Isso começou há quatro anos. Me botaram numa investigação num condomínio chique, daqueles fechados nas colinas de uma cidadezinha rica e quieta. O tipo de lugar com gramados impecáveis e garagens pra três carros, onde o único barulho à noite é o zumbido do ar-condicionado central. Um vizinho finalmente ligou reclamando – um cheiro, uma podridão doce e doente que tava piorando há dias, saindo de uma casa enorme e moderna no final de uma rua sem saída.
A polícia local fez o de sempre: bater na porta, tentar falar com o dono, checar com corretores. Nada. No final, não tiveram escolha a não ser arrombar a porta. O que acharam lá dentro fez policiais veteranos vomitar no piso de azulejo importado, branquinho. O chamado veio pra mim na hora.
Meu nome é Mark. Sou analista de investigações criminais. Meu serviço não é só juntar provas; é entrar na cabeça do monstro que deixou aquilo pra trás. Eu achava que tinha visto o pior que a humanidade podia oferecer. Estava enganado pra caralho.
O cheiro me acertou primeiro, um soco no estômago mesmo com o Vicks esfregado embaixo do nariz. Era cheiro de morte, sim, mas por baixo tinha outra coisa... metálico, como cobre, e um aroma enjoado de ervas, tipo sálvia queimada misturada com leite azedo. O ar tava gelado, de um jeito anormal, como se o ar-condicionado da casa tivesse sido ligado no mínimo por semanas.
Aí eu vi a cena na sala de estar.
Meu cérebro, treinado pra reconhecer padrões, travou. Por uns dez segundos inteiros, se recusou a montar as peças num quadro que fizesse sentido.
Nove mulheres. Todas grávidas.
Elas tavam arrumadas num círculo perfeito no piso de madeira escura, os corpos virados pra dentro. Cada uma tinha sido... aberta. Os fetos, pequenos e terríveis, tavam colocados do lado delas. Cada corpinho minúsculo tinha sido decapitado, o coração arrancado. As cabeças e os corações sumiram. O horror era metódico, uma progressão. A primeira mulher, pelo relatório de forense depois, tava de um mês. A próxima, dois meses. Depois três. E assim foi, um calendário grotesco, até oito meses.
No centro desse círculo infernal tinha uma nona mulher. Ela tava crucificada num X grande de madeira bruta, os braços abertos, a cabeça tombada no peito. Ela não fazia parte da sequência. O legista depois determinou que o bebê dela, quase no fim da gestação e viável, tinha sido removido post mortem. Sumiu. Não tava com os outros. Só... sumiu.
Todas as mulheres tinham a garganta cortada, um corte fundo e final. E na testa de cada uma, um símbolo tinha sido entalhado. Não cortado a esmo, mas entalhado com uma precisão doida.
Meus olhos, ardendo com o fedor e a visão, foram atraídos pro chão em volta do círculo. Desenhados no que eu primeiro pensei ser sangue, tavam cinco sigilos grandes e intricados. Eles formavam um pentagrama, com cada símbolo marcando um ponto. Meus estudos em criminologia, minhas mergulhadas no esotérico e no oculto pra casos passados, entraram em ação. Eu reconheci eles. Mammon. Belial. Moloch. Lilith. Paimon. Demônios. Entidades que representam ganância, rebelião, sacrifício de crianças, sexualidade torcida e conhecimento proibido. O sangue usado pra desenhar eles já tava descascando, virando um marrom opaco e enferrujado.
Senti um frio que não tinha nada a ver com o ar-condicionado se infiltrar nos meus ossos. Isso não era só um assassinato. Era uma invocação.
A investigação foi uma parede de tijolos. Identificamos as mulheres. Todas de famílias antigas e podres de ricas, de estados diferentes, três no total. Quando avisamos as famílias, a reação foi... arrepiadora. Não era luto. Nem raiva. Uma aceitação quieta e resignada. Um pai, um cara com voz de cascalho e bolsos cheios de grana, me disse ao telefone: “A gente sabia que isso era uma possibilidade. Meu conselho, rapaz? Deixa pra lá. Foca em outra coisa. Você vai dormir melhor. Viver mais.”
A linha caiu. Eu fiquei ali, o fone zumbindo na mão, sentindo um tipo novo de pavor. Não era medo de um assassino, mas medo de um sistema, de um mundo tão podre que uma atrocidade dessas podia ser recebida com um dar de ombros.
Minha vida começou a desmoronar. Eu sempre fui firme, minha mente era minha ferramenta mais afiada. Mas agora, as bordas tavam borrando. Eu tava escrevendo um relatório e ouvia um som fraco, úmido, de rasgar vindo do corredor. Virava, e nada. Meus reflexos tavam mais lentos. Minha atenção se desfazia. Me botaram em outros casos, rotina pura, mas meu desempenho tava uma merda. As imagens daquela casa tavam queimadas na parte de trás das minhas pálpebras.
O ponto de ruptura veio numa parada de trânsito. Uma besteira simples. Eu tava de folga, preso no engarrafamento. Um carro deu um tiro – daqueles de escapamento. Na fração de segundo, meu treinamento devia ter identificado o som. Em vez disso, minha mente ferrada gritou TIRO. Eu saquei minha arma. Foi um milagre que eu não atirei. A investigação interna me limpou – o outro motorista tava apavorado, mas ileso. Mas o estrago tava feito. Minha instabilidade agora era oficial. Me botaram na geladeira.
A pressão tava crescendo, um grito preso no crânio. Pra limpar a cabeça, resolvi correr até a casa de um amigo a uns quilômetros dali. Era um caminho por um bairro suburbano quieto, ladeado de carvalhos velhos e casas de dois andares. Coloquei os fones, liguei o som no talo e tentei correr mais rápido que o ruído na minha cabeça.
