Isso aconteceu lá no comecinho dos anos 2000, quando ainda se podia fumar em pubs, e meu pai me levava pras noites de quiz locais às sextas, quando minha mãe trabalhava no turno da noite e não podia ficar comigo. Minha memória tá meio embaçada, então posso esquecer alguns detalhes, mas ainda sinto o gostinho do cordial de limão com água com gás que meu pai me comprava enquanto eu rabiscava a folha do quiz.
O cara que apresentava o quiz era o Capitão Rhod. Ele só respondia se o chamassem pelo título, e toda noite, quando ele comandava o evento, os clientes bêbados gritavam um animado “Sim, sim, Capitão!”.
O Capitão Rhod tinha se aposentado na minha cidade depois de anos na marinha. Ele recebeu uma grana preta depois de navegar num navio da HMS com fiação defeituosa. Ele sempre contava a história de como pisou numa poça durante uma ronda e levou um choque (palavras dele, não minhas), o que deixou cicatrizes intricadas subindo pela perna. Se você o deixasse bêbado o suficiente, ele abaixava as calças rapidinho pra mostrar as marcas.
Eu gostava do Capitão. Ele me passava um pacotinho de batatinhas quando meu pai não tava olhando, e ele fazia uma imitação incrível do Pato Donald.
Todo mundo gostava do Capitão.
Acho que ele cansou depois de anos apresentando o quiz e ficando de bobeira na cidade. Depois de tanto tempo navegando pelos mares, a terra firme deve ter ficado chata pra ele. Ele teve a brilhante ideia de comprar um barquinho e zarpar de novo, contando pra todo mundo como ia passar o resto da aposentadoria no oceano, e que, quando finalmente batesse as botas, esperava que o barco continuasse navegando sem fim.
Ele ancorou o barco no porto, transformando-o aos poucos com o passar dos dias. Lembro da minha mãe perguntando por que ele não comprou um barco novo com toda aquela grana, e ele só deu uma risada de desdém.
*Anas platyrhynchos domesticus*: Pato de Chamado. A escolha de design pra Mallory, selecionada por um aluno do ensino fundamental como mascote pra acompanhar o Capitão Rhod na sua missão solo, construída pelos estudantes de engenharia da universidade local. Suas patas palmadas eram de aço pintado de laranja, no formato de triângulos robustos pra sustentar seu corpo gordinho de alumínio. A traseira tinha uma junta rotativa especial pra permitir que ela balançasse o rabo quando acionada. O Capitão escolheu um comando de voz especial, “menina esperta”, pra ativar esse movimento. Ele até batizou seu barquinho com o mesmo nome, pintando orgulhosamente “Menina Esperta” na lateral do casco.
O aluno pediu especificamente que a Mallory piscasse de vez em quando, dizendo que achava horrível robôs não fazerem isso naturalmente, com medo de que os olhos dela “ressecassem”. Então, a cada 30 segundos, finas chapas de metal se fechavam sobre os olhos da Mallory e se abriam rapidinho.
O Capitão amava o design da Mallory, levantando-a nos braços e chamando-a de “menina esperta” toda vez que ela entrava bamboleando na sala. Construíram uma rampa especial pra ela, pra que pudesse sentar na cadeira ao lado dele no barco. A rampa parecia uma versão em miniatura de um tobogã, porque uma inclinação muito íngreme fazia a Mallory tombar de lado sem chance de se equilibrar, e o Capitão tinha que correr pra resgatá-la.
De tanto que adorava sua companheira, o Capitão mexeu no design dela pra que pudesse dançar ao som de música. Nas palavras dele: “Bom, a gente vai tá lá pelo resto da vida, sabe? Não dá pra ficar os dois em silêncio, e eu não vou dançar sozinho.”
A dança em questão fazia a Mallory balançar o rabo e dobrar os joelhos pra cima e pra baixo. O Capitão dizia que a música favorita da Mallory era “Celebration” do Kool & The Gang, e ele garantiu que a faixa fosse gravada duas vezes no CD que levou pra viagem.
