Dizem que o primeiro erro é sempre o mais barato. Você aprende com ele, segue em frente, a dor vai sumindo. Eu descobri que isso não é verdade. Meu primeiro erro, aquele que abriu a porta e convidou as coisas erradas pra entrar, me custou um pedaço da minha sanidade. É uma dívida que eu ainda pago, toda santa noite.
Tudo começou há cinco anos. Eu herdei a casa antiga do meu avô, uma casa térrea de dois andares no fim de uma rua sem saída, bem onde os limites da cidade se misturavam com uma floresta de pinheiros desleixada. Era grande demais, cheia de memórias demais pra mim, então decidi alugá-la. Coloquei um anúncio no jornalzinho local Pennysaver numa quinta-feira de manhã. Não é brincadeira: em menos de dez minutos, meu telefone tocou.
O cara do outro lado da linha se apresentou como Mark. A voz dele era quente, amigável. Disse que estava rodando por aí procurando um lugar pra família e que tinha acabado de ver o anúncio. Parecia coisa do destino. Ele, a esposa e os três filhos — dois meninos e uma menina — eram novos na cidade, precisavam de um lugar urgente e podiam pagar o primeiro e o último mês de aluguel em dinheiro vivo. Encontrei eles naquela tarde. Eram… agradáveis. Normais. Mark era todo aperto de mão firme e sorrisos fáceis. A esposa, Sarah, era quieta, de olhos baixos, mas deu um sorrisinho tímido. As crianças ficaram alinhadas em silêncio atrás deles, comportadas. Pareciam o sonho de qualquer proprietário de primeira viagem.
Esse sonho azedou rápido.
No primeiro mês, o dinheiro veio direitinho, deixado na caixa de correio num envelope branco impecável, como combinado. No segundo mês, o silêncio começou. Nenhuma ligação retornada. Minhas batidas na porta não eram atendidas. Eu via as cortinas se mexendo, mas ninguém aparecia. Levei uma semana tentando até que finalmente peguei o Mark voltando do trabalho. O cara que encontrei era um estranho. O calor nos olhos dele tinha sumido, substituído por uma impaciência fria e vazia. Ele me entregou um bolo de notas amassadas sem dizer uma palavra, o aperto de mão forte demais.
“Tá tudo bem, Mark?” perguntei.
“Tá ótimo,” ele retrucou, seco, e entrou na casa, batendo a porta antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa. O terceiro mês foi um pesadelo de esquivas. Eu tava desesperado. Decidi que ia aparecer numa noite depois do trabalho e botar um ponto final nisso. Íamos mudar pra depósito bancário. Eu não ia mais jogar esse jogo.
Era por volta das oito da noite, o céu num roxo escuro, machucado, quando parei em frente à casa. O lugar tava escuro, sem carro na entrada. Achei que tinham saído pra alguma coisa. Resolvi esperar. A floresta no fim da rua parecia respirar, uma muralha de escuridão engolindo o restinho de luz. Uma hora depois, faróis cortaram o crepúsculo. Uma SUV preta que eu não conhecia estacionou na entrada.
Fui abrir a porta do meu carro, a mão no puxador, mas travei. A porta do passageiro abriu e uma mulher desceu. Só que não era a Sarah. Não a Sarah que eu conhecia. Ela tava coberta por um robe longo com capuz, tipo aqueles que monges usam em filme. O tecido preto e áspero engolia ela inteira; eu não conseguia ver o rosto, as mãos, nada. Aí a porta do motorista abriu, e o Mark saiu, vestido igual. As três crianças desceram do banco de trás, três sombras pequenas e silenciosas com versões em miniatura da mesma roupa sombria.
Eles andaram em fila única até a porta da frente, uma procissão de silhuetas contra a casa mal iluminada. Ninguém disse uma palavra. O único som era o roçar dos robes no cascalho e o baque frenético do meu próprio coração. Fechei a porta do carro devagar, bem quieto, o clique da tranca soando como um tiro na noite calma. Me abaixei no banco até eles sumirem dentro da casa. A casa continuou escura.
O que raios eu tinha acabado de ver? Alguma coisa religiosa? Um culto? As palavras pareciam exageradas, mas o frio que descia pela minha espinha era real. Dirigi pra casa, os nós dos dedos brancos no volante, decidindo que ia lidar com isso na luz clara e racional do dia.
