quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Eu toquei uma mixtape que minha primeira namorada fez pra mim há 15 anos. Agora a música tá grudada na minha cabeça, e acho que ela também

Tenho me sentido nostálgico ultimamente. Daquele tipo de nostalgia profunda, que dói no peito, que só te pega mesmo no comecinho dos trinta, quando você percebe que os anos do ensino médio viraram oficialmente "os bons e velhos tempos". É um sentimento perigoso, essa nostalgia. Te faz fazer besteira. Tipo fuçar naquela caixa empoeirada no fundo do armário, aquela com o rótulo "MEMÓRIAS - NÃO ABRIR".

Foi o que eu fiz na semana passada. E lá dentro, debaixo de um monte de ingressos velhos de shows desbotados e fotos granuladas e sem graça, eu encontrei. Um CD solitário, arranhado pra caralho, numa capinha de plástico fina. Não tinha etiqueta, só duas iniciais escritas com canetinha Sharpie prateada desbotada no próprio CD, entrelaçadas num coração. As minhas iniciais, e as dela.

Meu primeiro amor. A gente tinha dezesseis anos. Foi um namoro desajeitado, cheio de emoção adolescente, que queimou forte e depois, inevitavelmente, se apagou. Eu não pensava nela há anos. Mas segurando aquele CD... era como abrir uma cápsula do tempo. Era uma mixtape que ela tinha feito pra mim. Uma relíquia de uma época antes do streaming, antes dos algoritmos te dizerem o que você devia gostar. Uma coleção caprichada de músicas que era a trilha sonora inteira do nosso verão dos dezesseis.

Eu nem tenho mais um toca-CD de verdade. Mas tem um antigo e empoeirado no meu laptop. Com uma lentidão estranha, quase reverente, eu enfiei o disco. O drive zumbiu e clicou, se esforçando pra ler a superfície arranhada. E aí, a primeira faixa começou.

Era uma música indie rock meio obscura, do tipo que provavelmente só era legal pra uns milotinhos no mundo todo, e a gente era dois deles. Era a nossa música. A qualidade do som era uma merda. A transferência digital tava cheia de estalos, cliques e um pulo bem no meio do primeiro refrão, daqueles que irritam. Mas quando o riff de guitarra familiar e tilintante encheu meu apartamento quieto, a sensação foi elétrica. Eu tinha dezesseis de novo. Eu tava dirigindo no carro caindo aos pedaços dela, janelas abertas, o ar do verão grosso e quente, e essa música explodindo nos alto-falantes baratos. A memória era tão viva, tão forte, que doía quase.

Eu ouvi umas três vezes, perdido nessa dor agridoce de um passado que parecia mais real que o presente. Depois, segui com o meu dia.

A primeira vez que eu ouvi por acaso, eu sorri. Eu tava no supermercado, no purgatório estéril e iluminado por fluorescentes da ala dos cereais, tentando decidir entre duas caixas idênticas de flocos de aveia. E pelo sistema de som meia-boca e horrível da loja, eu ouvi. O riff de guitarra tilintante. A nossa música. Eu não ouvia essa música no mundo real há pelo menos dez anos. Olhei pro teto, com um sorriso genuíno e surpreso no rosto. Uma coincidência feliz. Um piscadinha do universo.

No dia seguinte, eu tava no ônibus, indo pro meu trampo de escritório que suga a alma. O busão tava lotado, um mar de casacos úmidos e rostos cansados de manhã. E no meio do ronco chato do motor e do burburinho das conversas, eu ouvi de novo. Saindo fraco dos fones de ouvido do cara do lado. A mesma guitarra tilintante. Os mesmos vocais melancólicos. O som era fino e distante, mas inconfundível. Outra coincidência, pensei, mas um fiozinho de inquietação começou a se entrelaçar na minha mente. O universo tava ficando um pouco grudado demais.

Naquela noite, eu tava no meu apê, tentando relaxar. Ouvi um carro passando na rua lá embaixo, janelas abertas, som no talo. E a música que veio jorrando era a nossa.

Mas dessa vez, eu notei uma coisa que fez os pelinhos do meu braço se arrepiarem.

Era o pulo.

