Foi uma viagem pelas profundezas da noite. À primeira vista, nada de especial — uma travessia do Porto de Dover até Calais, na França, voltando de uma viagem escolar pelo sul da Inglaterra. Mas na meia-noite em ponto, algo fora do comum aconteceu. Eu não estava sozinho; conhecia muita gente a bordo — colegas de escola, na maioria. Tinha um deles, o Vladislav, de quem eu vou falar. Um garoto cheio de força, determinação, amizade e esperteza — mas faltava uma coisa crucial: a capacidade de controlar o seu id quando tomava cafeína. E isso, como se viu, virou o pecado fatal dele.
No tic-tac fatídico do relógio, como se a própria Morte tivesse puxado a medula do pescoço dele, ele desabou. Nem devagar, nem rápido — caiu de joelhos, depois de lado, rolando de costas como uma baleia enorme ofegando em água doce. Ficou ali deitado, quase imóvel — mas respirando. Aí veio a risada. Não aquela risadinha suave, que nasce do coração com alegria ou inocência — mas a risada de um demônio, misturada com o choro de anjos. Ele ria e ria, mas não de alma — dava pra ouvir isso clarinho. Talvez viesse das profundezas do abismo aquático, ou dos cantos escuros da mente inquieta dele.
Ele tentou se levantar — de verdade, tentou. Mas por um bom tempo, não conseguiu. Se contorcia de um lado pro outro como uma galinha sem cabeça. Cobria o rosto como um palhaço apavorado, chutava as pernas como uma criança lutando pra chegar à superfície de um mar implacável.
A agonia dele durou uns quinze minutos, talvez mais. Mas, como o tamanho dessa história sugere, o tormento de Belzebu ainda não tinha acabado. Só que o poder dele estava enfraquecendo; o aperto da cafeína começava a soltar.
Vladislav conseguiu ficar de pé — resistiu ao chamado do mar lá embaixo. Mas a mente dele não estava livre. Ele não estava confuso — não como a gente esperaria. Sabia quem era, de onde vinha. Pelo contrário, parecia que algum conhecimento superior tinha se aberto dentro dele — ou, melhor dizendo, uma visão mais alta. Ele via o invisível. Quando olhava pra você, não olhava pra você — mas pra figura parada na sua frente. Que figura? A figura dos mortos — aqueles que os olhos mortais não conseguem enxergar. Alguns chamariam de alucinação. Ele chamava de espírito.
Ele começou a falar — numa língua que não nasce de gargantas mortais. Falava com aquelas figuras espectrais dos não-vivos. De repente, virou, deu dois passos em direção à parede e parou. Estendeu a mão com um suspiro. "Eles têm medo de mim", os lábios dele sussurraram. "Eles fogem."
A gente queria ajudar, mas o assombro e o terror nos congelaram no lugar. Ninguém se mexeu. Ninguém ousou.
Ele começou a balançar. De um lado pro outro. Não ao acaso — no ritmo, com o suave subir e descer do navio. Se movia junto com ele, um com o próprio casco. A gente não o seguiu. Tinha medo do poder dele. Só ficamos olhando, pra não deixar que ele virasse vítima de si mesmo.
Ele deu três voltas pelo convés antes de a gente ser forçado a descer pros decks de baixo, levando o corpo do Vladislav junto. Ele ainda respondia, andava sozinho, nos ouvia — mas não era mais ele. Era como se os pensamentos dele fossem governados por outro.
Apavorados, sentamos nos nossos assentos do ônibus no porão. Os olhos dele piscaram uma vez — e ele apagou. Segundo as palavras dele depois, dormiu a travessia inteira. Não lembrava de nada — como se alguém tivesse apagado a memória dele. Ou talvez alguém tivesse adicionado algo à nossa.
O que fica certo é isso: a mente dele tinha vagado pra algum lugar bem além do resto de nós.
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