Na noite seguinte, voltei, preparado pra um confronto. Mas dessa vez, a rua sem saída tava entupida de carros. Tive que estacionar a uns cem metros de distância. Um fluxo de pessoas, todas com aqueles mesmos robes pretos, entrava e saía da casa do meu avô. O ar parecia denso, pesado, como antes de uma tempestade. Um canto baixo e rítmico, mais uma vibração do que um som, parecia vir das próprias paredes. Senti uma onda de repulsa pura, sem filtro. Eles estavam usando a casa da minha família, onde eu passei Natais, pra essa… essa reunião. Tava com raiva demais e, vou admitir, assustado demais pra confrontar eles. Fui embora, jurando que voltaria no dia seguinte e os despejaria na hora.
Quando voltei, o silêncio era total. O portão tava aberto, balançando nas dobradiças. A porta da frente tava entreaberta. Empurrei e chamei: “Mark? Sarah?”
Minha voz ecoou no vazio. A casa tava deserta. Não só vazia de pessoas, mas estéril. O chão tava pelado, as paredes limpas. Não tinha móveis, nenhum sinal de que alguém tinha morado ali. Era como se a reunião barulhenta da noite anterior, a ocupação inteira da família, tivesse sido um sonho febril. Revirei cada cômodo, em cima e embaixo. Nada. Nem um pedaço de papel, nem um brinquedo esquecido.
Fui falar com os vizinhos. O velho Sr. Henderson, que morava duas casas pra baixo, atendeu a porta com um olhar nervoso por cima do meu ombro.
“A família que tava alugando a casa,” comecei. “Você sabe pra onde eles foram?”
Os olhos dele desviaram. “Não vi nada, rapaz. Fico na minha.”
“Mas ontem à noite, os carros, as pessoas…”
“Desculpa. Não posso ajudar.” Ele começou a fechar a porta, mas não antes que eu visse o medo genuíno nos olhos dele. Ele tava mentindo. Todos estavam.
Um ano passou. Minha vida desmoronou de outras formas, mais convencionais. Meu casamento acabou. Precisando de um lugar pra morar e sem grana pra escolher, me mudei pra casa antiga. Minha casa. Na primeira noite, o silêncio parecia opressivo. Deitei no meu antigo quarto, que já foi da minha mãe, e tentei dormir.
Começou por volta das duas e meia da madrugada.
Risos. Altos, estridentes, debochadamente alegres, vindo da sala lá embaixo. Meu sangue gelou. Alguém tinha invadido a casa. Peguei uma lanterna pesada e fui pro corredor, o coração batendo contra as costelas. Quando meu pé tocou o degrau de cima da escada que descia, os risos pararam. E então começaram de novo, bem atrás de mim, no quarto que eu tinha acabado de sair.
Virei rápido. O corredor tava vazio. Os risos ecoavam do quarto vazio, depois pararam de repente. Um medo sufocante me envolveu. Não consegui me obrigar a subir aqueles degraus de novo. Passei o resto da noite no chão empoeirado da sala, encolhido, todos os sentidos em alerta.
Nunca dormi de verdade. Naquele espaço entre estar acordado e sonhar, senti puxões fortes e insistentes no meu cabelo, como se alguém quisesse arrancá-lo pela raiz. Ouvi uma mulher chorando, um som engasgado e gutural. Acordava sobressaltado, girando a lanterna loucamente, iluminando nada além de espaço vazio. O ar ficou gelado, e senti uma presença atrás de mim, tão perto que dava pra sentir o roçar de unhas longas e frias descendo suavemente pela minha coluna.
Na manhã seguinte, com olheiras e tremendo, tava correndo pro carro quando o Sr. Henderson me chamou. Ele parecia mais velho, mais cansado.
“Ouvi dizer que você se mudou,” ele disse, a voz baixa. “Posso passar aí mais tarde? A gente precisa… conversar.”
Concordei, atordoado demais pra ligar.
Naquela noite, sentei na varanda com umas cervejas. Henderson apareceu na hora certa, como se tivesse esperando. Ele ficou mexendo na cerveja por um tempo antes de falar.
