quinta-feira, 9 de outubro de 2025

O Neonatologista

Viver no interior da Rússia sempre foi difícil. Nossa pequena cidade, com menos de 80 mil habitantes, poderia ser considerada um lugar sem esperança para a maioria das pessoas. As chances de enriquecer eram praticamente nulas, as possibilidades de sair dali para morar em uma cidade grande eram mínimas, e férias em destinos exóticos — ou qualquer destino, pra ser honesto — simplesmente não existiam. Mas, apesar de faltar algumas coisas na nossa vida, outras eram razoáveis: conseguíamos comprar comida, e o acesso à saúde era decente.

Esse último ponto era especialmente importante na Rússia por causa da nossa população envelhecida. A maioria dos jovens estava de mudança para as grandes cidades, e a necessidade de alas neonatais tinha diminuído em cidades pequenas como a nossa. A idade média dos médicos por aqui era acima de 65 anos. Nossa cidade ficou sete anos sem uma ala de neonatologia. Pra quem não conhece o termo, um neonatologista é o médico que cuida de recém-nascidos nos primeiros 28 dias de vida e lida com bebês que nascem com problemas.

Dá pra imaginar a surpresa quando, dois anos atrás, um médico relativamente jovem veio de São Petersburgo pra trabalhar no nosso hospital como neonatologista. O doutor Grigorii Feodorov, ou Grisha, como a gente chamava, chegou de São Petersburgo pra nossa cidade.

Gravidez não era tão comum por aqui, mas ainda tinha alguns jovens tentando formar uma família feliz. Além disso, nosso hospital atendia algumas vilas próximas, então o fluxo de pacientes era maior que a nossa população. Partos aconteciam, digamos, uma vez por semana. Todo mundo ficou feliz com a chegada do Dr. Grisha; um jornal local até publicou uma matéria sobre ele.

Segundo a matéria, o doutor Grigorii Feodorov tinha 37 anos e passou a vida toda em São Petersburgo, onde estudou medicina e se especializou em neonatologia. A esposa dele morreu num acidente de carro, e, pouco depois, os pais dele também faleceram. Foi aí que ele decidiu dedicar o resto da vida a ajudar quem mais precisava: os bebês nascidos no interior da Rússia.

A matéria também dizia que o Dr. Feodorov tinha começado a se interessar por produzir medicamentos — não era sobre descobrir curas pra doenças incuráveis, mas fabricar remédios básicos e essenciais que eram difíceis de encontrar no interior da Rússia.

Nos dois anos que o Dr. Feodorov trabalhou na nossa cidade, ele salvou cerca de 80 bebês. Pelos registros dele, dois deles foram salvos graças a um medicamento que ele produziu, chamado surfactante — uma espécie de óleo que impede o colapso dos pulmões de bebês prematuros. Isso convenceu o hospital a ceder algumas salas no porão pra ele tentar produzir mais, e até destinaram um pequeno orçamento pra apoiar o projeto.

Claro, nem todas as gestações de risco tinham um final feliz. Alguns bebês não sobreviveram, e dois deles, infelizmente, morreram logo depois que as mães faleceram durante o parto. Os pais ficaram furiosos e acusaram o hospital, incluindo o Dr. Feodorov, de negligência médica, que, nas palavras deles, levou à morte das esposas e dos filhos recém-nascidos.

Um dos pais, o Alexey, começou a beber pesado depois do ocorrido. O outro, o Seva, tinha uma filha de 5 anos e estava segurando as pontas por causa dela. O Seva é colega meu; trabalhamos juntos na prefeitura como inspetores de segurança alimentar.

Ele é o motivo de eu saber tanto sobre o Dr. Feodorov. Depois do acidente, a vida na nossa cidadezinha esquecida por Deus ficou monótona e triste. Isso até recentemente, quando o Seva foi escalado pra fazer um treinamento em São Petersburgo pra se atualizar sobre novas regulamentações de alimentos. Inicialmente, nosso chefe queria me mandar, mas a viagem envolvia pegar um trem até uma cidade maior e depois voar de avião até São Petersburgo e voltar. A ideia me apavorava — nunca tinha entrado num avião —, então o Seva foi no meu lugar, deixando a filha com os pais da esposa falecida.

