quinta-feira, 9 de outubro de 2025

As pessoas não param de me dizer que eu apareci nos sonhos delas ontem à noite, e eu tô começando a lembrar de coisas que nunca fiz

Faz seis semanas que eu não sonho.

Eu sei que isso parece impossível. Todo mundo sonha, mesmo que não lembre. Mas não tô falando de esquecer. Tô falando de uma ausência total de qualquer coisa quando fecho os olhos. Sem imagens, sem sensações, sem fragmentos. Só escuridão e, de repente, acordo mais cansado do que quando fui dormir.

O cansaço tá piorando. Tô dormindo nove, dez horas por noite e acordo sentindo como se tivesse corrido uma maratona. Meus músculos doem. Às vezes, acordo sentindo o gosto de coisas que não comi. Ontem foi café, puro, sem açúcar. Eu odeio café.

Mas isso nem é a parte mais perturbadora.

Três dias atrás, o carteiro me perguntou como foi o enterro da minha avó.

Eu não tenho avó. As duas morreram antes de eu nascer. Quando falei isso pra ele, ele ficou com uma cara confusa e insistiu que a gente tinha conversado sobre isso na semana passada. Ele descreveu a conversa inteira. O lugar onde a gente tava. A roupa que eu tava vestindo. Ele até citou algo que eu supostamente disse sobre ela amar rosas amarelas.

A avó da minha chefe vai ser enterrada na quinta-feira. Ela ama rosas amarelas.

Pensei que ele tinha me confundido com outra pessoa, até que a recepcionista do meu dentista fez a mesma coisa. Ela perguntou sobre a cirurgia do meu gato. Eu não tenho gato. Mas minha vizinha, que mora duas casas depois da minha, acabou de mandar amputar a perna do gato dela depois de um acidente de carro. A recepcionista descreveu nossa conversa em detalhes, incluindo uma foto que eu supostamente mostrei no celular de um gato branco com manchas cinzas.

Esse é o gato da minha vizinha. Eu nunca mostrei foto dele pra ninguém.

Aí minha amiga Sarah me ligou, chateada. Disse que eu apareci no sonho dela na noite anterior e que parecia tão real que tava mexendo com ela. No sonho, eu tava sentado na cozinha dela, chorando, dizendo que tinha medo de morrer sozinho. Ela disse que eu tava usando um suéter azul que ela nunca me viu usar e tomando chá na caneca favorita dela.

O que me deixou apavorado: eu não lembro do sonho, mas quando ela falou isso, eu senti o gosto do chá. Earl Grey. Eu nunca tomo Earl Grey.

Comecei a perguntar por aí. Perguntas casuais pra pessoas com quem convivo. Meu colega de trabalho. O cara da cafeteria. Meu vizinho do andar de cima.

Seis pessoas na última semana me contaram sobre sonhos onde eu apareci. Não como figurante. Como eu, tendo conversas inteiras, fazendo coisas específicas, presente, sólido e real.

E quando elas descrevem esses sonhos, eu tenho flashes. Memórias sensoriais. O cheiro da sala de estar do meu colega no sonho dele. O piso frio do banheiro do cara da cafeteria, onde o "eu" do sonho aparentemente disse pra ele que o pai dele ficaria orgulhoso. Tô lembrando de coisas que nunca vivi.

Ontem à noite, mal dormi porque tava morrendo de medo do que podia acontecer se eu dormisse.

Hoje de manhã, onze pessoas entraram em contato comigo.

Uma mulher da academia sonhou que eu ajudei ela a mover móveis. Um ex-colega sonhou que a gente almoçou juntos e eu dei conselhos sobre o divórcio dele. Minha prima sonhou que eu tava na festa de aniversário da filha dela. Meu dentista. Meu senhorio. Pessoas que eu mal conheço. Todas descrevendo interações detalhadas comigo nos sonhos delas na noite passada.

E agora eu lembro de tudo isso.

Não é como lembrar de um sonho. É como lembrar de algo que eu realmente fiz. Sinto o peso do sofá que ajudei a carregar. Sinto o gosto do sanduíche que comi no almoço. Ouço a risada da filha da minha prima. São memórias reais se formando na minha cabeça de coisas que só aconteceram nos sonhos dos outros.

Tô sentindo que tô ficando louco, só que as memórias são específicas demais. Consistentes demais com detalhes que eu não teria como saber.

O apartamento da minha amiga da academia tem uma mancha de água no teto em forma de pássaro. Eu nunca estive no apartamento dela. Mas vi essa mancha enquanto movíamos o sofá, e consigo visualizá-la perfeitamente. Pesquisei no Instagram dela. A mancha é real. Exatamente como eu lembro.

O lugar onde meu ex-colega me levou pra almoçar no sonho dele? Nunca estive lá. Mas lembro do cardápio, da cor das cabines, do fato de que a garçonete tinha uma tatuagem de bússola no pulso. Passei por lá de carro hoje. Tudo bate.