“Eu… te devo um pedido de desculpas,” ele disse finalmente, sem me olhar nos olhos. “Eles pagaram a gente. Todos nós da rua. O cara, o Mark. Ele me deu dinheiro pra dividir, disse pra gente ficar de bico calado e olhos fechados.”
“Por quê?” perguntei, a garganta seca.
Ele respirou trêmulo. “Teve uma noite, perto do fim. O… cântico… tava mais alto que o normal. Aí ouvimos um grito. Meu Deus, nunca vou esquecer. Não era um grito de medo. Era um… som final. Como se algo tivesse sido rasgado.” Ele engoliu em seco. “Todos nós saímos pras varandas. O Mark me viu. Veio até mim, calmo como se nada tivesse acontecido, e colocou um maço de notas de cem na minha mão. Disse: ‘Nossos rituais são só representações. A gente só se empolgou um pouco hoje.’ Disse pra garantir que os vizinhos fossem compensados pela… discrição.”
“O que ele quis dizer com ‘se empolgou’?” sussurrei.
Henderson me olhou, os olhos cheios de um terror profundo e cansado. “Acho que eles mataram alguém lá dentro. Ou fizeram algo tão ruim que a morte teria sido uma benção. Não perguntamos. Não queríamos saber.”
Depois que ele foi embora, a confissão dele pesou no meu estômago como uma pedra. Naquela noite, os sons voltaram com tudo. Os soluços estavam mais agudos, os risos mais histéricos. E então, quando finalmente caí num sono exausto pouco antes do amanhecer, abri os olhos. A silhueta de uma mulher tava no fim do corredor, no topo da escada. Era alta, esguia, a cabeça inclinada num ângulo esquisito. Ela deu um passo, descendo, e eu pulei da cama pra seguir, mas o corredor tava vazio.
O horror final veio na manhã seguinte. Meu carro não pegava. Lembrei de um pequeno galpão de ferramentas nos fundos, que eu nunca tinha checado. Talvez tivesse cabos de chupeta lá. O cadeado tava enferrujado, mas quebrou fácil com um puxão forte.
O cheiro me atingiu primeiro. Era um odor doce, enjoativo, metálico, de sangue velho e terra úmida e rica. Engasguei, puxando a camisa sobre o nariz. O galpão tava escuro, cheio de teias de aranha e carcaças de insetos mortos. Num canto, tinha uma caixa plástica grande, daquelas que se usa pra guardar enfeites de Natal.
O pavor era um peso físico no meu peito. Levantei a tampa.
Dentro, uma massa de cabelo escuro e emaranhado. Fios grossos, longos, embolados com uma substância preta e pegajosa que eu sabia que era sangue seco. Parecia que tinha sido arrancado de um couro cabeludo. Debaixo do cabelo, havia roupas — uma blusa feminina, jeans — tudo manchado com o mesmo resíduo escuro e descascado. E, dobrados com cuidado no fundo, três robes pretos infantis, também marcados com sangue.
Cambaleei pra fora do galpão, vomitando na grama amarelada. Liguei pra polícia, a voz tremendo tanto que mal conseguia falar. Disse que tinha encontrado algo perturbador, possivelmente prova de um crime.
Eles nunca vieram. Liguei três vezes na semana seguinte. Anotaram minhas informações, mas nenhuma viatura apareceu na minha rua.
Acabei arrastando a caixa pra dentro do mato eu mesmo, jogando ela num barranco. Não aguentava ter aquilo na propriedade.
Mas me livrar das provas físicas não me livrou deles. Os risos ainda vêm algumas noites. Os soluços. A sensação de dedos frios na minha coluna. A silhueta da mulher no topo da escada.
Os vizinhos dizem que eu deveria cavar o quintal. Sussurram que talvez eu encontre um corpo, que dar um descanso a ele pode calar os sons. Mas o chão tá intacto. Acho que a verdade é que alguns horrores não precisam de um corpo pra ficar enterrados. Eles tão vivos, apodrecendo no próprio ar, nas memórias das paredes. Tão no cabelo que foi arrancado, no sangue que foi derramado, nos robes que foram usados.
Eles ainda tão aqui. E acho que uma parte de mim vai estar também, muito depois que eu me for.
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