Quando ele voltou, estava visivelmente agitado e, numa noite, me chamou pra tomar um trago na casa dele depois que a filha dormiu. Essas foram algumas coisas que ele me contou:

“Não é possível. Deve ser um engano. Ele pode ter cometido um erro com a Svetlana, mas salvou tantas outras vidas. Ele não pode ser um impostor — com certeza é médico,” eu respondi.

“Ele tem um ponto.”

“Tá, tá. Você tem certeza de que as pessoas em São Petersburgo estavam certas? Checaram direitinho? E outra, se ele se mudou pra cá, os registros dele não teriam sido transferidos pro nosso distrito?” perguntei.

“Tá, tá. Tomara que seja só uma série de infelicidades.”

O resto da noite foi só conversa fiada, nada importante.

Duas semanas depois, o Seva me disse que o cara que ele subornou afirmou que havia apenas um diploma com aquele nome, emitido há 74 anos, o que significaria que o Dr. Feodorov teria 104 anos. Isso queria dizer que, ou ele estava usando a licença de um cara morto e era realmente um impostor que colocava as crianças da nossa cidade em risco, ou o Seva estava ficando louco.

Ele disse que conseguiu uma reunião com o governador, que afirmou que o Dr. Feodorov tinha uma licença válida e realmente se formou em medicina em São Petersburgo. Decidi deixar pra lá ali mesmo.

Passaram-se alguns meses. O Seva ainda estava muito desconfiado e começou a cogitar espionar o Dr. Feodorov. Eu insisti pra ele não fazer isso e aceitar que coisas ruins acontecem com pessoas boas sem motivo. A esposa dele foi operada por outro médico, e, mesmo que o Feodorov fosse um impostor, ele não era responsável pela morte dela. A responsabilidade dele era pelo bebê, que, segundo o Dr. Feodorov, tinha sido infectado por bactérias durante o desenvolvimento e já estava gravemente doente antes do nascimento.

O Seva jurava que conseguiu ver o filho por um minuto inteiro e que ele parecia completamente normal. Eu disse que talvez ele estivesse enganado.

Mais algumas semanas se passaram sem nada de mais — até que, num sábado, acabei bebendo com uns amigos até muito tarde. Na Rússia, é comum tomar um trago com os amigos em casa, mas dessa vez estávamos bebendo na frente de um prédio de apartamentos. A maioria já tinha ido embora, mas eu estava tão bêbado que queria mais. Foi quando vi o Alexey — o outro pai que perdeu a esposa e o filho na presença do Dr. Feodorov. Ele vinha cambaleando pra casa, visivelmente bêbado, segurando uma garrafa quase cheia.

Eu acenei pra ele. Ele me viu e acenou de volta.
“Na vibe de uma companhia?” perguntei.
“Sempre, amigo. Vem, vamos pra minha casa — tá ficando frio aqui.”

Fomos pro apartamento dele, que estava uma bagunça — lixo espalhado, garrafas vazias e o que eu acho que eram baratas. Continuamos bebendo e falando sobre nada até que ele começou a contar sobre o filho recém-nascido que morreu:

Ele começou a chorar. Tentei consolar ele e, depois de ter certeza de que ele estava bem, voltei pra casa com o sol nascendo.

No dia seguinte, liguei pro Seva e disse que ele talvez estivesse certo o tempo todo. Ele me contou que, no último mês, vinha espionando o Feodorov. Segundo ele, nada suspeito aconteceu — o cara ia pro trabalho, voltava pra casa e, às vezes, saía pra tomar um trago com outros médicos.

Duas coisas, porém, eram estranhas: ele não demonstrava interesse por nenhuma mulher, e, a cada poucos dias, ficava até muito tarde nas salas do porão trabalhando nos remédios que supostamente estava produzindo.

O Seva queria dar uma olhada nas salas do porão, e, depois de muita discussão, eu concordei, meio a contragosto, em ajudar — mas seria eu a entrar.

Numa sexta à noite, fomos atrás disso. Entramos no hospital pelo pronto-socorro. Eu disse que estava com febre e menti que tinha vomitado várias vezes. Enquanto esperava pra ser atendido pelos médicos, o Seva se esgueirou por um corredor e desceu pro porão.