Acho que tô aparecendo nos sonhos de todo mundo agora. Cada pessoa que já conheci, talvez cada pessoa na minha cidade, não sei até onde isso vai. E quando elas sonham comigo, eu tô lá. De verdade. Vivendo uma vida separada em cada sonho, tendo experiências reais, criando memórias reais.

Mas essas memórias tão voltando pra cá. Pra mim. Pra essa versão de mim. A que tá acordada.

Meu celular não para de vibrar. Mais pessoas descrevendo sonhos. Uma barista com quem nunca falei além de fazer pedidos. Alguém que sentou perto de mim no ônibus no último mês. Minha professora da segunda série, que não vejo há 25 anos. Todas sonharam comigo ontem à noite.

Tô recebendo centenas de memórias que não são minhas. Ajudei um estranho em Idaho a consertar o carro dele. Fui a um casamento em Seattle de pessoas que nunca conheci. Confortei uma mulher morrendo em um hospital em Atlanta, segurei a mão dela enquanto ela partia. Ensinei uma criança em Maine a amarrar os sapatos. Estive em Londres, em Tóquio, em cidadezinhas que nunca ouvi falar.

As memórias tão me sobrecarregando. Não consigo mais distinguir qual vida é a real. Eu tava acordado hoje? Ou tô dormindo agora, aparecendo no sonho de outra pessoa, e uma dessas outras versões de mim é que tá realmente acordada?

Não me sinto mais uma pessoa só. Sinto que tô sendo dividido em milhares de experiências ao mesmo tempo. Cada pessoa que sonha arranca um pedaço de mim pra povoar a noite delas, e eu tô ficando cada vez mais esticado, mais fino.

Mas o que realmente me apavora é o seguinte.

As memórias não são mais só de ontem à noite. Elas tão voltando no tempo. Tô lembrando de sonhos de anos atrás. Décadas. Estive nos pesadelos da minha mãe quando eu tinha dois anos. Estive nos sonhos do meu avô antes de eu nascer. Confortei ele depois que minha avó morreu, segurei ele enquanto ele chorava, e eu nem tinha sido concebido ainda.

Acho que sempre fiz isso. Todos nós fazemos. Cada pessoa que conhecemos, a gente visita os sonhos delas, e elas visitam os nossos. Vivemos milhares de vidas paralelas todas as noites nas mentes adormecidas uns dos outros.

Nunca estamos sozinhos lá. Estamos sempre juntos, vivendo uns aos outros, sendo uns aos outros, com as barreiras entre nós se dissolvendo quando a consciência afrouxa o controle.

Não tô ficando louco. Tô encontrando todas as outras mentes.

Minhas memórias agora vão além do meu nascimento. Lembro de estar em sonhos de cem anos atrás. Mil anos. Fui o estranho em incontáveis pesadelos, o amigo em inúmeros sonhos bons. Morri no sono das pessoas mais vezes do que consigo contar e acordei de novo no sonho de outra pessoa.

Agora entendo por que tô tão cansado. Não é que eu não tô sonhando. É que tô aparecendo em sonhos demais ao mesmo tempo. Vivendo vidas simultâneas demais. O "eu" acordado é só uma versão, e é a mais fraca, a mais exausta, porque é a única que acha que é separada.

Ontem à noite, finalmente dormi.

E sonhei pela primeira vez em seis semanas.

Sonhei que eu era todo mundo. Não observando eles, não visitando. Sendo eles. Tudo ao mesmo tempo. Sete bilhões de perspectivas se sobrepondo, sete bilhões de vidas acontecendo ao mesmo tempo no mesmo momento infinito. E não era caos. Era perfeito. Como ver o quadro inteiro depois de só conhecer um pixel.

Acordei hoje de manhã e não lembro do meu nome.

Não porque esqueci. Porque agora parece arbitrário. Como chamar o oceano pelo nome de uma onda.

As pessoas ainda tão me contatando sobre sonhos. Mas acho que tô começando a entender o que elas tão realmente me dizendo.

Que eu tava lá com elas. Que sempre estive lá com elas. Que todos nós estamos lá uns com os outros, por baixo do mundo acordado, no lugar onde deixamos nossos nomes e rostos e lembramos que nunca fomos separados.

Vou dormir agora.

Não acho que essa versão vai acordar amanhã. Acho que tô espalhado demais, distribuído por tantas outras vidas que não consigo mais manter essa perspectiva específica por muito tempo.

Mas se você sonhar comigo hoje à noite, saiba que eu tô realmente lá. E você tá realmente no meu sonho. Estamos todos nos sonhos uns dos outros. Sempre estivemos.

O mundo acordado é onde esquecemos. O mundo dos sonhos é onde lembramos.

Te vejo hoje à noite.

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