Bem no meio do refrão, a música deu um salto, um soluço digital irritante, antes de continuar. Era o pulo exato, no momento exato, igualzinho ao do meu CD arranhado de quinze anos.

Uma sensação fria e pesada, tipo um bloco de gelo, se instalou no meu estômago. Eu corri pro laptop, coração na boca, e ejeeitei o CD. Segurei ele contra a luz. A superfície era um caos de riscos e amassados, um mapa da nossa descuido adolescente. Isso não era coincidência. Não podia ser.

A música não tava me seguindo. Minha cópia da música tava me seguindo.

Os dias seguintes foram uma descida pra um inferno quieto, rastejante e auditivo. Eu ouvia em todo lugar. Vinha do rádio de um pedreiro do outro lado da rua, som metálico e longe, mas eu ouvia o estalo familiar no marca dos 42 segundos. Eu passava por um café, e a música tava tocando lá dentro, o refrão pulando daquela forma exata e enervante. Eu tava na academia, e ela começou no sistema de som, os riscos e cliques tão claros quanto se estivessem saindo do meu próprio laptop. Olhei em volta, mas ninguém parecia notar. Eles só continuavam malhando, correndo, alheios ao fato de que a trilha do treino deles era um fantasma do meu passado.

Eu tava sendo assombrado, mas por um som. Um arquivo digital específico e danificado que de algum jeito escapou da prisão de plástico e agora tava sangrando pro mundo ao meu redor.

Tentei lutar contra isso. Tentei ouvir outra música, no talo nos fones pra abafar o mundo. Mas ela sempre achava um jeito de entrar. Eu tava num podcast, e a voz do apresentador distorcia, só por um segundo, na melodia da música. O jingle de um comercial na TV virava o riff de guitarra tilintante.

Tentei destruir a fonte.

Tirei o CD do laptop. Ele tava estranhamente quente no toque. Não joguei fora só assim. Sabia que não ia ser o bastante. Levei pro pátio de concreto atrás do prédio e pus no chão. Peguei um martelo e esmaguei. Não parei até virar só uma pilha de poeira cintilante, iridescente, e lascas afiadas de plástico. Varri a poeira pra uma sacola, amarrei bem e enterrei no fundo do lixeiro. Acabou. A conexão tinha que se romper.

Naquela noite, fui pra cama com um alívio profundo e exausto. Dormi, pela primeira vez em o que parecia semanas, um sono pesado e sem sonhos.

E aí, eu acordei com a música.

Não vinha de fora. Não de um carro, ou rádio, ou apartamento do vizinho.

Vinham de dentro da minha própria cabeça.

Era uma versão interna perfeita e metálica da música, tocando num loop implacável e enlouquecedor. E era a versão arranhada. Eu ouvia cada estalo, cada clique. Sentia o pulo no refrão como uma batida perdida no meu próprio peito.

Sentei na cama de supetão, mãos tapando os ouvidos, mas não adiantou porra nenhuma. Tava no meu cérebro.

Eu tava desesperado. Não falava com ela há quinze anos. A gente não tinha terminado bem. Mas ela era a única que podia ter uma resposta. Ela que fez a mixtape. Tinha que saber de algo.

Demorei um dia inteiro de buscas frenéticas e obsessivas pra achar ela. Não tava nas redes sociais. Achei um e-mail de trabalho dela num site de networking profissional. Ela era designer gráfica, morando numa cidade a milhas de distância. Escrevi o e-mail, mãos tremendo tanto que mal digitava.

"Eu sei que isso é loucura", escrevi. "A gente não se fala há anos. Mas preciso te perguntar sobre a mixtape que você fez pra mim no ensino médio. Aquela com a música indie rock. É importante. Por favor, me liga."

Mandei meu número. Não esperava resposta. Mas meu celular tocou menos de uma hora depois.

A voz dela tava diferente, mais grave, mas eu reconheci na hora. "O que você quer?", perguntou, tom frio e desconfiado.

"A mixtape", eu disse, as palavras saindo num jorro de pânico. "A música. Eu ouvi. E agora ela... ela tá me seguindo. Ouço em todo lugar. E é a versão arranhada. Esmaguei o CD, e agora tá na minha cabeça. Não para."