O Capitão ia zarpar no dia 11 daquele mês e espalhou a notícia pela cidade.
“Estejam lá às nove e meia da manhã, quero me despedir de todo mundo antes de ir. E tragam cerveja suficiente pra me manter animado.”
E aí chegou o dia 11, e meus pais seguraram minhas mãozinhas pegajosas enquanto íamos pro porto. Meu pai levou um pacotinho de batatinhas pro Capitão, querendo zoar ele por todas as vezes que ele me dava batatinhas escondido. E a gente esperou no porto. E esperou.
Nove e meia veio e passou, e dava pra ver o barquinho do Capitão subindo e descendo na água, mas nenhum sinal dele. Meu pai e alguns outros caras começaram a rir entre si, achando que ele tinha dormido demais por causa de uma ressaca. Depois de uns vinte minutos, eles decidiram subir no Menina Esperta pra ver como ele tava. Eu já tava ficando chata, com os pés doendo de tanto andar, e não tava quieta sobre minha dor. Acho que eles teriam esperado mais se eu não estivesse a ponto de ter um chilique. Meu pai me passou as batatinhas pra “segurar com cuidado” enquanto ele ia com os outros caras dar uma olhada.
Meu pai ficou só alguns minutos no barco antes de voltar rápido pra mim e pra minha mãe, segurando nossas mãos. Ele tava pálido como um fantasma e murmurava algo pra minha mãe. Eu, claro, tava mais preocupada em encarar as batatinhas e tentar abrir o pacote com minhas mãos pequenas.
Desculpa dizer, mas é aqui que minha memória falha, com minha mãe me pegando no colo e me levando pra casa, mas eu lembro que nunca mais vi o Capitão. Durante todos esses anos, achei que ele tinha zarpado e morrido em paz no mar, ainda navegando mesmo depois da morte.
Falei dele pro meu pai na última vez que fui pra casa, sugerindo que a gente devia ir a um quiz de pub de novo, como antigamente. Vi meu pai estremecer com a ideia, então insisti:
“Como a gente fazia, com aquele cara, o Capitão.”
“Meu Deus, não fala dele. Pobre coitado.”
“Como assim? Pensei que ele tivesse zarpado.”
“Tá brincando? O barco nunca saiu do porto. A gente encontrou ele sentado na cadeira, na frente do leme.”
Aí meu pai contou os detalhes que eu era jovem demais pra entender na época.
Os homens encontraram o Capitão na cadeira, como ele disse. Bom, mais ou menos. O queixo dele parecia que tinha sido puxado pra baixo com força, ficando escancarado, com uma mistura de sangue e baba pingando. Meu pai disse que a barriga do homem tinha sido rasgada, como uma criança abrindo presentes no aniversário com aquela ganância toda. Meu pai só olhou por um instante, horrorizado, mas jurou que parecia que faltava algo nas entranhas dele, seja lá o que isso signifique. Pelo que disseram, não havia sinal de invasão, nada além do Capitão no barco. A única pista era uma pequena inundação no deque inferior, causada por um rasgo na parte interna do casco.
Mas a Mallory foi encontrada no colo do Capitão. A bateria dela tinha queimado em algum momento da noite, e as chapas de metal tavam fechadas sobre os olhos dela. Uma inspeção mais detalhada das peças do robô, depois que os estudantes da universidade a desmontaram, mostrou que a junta rotativa dela tinha se desgastado tanto que tava fininha, quase a ponto de quebrar.
Quem os encontrou disse que a Mallory tava aninhada no colo do Capitão, com o corpo e o rosto virados pra janela na frente do barco. A rampa tipo tobogã dela tava encostada na cadeira do Capitão, e havia arranhões no chão de metal do barco, saindo da cadeira do co-capitão.
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