Mas os sons furaram. Um soluço de mulher, gutural e sofrido, entrelaçado nas notas de uma música de rock. O corte úmido, cirúrgico, de uma lâmina por baixo do baixo. Eu arrancava os fones, o coração martelando no peito, e só achava o canto dos pássaros e o zumbido distante de um cortador de grama.
Foi aí que eu o vi.
Ele tava encostado numa parede de tijolos no meio do quarteirão, uma figura alta e magra num casaco longo e escuro. Era uma noite quente, o casaco tava fora de lugar. Mas era a postura dele – uma imobilidade absoluta, sobrenatural. A maioria das pessoas se mexe, muda o peso, checa o celular. Ele era como uma estátua. Quando passei correndo, senti um ponto frio no ar em volta dele, e uma onda de medo puro, animal, me invadiu. Não era medo de um cara perigoso. Era medo de algo que nem era gente.
Acelerei, a respiração saindo em golfadas irregulares. A sensação de ser observado era um peso físico entre as omoplatas. Olhei por cima do ombro.
Ele tava lá. Atrás de mim. Encostado em outra parede, uns cinquenta metros pra trás. Imóvel. Silencioso. De um jeito impossível, ele tinha se movido sem fazer barulho.
Comecei a correr de verdade, minha corrida virando uma disparada em pânico. Toda vez que eu ousava olhar pra trás, ou pegava um vulto no canto do olho, ele tava lá. Encostado numa árvore. Desabado numa balanço de varanda escura. Sempre na mesma distância, sempre com aquela imobilidade perturbadora.
Aí eu olhei pra frente.
Ele tava no meio da calçada, a vinte pés na minha frente.
Eu parei derrapando. Minha música cortou de repente, os fones emitindo um chiado vazio e morto. O rosto dele tava na sombra, mas eu vi a boca. Ela se esticava num sorriso. Mas tava errado. Tava largo demais, rasgando as bochechas, distorcendo até os ossos da cara. Era um riso de caveira, daqueles que não deviam existir.
O medo virou uma raiva cega, primal. Não sei de onde tirei a coragem – ou a burrice. Não pensei. Só rugi e parti pra cima dele, querendo derrubá-lo no chão.
Meus braços não fecharam em volta de um corpo. Fecharam em volta de uma nuvem densa, vibrante. Teve um zumbido ensurdecedor, e o que eu achava ser um casaco escuro se dissolveu numa massa rodopiante de moscas pretas. Elas explodiram pra fora, o zumbido enchendo a rua silenciosa, rastejando no meu rosto e braços antes de se espalhar no ar crepuscular.
Eu fiquei ali, sozinho, ofegante, os braços abraçando o nada.
Finalmente cheguei na casa do meu amigo. Tropecei pela porta dele, encharcado de suor e fedendo a pânico. Ele perguntou se eu tava bem. Forcei um sorriso, os músculos da cara doendo com o esforço. “Tô ótimo”, eu grasnei. “Só forcei demais na corrida.” Sentei no sofá dele, trocando conversa fiada, fingindo sanidade enquanto minha realidade toda rachava. Não contei pra ele. Como eu poderia?
Pouco depois, uma agência federal com jurisdição sobre meu departamento caiu matando. Declararam eu e minha equipe “incompetentes” e tomaram o caso. Uns meses depois, ouvi pelos corredores que tinha levado um encobrimento total. Fechado. Enterrado.
Mas a coisa que me seguiu pra casa não recebeu o memorando.
A descida final foi quieta, insidiosa. No meio da noite, eu deitava na cama e ouvia o concreto da fundação da casa rangendo, como se algo enorme estivesse mudando de posição do lado de fora da janela. As tábuas do piso vibravam com um zumbido baixo e ressonante. Bem na beira do sono, um grito rasgava o silêncio – um som de agonia pura, sem filtro – e eu acordava sobressaltado, encharcado de suor, o eco morrendo nos meus ouvidos.
Aí vieram as luzes. Não faróis. Eram círculos doentios de verde fosforescente, que flutuavam pelas minhas persianas fechadas e deslizavam pelas paredes. Elas se moviam em padrões lentos e deliberados, traçando os sigilos que eu tinha visto entalhados naquelas testas.
Minha mente quebrou. Caí numa depressão tão funda e escura que não via saída. Terapia, remédios... nada funcionava. O mundo tinha virado uma casca fina, e a verdade horrenda do que espreitava por baixo sangrava pra dentro.
A única coisa que me jogou uma corda, a única coisa que as moscas zumbindo e as luzes rastejantes pareciam evitar, foi Deus. Não sou pregador. Não tô aqui pra converter ninguém. Mas tô te dizendo que, quando comecei a rezar, quando eu realmente, desesperadamente, estiquei a mão pra uma luz maior que aqueles círculos verdes na parede, a pressão na casa diminuiu. Os sons sumiram. Os pesadelos ficaram menos frequentes.
Demorou dois anos. Dois anos de oração, de me forçar a fazer o bem, a ajudar os outros, a encher o buraco que o horror tinha cavado em mim. Agora eu funciono. Voltei pro batente. Sou tão feliz e tranquilo quanto um cara no meu ramo pode ser.
Mas ainda não durmo bem. Porque eu sei o que tá lá fora. Eu sei o que pode ser convidado pro nosso mundo com sangue e crença. E sei que, seja lá o que eles tavam tentando invocar naquela casa, uma parte escapou. E ainda tá procurando um lar.
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