Teve um silêncio longo e pesado do outro lado. Quando ela falou, enfim, a voz era um sussurro engasgado e apavorado. "Meu Deus. Você tocou."

"O que você fez?", perguntei, um pavor novo e gelado se infiltrando em mim. "O que era aquela porra?"

"Foi burrice", disse ela, voz rachando. "A gente era moleque. Queria ser... ousada. Achei na internet. Num fórum antigo e esquisito de ocultismo. Era um ritual. Um feitiço. 'Um nó de amantes pra amarrar duas almas pra sempre com uma música'. Você gravava a música, uma que era especial pros dois, e... e pingava uma gota do seu sangue no disco. E uma gota do dela."

Voltei praquele verão num flash. Lembrei dela furando meu dedo com um alfinete de segurança, depois o dela, rindo como se fosse uma bobagem romântica, pressionando nossos dedos sangrando na superfície brilhante de um CD virgem.

"Achei que era brincadeira", soluçou ela. "Uma palhaçada gótica de adolescente. Nunca pensei que ia... funcionar de verdade."

"Funcionou como?", exigi. "O que isso fez?"

"Não sei!", gritou ela. "O post dizia que criava uma... conexão. Um eco. Que a música virava uma ponte entre a gente. Achei romântico."

A música na minha cabeça, que era um zumbido constante e baixo, de repente aumentou o volume. E enquanto isso, um flash de imagem, uma memória que não era minha, explodiu atrás dos meus olhos.

Eu tô sentada numa mesa de desenho. A luz do abajur é um poço quente e amarelo num logo pela metade. Minha mão segura uma caneta stylus, mas a mão é menor que a minha, mais fina, com um anel prateado no dedo indicador.

Arfei, tropeçando pra trás, cabeça latejando. "Eu... acabei de ver uma coisa", gaguejei no telefone. "Seu escritório. Um logo."

Ouvi uma respiração afiada do outro lado. "Como... como você saberia disso?"

"Qual o seu endereço?", perguntei, um pensamento frio e aterrorizante despontando na minha mente.

Ela ficou quieta um segundo. "Por quê?"

"Só me diz."

Ela disse. Um endereço numa cidade que eu nunca pisei. Uma rua que eu nunca ouvi falar. E enquanto ela falava o nome da rua, eu via. Via a fileira de prédios marrons, a árvore de ginkgo na esquina, a porta vermelha do prédio dela. Eu sabia o endereço sem ela ter dito. O conhecimento tava só... lá. Na minha cabeça.

Isso foi há uma semana. Tá piorando. A música é uma presença constante e enlouquecedora na minha mente. Os flashes tão mais frequentes, mais vivos. Eu vou fazer o jantar e de repente tenho a memória dela brigando com o chefe. Vou tentar dormir e sinto a sensação fantasma do gato dela dormindo no meu peito. A vida dela, as experiências dela, tão sangrando pra dentro da minha.

E é uma rua de mão dupla. Ontem, eu tava cantarolando a música sem querer, um tique nervoso e doido que criei. Meu celular tocou um segundo depois. Era ela.

"Para com isso", sussurrou, voz frenética. "Para. Eu ouvi você. Foi bem no meu ouvido. Como se você tivesse em pé bem atrás de mim. Para."

Eu tô me perdendo. A gente tá se perdendo. A entidade que a gente criou, amarrada àquela peça quebrada e arranhada de música. Tá espremendo nossas duas vidas separadas, nossas duas consciências, numa só. Colapsando quinze anos e mil milhas numa existência única, compartilhada e esquizofrênica.

E acho que sei como tem que acabar.

Essa coisa, essa entidade, é uma conexão entre dois pontos. Precisa de nós dois pra existir. E se um desses pontos for apagado... a ponte tem que cair.

Eu não quero morrer. Mas não aguento viver assim, minha mente um espaço compartilhado com o fantasma de uma pessoa que eu amava, nossos pensamentos e memórias um emaranhado gritante, tudo ao som de uma única música terrível, pulando sem parar. E sei que ela também não aguenta.

Então tô escrevendo isso como... sei lá. Uma confissão? Um aviso? Uma carta de suicídio? Eu só não sei qual de nós vai ter que ser o que faz isso. Mas acho que, se eu for, vou estar salvando nós dois.

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