Enquanto eu esperava, uma senhora com o que parecia ser um braço quebrado chegou. Eu me desculpei com a enfermeira:

A enfermeira agradeceu pela compreensão, e eu saí rápido do hospital, tentando localizar as janelas do porão. Depois de vagar por alguns minutos, notei que as persianas de uma das janelinhas estavam levantadas e uma luz se movia lá dentro — devia ser o Seva.

Fui investigar e, pelo que vi pela janela (que ficava perto do teto da sala), era o que se esperava de um pequeno escritório de produção de remédios: garrafas por aí, alguns equipamentos e uma grande mesa de madeira coberta com um pano branco, parecido com os usados pra embrulhar recém-nascidos.

A única coisa estranha era que tinha muitas velas de igreja. No cristianismo ortodoxo (o mais comum na Rússia), as velas são finas e amarelas. Era estranho ver velas assim num laboratório, mas talvez ele as usasse pra aquecer alguma coisa.

O Seva sinalizou pra eu sair dali, e eu saí. Esperei meia hora até ele sair do hospital.

“Achou algo suspeito?”
“Pra ser honesto, não — só as velas. Nada fora do normal,” ele disse.
“Vamos pra algum lugar quente pra conversar.”

Fomos pra um lugar que, nos Estados Unidos, seria tipo uma lanchonete, pedimos cervejas e comida, e ele explicou que não achou nada suspeito. Tinha muitos produtos químicos, mas isso era esperado na produção de remédios. O Seva admitiu que talvez tivesse perdido a cabeça e estivesse agindo de forma irracional. Eu concordei, mas ele disse que deixou as persianas abertas caso decidíssemos dar outra espiada.

Nas semanas seguintes, o Seva voltou lá algumas vezes. Ele disse que, numa das ocasiões, o Feodorov estava lá, só misturando e pesando coisas — nada fora do comum.

Isso até hoje.

Hoje, no início da noite, uma mãe morreu depois de dar à luz um menino. O bebê foi levado pra ala de neonatologia em estado crítico. Ficamos sabendo por alguns colegas que são inspetores médicos.

Passamos a noite revezando pra vigiar as salas. Já está muito frio nessa parte da Rússia, então fazíamos turnos de 30 minutos enquanto o outro esperava no carro estacionado ali perto. Eu nem sei por que fui nessa, mas acho que, por ser velho demais pra começar uma família e viver no meio do nada, eu queria fazer algo aventureiro.

Por volta das 3 da manhã, durante meu turno, a luz acendeu. Fui me aproximar pra investigar. No começo, ele só acendeu as velas, limpou tudo da mesa grande com o pano de bebê e colocou as velas em círculo ao redor dela. Depois, ele se virou pra janela.

Eu me abaixei rápido pra não ser visto. Parecia que eu conseguia ouvir a respiração dele. Ouvi as persianas fechando. Fiquei abaixado por um minuto inteiro, depois ouvi a porta lá dentro fechar.

“Merda, será que ele tá vindo me pegar?” pensei. Fiquei dividido entre correr pro carro ou confrontar ele. Mas, depois de mais dois minutos, ouvi a porta abrir de novo e o choro de um bebê.

O que aconteceu depois é difícil de explicar. Era como se tivesse um vento dentro da sala — uma tempestade presa num vidro. Eu ouvia o bebê chorando e uns cânticos que não eram em inglês nem em russo. Depois de alguns minutos, o choro parou, e o som do vento diminuiu. Aí, ouvi o barulho de um corpo caindo no chão.

Tomei coragem e decidi dar uma olhada. Iluminado pela luz fraca das velas, vi o bebê imóvel na mesa e o Feodorov desmaiado no chão. Ele parecia ter envelhecido pra além dos 80 anos, mas eu não tinha certeza porque a luz estava muito fraca. Pelo que me lembro, o cabelo grisalho dele começou a ficar loiro, e o corpo dele, que estava mole, parecia estar ganhando músculos em questão de segundos.

Foi nesse momento que decidi dar o fora dali. Corri pro carro e gritei pro Seva dirigir, e ele dirigiu. Fomos pra minha casa, e eu contei o que vi, mas ele não parecia acreditar em mim.

Isso mudou na manhã seguinte, quando o bebê da mãe falecida foi dado como morto. Segundo as notícias, o Dr. Feodorov passou a noite toda tentando manter o bebê vivo, mas, por volta das 3h30 da manhã, ele morreu por problemas cardíacos.

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