.
Na semana passada, os líderes lançaram uma nova economia. Não é mais dinheiro. É amor. Mas não aquele amor quentinho, não. Amor pelo sistema. Se você quer comprar ou vender, precisa de um sinal. Tem três tipos: Básico, Melhor, Ótimo. Seu nível decide se você come filé ou raspa ratos. Sem sinal, sem comida. Sem vida. As pessoas trocam traições por upgrades. Um vizinho dedurando um amigo pode ganhar um sinal melhor. Pais que entregam os filhos às vezes conseguem o melhor. Devoção medida e calculada em crueldade.
Nos últimos três anos, meus irmãos e irmãs do Caminho lutaram pra sobreviver a cada praga e terremoto. Doze por cento do mundo sumiu da noite pro dia. Carros vazios desceram as rodovias sem motoristas. Casas cheias de pratos de jantar esfriando ao lado de cadeiras viradas. O chão tremia tão seguido que parecia estranho quando parava. Paredes se abriam como cicatrizes antigas. Depois, os oceanos cuspiram seus mortos. Praias ficaram pretas de podridão. Milhões de peixes apareceram na costa. Gaivotas se alimentaram e caíram mortas ao lado do banquete. O ar ficou tão pesado com o cheiro de decomposição que queimava a garganta.
Ontem começaram as batidas. Caçando os não marcados. Sirenes gritando pela noite enquanto vizinhos arrastavam vizinhos pras ruas. Forcas subindo em cada praça como brinquedos de parque de diversões. Crianças com balões apontando pra elas, rindo, sem saber pra que serviam. Famílias aplaudiam enquanto os anúncios rolavam. Forcas especiais pra quatro corpos. Compre ingressos antecipados. Lugares garantidos pro enforcamento.
Minha equipe não foi pega por estar sem sinal. Não. Nosso crime foi pior. Fomos pegos com nossos livros de verdade. A batida veio de noite. Portas chutadas. Botas nas costas. Tentamos fugir, mas alguém nos entregou. Os guardas com os melhores sinais riam enquanto nos espancavam até sangrar. Seus sinais brilhavam como troféus nos pulsos. Alguns dos meus irmãos nem chegaram às celas. O asfalto os segurou.
Eu sou o mais velho. Também sou o mais calmo. Lembrei aos outros que isso estava escrito pra acontecer. Liderei eles numa canção. Minha voz falhou, mas resistiu. Um hino mais antigo que a memória. Vozes roucas de hematomas, mas mais altas a cada verso. O som encheu a cela. Eu disse a eles que o fogo que queima em mim também queima neles. Que ele não pode ser apagado. A carne é temporária. A alma luta pra sempre.
Vi quatro dos meus irmãos subirem ao cadafalso. Eles não vacilaram. Quando o carrasco abriu o alçapão sob seus pés, o céu se partiu como uma ferida. As nuvens se rasgaram. Uma luz jorrou tão forte que fez o aço tremer. O som não era trovão. Era mais profundo. Um rugido que sacudia medula e poeira.
Meus irmãos e irmãs baixaram a cabeça pro nosso Salvador. Os marcados também se curvaram. Não por reverência. Por puro terror. Alguns arranharam seus sinais, tentando arrancá-los da carne. Outros desmaiaram onde estavam. Mães cobriram os olhos dos filhos, mas eles ainda tremiam. Porque naquele momento, cada um deles soube.
Seus sinais não os salvariam. O sistema deles era pó.
Fomos espancados. Fomos famintos. Fomos ridicularizados. Mas naquele momento, não estávamos quebrados. Nos curvamos em esperança. Eles se curvaram em medo. E foi nesse dia que os fiéis do Caminho souberam que a guerra já estava ganha.
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