As piores mortes, na minha opinião, são as acidentais.
Eu li na semana passada sobre uma mãe que se virou em cima do bebê recém-nascido e o sufocou. Todo ano, crianças pequenas morrem esquecidas em carros quentes. E aí você ouve histórias de moleques brincando, tipo um garoto que se escondeu em um freezer desligado e se asfixiou durante o esconde-esconde.
Dá pra imaginar? Dá pra imaginar ser a pessoa responsável por qualquer uma dessas situações?
Pra mim, isso é muito mais aterrorizante do que qualquer coisa paranormal. Eu prefiro mil vezes ser assombrada por um fantasma do que carregar a culpa de ter machucado alguém sem querer!
Meu marido, Wade, é o oposto total. Ele não liga pra acidentes, mas fica apavorado com filmes de terror sobre demônios ou fantasmas vingativos. Mas, como eu disse pra ele, nada disso é real, então por que ter medo? Ele rebate que acidentes não têm maldade, então não são tão assustadores quanto fantasmas assassinos que talvez sejam reais.
Acho que ele tem razão. Sobre a falta de maldade, não sobre os fantasmas que "talvez" sejam reais — eu sei que não são, porque se fossem, minha melhor amiga com certeza estaria me assombrando.
Acho que, de certa forma, ela está.
É que, toda vez que eu leio sobre uma pegadinha que deu errado... eu paro de respirar por um instante.
A culpa me sufoca. Depois de todos esses anos, eu ainda não sei se foi culpa minha. Nunca me processaram e meus amigos insistem que eu preciso parar de me culpar. Mas como? Como eu sigo em frente, sem saber se foi por causa de mim?
Rosa entrou na mala sozinha. Lakisha e eu ajudamos. A gente tava tudo bêbado, rindo pra caramba. Ela ia surpreender Bolin. Ela tinha uma queda enorme por ele.
Deixa eu voltar um pouco. Deixa eu tentar explicar.
A gente tava numa festa. Nosso grupo de amigos se conhecia há anos, e a gente alugou essa cabana. Eu, meu marido Wade — que na época era só o cara por quem eu babava —, os amigos dele Bolin, Tucker e JB. E as meninas que eram minhas melhores amigas — Lakisha, Rosa e Kay. Teve também uns outros amigos que passaram lá, que a gente conheceu mais cedo no dia enquanto andava de trilha — não lembro mais os nomes deles. O que eu lembro é que todo mundo bebeu pra caralho.
E a Rosa... ela tava na fase de paquera total.
Rosa era minha melhor amiga. Mas ela não era perfeita. Era tipo uma borboleta que pousa em toda flor. Uma verdadeira quebra-corações. Linda e intensa. Eu ficava um pouquinho com inveja da atenção que ela recebia, e ao mesmo tempo admirava pra cacete. Quem quer que estivesse com ela caía de pau, como se ela fosse o amor da vida da pessoa. Mas ela nunca se comprometia de verdade. Tava saindo de vez em quando com o JB, depois seduziu o Wade (o que foi uma sacanagem porque ela sabia que eu gostava dele). Até flertou com bi curiosidade com a Kay.
Agora, os olhos dela tavam no Bolin.
Não lembro de quem foi a ideia dela se esconder na mala — minha ou dela.
Toda a bagagem tava no porão porque era lá que os caras tinham largado quando chegamos na cabana. Lakisha falou algo tipo: "A mala do Bolin é grande o suficiente pra esconder um corpo!" E aí a Rosa — ou eu — teve a brilhante ideia de ela se esconder dentro. E a Rosa resolveu apimentar a pegadinha vestindo lingerie. Quando o Bolin pegasse a mala pro quarto dele e abrisse, ia encontrar uma surpresa sexy.
A gente foi burro, burro, burro. Nenhuma de nós tinha juízo. Ainda mais porque tava todo mundo meio alto.
Assim que a Rosa se espremeu lá dentro, reclamando que o cabelo dela tava preso no zíper, Lakisha e eu fomos encher o saco dos caras pra levarem as malas pros quartos. Lembro que o Bolin entregou a minha — eu tava ficando do lado de fora, numa barraca com a Kay. A cabana não tinha quarto pra todo mundo, e a gente queria dormir debaixo das estrelas. A Kay não fazia ideia da pegadinha e ficou confusa quando eu ficava cutucando o Bolin pra ele entrar e checar a mala dele (piscadela, piscadela). Depois que ele saiu, eu contei pra ela sobre a Rosa. E como a Kay tava sóbria de verdade, ela me disse pra ir dar uma olhada e garantir que a Rosa não tinha ficado presa lá.
Então eu fui checar pra ver se a mala ainda tava no pé da escada.
