Eu lido com assombrações e infestações do tipo sobrenatural. Não exatamente fantasmas. Pra ser honesto, nem sei se acredito neles, mas estou aberto a mudar de ideia se me provarem o contrário.
Não, meu trabalho é com coisas mais diretas. Do tipo que ganha dentes se muita gente no mesmo lugar acredita nelas com força suficiente.
A crença pode fazer as coisas mais estranhas saírem rastejando da escuridão. Mais antigamente, claro, quando cidades inteiras rezavam pro santo errado ou deixavam oferendas na porta achando que eram pro Tomte da região. Homens ingênuos caindo na lábia da Huldra, perdendo a alma no processo.
Coisas assim não acontecem mais com tanta frequência. Nem quando comecei nesse ramo. As ocorrências mudaram com uma humanidade mais complicada, menos definida. Mais misturada, moldada, diversa, suponho. Melhor, porque há menos avistamentos no geral, mas pior porque é muito difícil banir algo que você não conhece bem.
Hoje em dia, a maioria das coisas com que lido pessoalmente não tem nome ou categoria bem definida. São um borrão de histórias meio esquecidas, costuradas com mitos urbanos e crenças pessoais. Cada um de nós tem seus próprios, bem, fantasmas. Onde as costuras da crença se encontram é onde o desastre começa a se formar.
Meu último trabalho parecia simples. Não totalmente desconhecido, o que foi um alívio. Um daqueles casos de “casa vazia, barulhos estranhos, sombras esquisitas”, com pontos extras por ser uma fazenda a poucos minutos de carro da cidade onde moro. Típica do tipo, com uma estrada de cascalho longa e irregular cortando os campos, um laguinho escondido atrás, cheio de juncos. Já estive em uma dúzia de lugares iguais.
A família que vivia lá antes deixou tudo pra trás. Móveis, brinquedos velhos, roupas ainda dobradas nas gavetas, uma panelinha colorida ainda no fogão quebrado. Não sei por quanto tempo a casa ficou vazia, mas era óbvio que os adolescentes da cidade tinham descoberto o lugar, pelos latões de cerveja espalhados e as janelas recém-quebradas. Na lateral da porta, alguém pintou um rosto tosco com três olhos e a boca costurada, em vermelho e preto gritantes. Abaixo, provavelmente com caneta preta, nomes em caligrafias diferentes sob um título: “Desafie a Senhora da Morte”. Merda.
Isso provavelmente foi o estopim, e como a maioria de nós sabe, é tudo o que basta pra começar algo sinistro. Um nome inventado, um desafio qualquer, histórias contadas no escuro. Sozinhas, essas coisas não seriam suficientes pra causar problemas – mas, de novo, a crença é o veneno da criação. Se a história se mantém consistente o suficiente, e muita gente reforça com crença e medo, ela pode se ancorar. Devem ter contado a história de cem jeitos diferentes até que pegou. Como ela vivia no lago, como dava pra ouvi-la pelos ralos, como ela te marcava se você dissesse o nome dela à meia-noite. Esse lugar pode ter sido alimentado por semanas, ou meses, antes de eu chegar. A âncora não seria muito forte, mas poderia estar lá. Isso já era o bastante.
A porta da frente estava emperrada quando tentei abrir, a moldura de madeira deformada pela umidade que entrou pelas janelas quebradas. Quando cedeu, fez um som ao mesmo tempo úmido e seco, como rasgar casca de árvore. Alguns caracóis estavam grudados na parte interna da moldura, pálidos e brilhando, suas conchas coloridas ficando cinza e marrons sob a luz. Passei por cima deles.
O ar lá dentro era frio e pegajoso, com um leve cheiro de musgo, terra e mofo. Cada parede estava coberta de gotículas de condensação. Entre embalagens de comida e pedaços de madeira quebrada: conchas espalhadas. Centenas delas cobriam o chão torto, estalando de leve sob meus pés enquanto eu avançava. Disse a mim mesmo que eles tinham entrado pelas janelas, vindo do lago. Na hora, não importava que a linha d’água mais próxima ficava a quase cinquenta metros morro abaixo.
Fiz a varredura de sempre. Cômodo por cômodo, devagar, cuidadoso, meticuloso. Tentei sentir.
