Desde pequeno, eu tenho esses pesadelos que começam como dias normais. Eu estaria escovando os dentes, olhando no espelho, e então vinha o silêncio, como um aviso. Eu me preparava. Sentia que algo estava vindo atrás de mim. Às vezes, eu soltava um grito primal ou corria. Em algumas, conseguia escapar; em outras, acordava suado, com o coração na boca.
Pois é, ontem à noite, no meu sonho, *ele* me matou. E hoje, senti aquele silêncio de aviso, só que na vida real.
Eu estava no trabalho, revisando umas faturas, quando a sensação me pegou. Um silêncio ensurdecedor tomou conta do escritório. Era como se alguém perigoso tivesse entrado e estivesse me encarando. Mas eu não vi nada, só senti. Olhei ao redor, como faço nos meus sonhos, mas nada aconteceu. Isso era a vida real. Eu me lembrava de ter dirigido até ali, de ter acordado. Belisquei meu braço e senti a dor. Eu estava acordado. Que porra estava acontecendo?
Tentei seguir o dia, ignorando aquilo como um ataque de ansiedade, mas, ao longo do tempo, as sensações ficaram mais frequentes, mais intensas.
Por volta do meio-dia, meu colega me chamou pelo interfone. Disse que tinha alguém no balcão perguntando se eu estava no escritório hoje. Achei estranho. Eu não lido com clientes. Sou o cara dos bastidores. Quem diabos estaria perguntando por mim?
Chequei a câmera.
Lá estava um homem alto, peitudo, de camisa vermelha, parado na sala do balcão, olhando direto pra câmera. Eu podia sentir o olhar dele através da tela, como se ele soubesse que eu o via. Meu monitor devia estar com defeito. Parecia que tinha algo errado com os olhos dele. As pupilas estavam esticadas, dilatadas, ocupando quase todo o olho.
— O cara com as lentes de contato esquisitas? — perguntei ao meu colega.
— Não vi se ele estava com lentes ou não, o cara de camisa vermelha — respondeu ele.
Como ele não notou aqueles olhos?
— Diz que já desço — falei, com a voz tremendo.
Minha boca estava tão seca que mal consegui falar direito. O único som mais alto que as batidas do meu coração era o silêncio da sala.
Ele ainda estava lá, encarando a câmera, sem se mexer.
Corri pro fundo e saí pela porta dos fundos. Sem plano, só instinto de sobrevivência.
Corri até ver um ônibus da Pace se aproximando de uma parada. Não me importei pra onde ele ia. Entrei, mas só tinha uma nota de 20. Deixei meu celular e carteira no escritório. Minha vida vale mais que 20 pratas.
Deixei os solavancos do ônibus me distraírem do que aconteceu no trabalho. Por enquanto, eu estava seguro.
Essa sensação de segurança durou menos de um minuto. Quando passamos por baixo de um viaduto, meu coração disparou, um frio tomou conta de mim. Mas como?
— Moça, por favor, sente-se até pararmos! — ouvi o motorista gritar lá do fundo.
Olhei pro espelho gigante do motorista e vi uma senhorinha de pé no assento dela. Virei pra trás e fiquei preso nos olhos dela, dilatados.
Ela estava apontando direto pra mim, como se dissesse “Foi ele!”. Aqueles olhos esquisitos não piscavam. Eu não conseguia desviar o olhar até o ônibus começar a frear, me tirando do transe. Estávamos parando.
Saí correndo daquele ônibus ainda mais rápido que do escritório.
O ônibus foi embora com todos os outros a bordo, incluindo... *ela*.
Continuei correndo.
Lembrei que minha tia morava a pouco mais de um quilômetro dali. Não corria tanto desde o ensino médio. Depois do que pareceu uma hora, cheguei em segurança.
A casa branca dela me levou de volta às memórias de quando eu a visitava no fundamental. Ela sempre tinha biscoitos prontos pra mim até minha mãe vir me buscar, e a gente conversava até a hora de ir embora.
A porta estava destrancada. Será que ela estava em casa? Seria mais seguro se ela *não* estivesse?
— Oi!
— Tia Gigi?
— Tive um dia muito estranho, preciso ligar pro trabalho e avisar...
Ela estava parada no fim de um corredor escuro. Imóvel.
— Tá acontecendo umas coisas esquisitas ultimamente. Tá tudo bem por aqui? — perguntei.
Sem resposta.
Apertei os olhos, tentando enxergar os dela. Pareciam normais, mas por que ela não dizia nada?
Ela deu um pequeno passo à frente. Eu recuei, sentindo uma pontada de culpa por estar com medo.
Ela deu outro passo... e então correu pelo corredor. Nunca vi uma mulher de 70 anos se mover tão rápido. O som dos passinhos dela, tão rápidos, ainda me dá arrepios. Ela parou na minha frente. Perto demais.
Ela se inclinou e sussurrou no meu ouvido esquerdo:
— Ele tá aqui.
Dei um passo pra trás, finalmente conseguindo me mexer, e outro, até minhas costas baterem no que achei que era a porta. Uma mão pesada caiu no meu ombro direito. Um braço me envolveu pela esquerda. A mão no meu ombro me apertou pela direita, me prendendo, como se eu estivesse numa camisa de força. Cada vez mais apertado.
Era quente. Doía. Fico ansioso só de pensar nisso. Tudo o que eu podia fazer era fechar os olhos e torcer pra parar.
Eventualmente, parou. Acordei na minha própria cama. Exausto. Sem emoções.
Fiquei pensando o quanto daquilo foi real. Não sentia nenhuma dor do aperto. Não sentia quase nada. Demorei pra juntar as peças. Essa foi só a minha primeira experiência. Isso tá acontecendo há pouco mais de um ano. Cada vez que acontece, sinto minha vida sendo sugada, minha animação, meus interesses, hobbies, paixões. Tudo some quando essa coisa me encontra. Entro num piloto automático. Semanas, meses, sem sentir nada. Eventualmente, volto a me sentir eu mesmo. Até o silêncio voltar, e eu sei que ele me encontrou.
Isso tá acontecendo há mais de um ano. E enquanto escrevo isso, já sinto o silêncio voltando, rastejando pra cima de mim.
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