Nada parecia fora do lugar, exceto o cheiro. E, claro, casas abandonadas no meio do nada não cheiram exatamente a outra coisa além de mofo e umidade, mas esse era muito forte. Cheiros de terra costumam ser… sutis? Delicados, talvez. Quase imperceptíveis. Esse era avassalador, mas não exatamente desagradável. Não cheirava a podridão ou cinzas, como seria de esperar se a âncora fosse forte. Só terra, umidade.
A sala de estar era o único lugar não coberto de lixo e grafite. Até que estava intocada, pode-se dizer. Alguém enrolou o tapete e o colocou direitinho num canto. Afastaram o sofá listrado, deixaram o espaço vazio. Não havia conchas no chão: em vez disso, uma tigela parecida com a panela da cozinha, com o mesmo padrão retrô nas laterais. Estava cheia de água, turva e espessa. Um punhado de conchas de caracol de cores diferentes flutuava na superfície, girando preguiçosamente mesmo sem corrente de ar.
Você desenvolve um instinto forte pra âncoras, mas eu ainda não sentia nada. Então, fiz o mínimo: murmurei o encantamento de contenção, joguei sal nos batentes e pendurei uma ferradura de ferro acima da porta da frente. Apaguei os nomes da parede, mas deixei a pintura e o título. Muito trabalho. Abri a porta pra sair, e foi quando ouvi: um arrastar suave vindo de um cômodo ao lado. Lento, constante, como se algo estivesse se arrastando na minha direção. Parei no meio do movimento, tenso. Meu coração de repente ficou audível nos meus ouvidos, mas era o único som que eu escutava. Tum-tum-tum, nada mais. Fiquei assim por pelo menos trinta segundos, depois saí.
Terminei o trabalho, mandei uma mensagem pro meu contato com um relatório de âncora fraca e recomendação de verificar de novo em algumas semanas, e entrei no carro. Cheguei em casa antes de escurecer, jantei, vi um pouco de TV. Coisas normais que se faz à noite. Ainda não sentia nada.
Aí, quando estava me preparando pra dormir, ouvi de novo. O arrastar, vindo do banheiro. Congelei, e por um momento juro que senti: a âncora. Quente, quase ardente, com um cheiro de musgo úmido e podridão. Os pelos dos meus braços se arrepiaram. E do banheiro, algo arrastou de novo.
Sorte que congelei bem no corredor. Peguei o prego de ferro que deixo na mesinha, ao lado das chaves, e fui devagar pro banheiro.
Não sei exatamente o que estava pensando, mas simplesmente… abri a porta com tudo. A luz estava apagada. Fui pro interruptor e parei na hora.
A pia estava meio cheia de água, opaca e levemente verde. Dezenas de caracóis grudados na porcelana, com as cabeças pra fora, circulando sem parar. Juro que dava pra ver os rastros na borda. A água tinha uma ondulação suave, mesmo sem nada tocá-la.
Dei um passo pra trás. Minha respiração parecia quente. O cheiro me atingiu, então. Musgo úmido, umidade, mofo. Algo doce, apodrecendo por baixo.
Uma ondulação maior na água, depois um som suave quando o ralo se abriu e a água começou a descer rápido, como se algo estivesse sugando pelos canos. Deixei o prego cair.
Quando acendi a luz de novo, a pia estava vazia de água. Os caracóis continuavam lá, no entanto. Movendo seus corpos viscosos pela borda, em círculos, sem parar.
Fiquei ali um tempo danado, olhando pra eles. Tentando sentir. A âncora não estava tão forte então, mas parecia estranha, de algum jeito. Não sei explicar. Como se faltasse um ponto de apoio.
Então, cá estou, quase certo de que meti os pés pelas mãos de alguma forma. Não faço ideia de como, no entanto. É por isso que estou escrevendo aqui. Não é como se a gente fizesse happy hour ou tivesse encontros anuais, mas deve ter mais de nós por aí, não é?
Tudo ainda cheira a musgo aqui, e tem outro caracol dos infernos no meu tapete de boas-vindas. Moro no quinto andar, porra. Espero que alguém que tenha alguma ideia do que tá acontecendo leia isso, mesmo que não seja um Banidor. Já procurei no manual e na internet e não achei nada, e não sei por onde começar. Se você sabe alguma coisa sobre âncoras esquisitas, por favor, me ajuda.
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