Pelo menos, acho que fui.
Mas eu tava bêbada.
Enquanto todo mundo tava sentado do lado de fora vendo fogos de artifício mais tarde, eu notei que o Bolin tava sumido e perguntei pro Wade onde ele tinha ido. O Bolin tinha subido pro quarto dele mais cedo. Como ele não voltou, Lakisha e eu achamos que a Rosa tava lá com ele e que a jogada da lingerie tinha colado. Na real, a gente ficou cochichando sobre isso a noite toda (baixinho, pra não deixar os caras com ciúmes).
De manhã, quando o Bolin desceu, Lakisha e eu perguntamos sobre a noite anterior, cheias de sorrisinho maroto. Ele parecia um completo perdido. Aí a Lakisha perguntou onde tava a Rosa e ele continuou perdido. Mas e a mala dele? Ele não tinha aberto? Ele disse que alguém tinha enfiado todas as roupas dele no armário, empilhadas. Ele não sabia por quê, achou que era pegadinha ou algo assim e nem tinha visto a mala.
"Então você nunca abriu?", perguntou a Lakisha.
O pavor brotou na minha barriga. Meu Deus, eu pensei. Meu Deus, meu Deus. A Lakisha tava contando pra ele como a gente tinha tirado as roupas dele e a Rosa tinha se escondido lá dentro pra surpreender ele de lingerie, e o Bolin ficou vermelho e disse que era gay. Gay? Mas a saída dele do armário mal registrou na minha cabeça porque cadê a Rosa? Ninguém sabia. A gente correu pra acordar todo mundo, torcendo pra alguém ter visto ela na noite anterior.
Meu Deus, meu Deus, meu Deus, eu chequei. Não chequei? Eu juro que chequei.
Orações passavam pela minha cabeça. Mas eu tava bêbada. Não tinha certeza se tinha checado mesmo. Desci pro porão...
... lá tava a mala, ainda enfiada no pé da escada.
Estava exatamente onde a gente tinha deixado quando fechamos o zíper com a Rosa dentro na noite anterior.
Ninguém queria abrir a mala. Os caras discutiram sobre quem tinha deixado ela lá. O JB disse que tinha levantado, mas notou o quão pesada tava e pediu pra outra pessoa levar. Cada um achava que o outro ia pegar. O Bolin nem pensou em checar porque achou as roupas empilhadas no armário.
Eu me envergonho de dizer, mas eu saí pra fora quando a Lakisha foi puxar o zíper. O Wade veio e se juntou a mim. Ele me disse que corpos mortos, sangue, coisas assim o aterrorizavam. Enquanto os outros checavam o conteúdo da mala, eu e o Wade ficamos sentados lá fora. Quando a gente ouviu os suspiros e os sussurros de "Meu Deus", os dedos dele apertaram os meus com força, e eu enterrei a cabeça nas mãos e chorei.
Ela tinha se asfixiado, claro. Mas demorou um tempão. A polícia ficou se perguntando por que nenhuma de nós ouviu ela ofegando pedindo ajuda, mas a Kay, envergonhada, contou sobre os fogos de artifício.
Uma pegadinha que deu errado, concluíram as autoridades.
Meus amigos disseram na época, e ainda dizem agora, que no fundo a Rosa era a mais responsável pela própria desgraça. Que ela tinha tomado as próprias decisões. Que todos nós tínhamos um pouquinho de culpa, mas ninguém era totalmente responsável por um acidente trágico.
Mas...
... Foi a minha mão que fechou o zíper.
Eu fico deitada na cama, pensando nela ofegando por ar... Por que ela não gritou? Por que a gente não ouviu nenhum grito abafado?
Eu imagino ela, espremida na escuridão enquanto os pedidos de socorro dela ficam sem resposta, e eu não consigo respirar.
Mas o motivo real de eu estar escrevendo isso é porque essa manhã eu vi uma notícia sobre uma mulher de calcinha encontrada estrangulada na praia. Meu marido trocou de canal na reportagem, e quando eu perguntei por quê, ele pareceu surpreso e disse que achou que podia me abalar.
"Por quê?", eu perguntei. Não era uma pegadinha.
"Achei que podia te lembrar da Rosa. Sabe, a lingerie."
Suponho que essa parte era parecida. Pra ser honesta, essa parte da tragédia nunca tinha me marcado tanto. Mas agora... agora, eu fico pensando em como a gente parou de falar dela depois. Como a morte dela foi só uma notinha rápida na notícia. Nenhum detalhe foi divulgado. No nosso grupo de amigos, a morte da Rosa virou um tabu. Quase como se ela nunca tivesse estado com a gente.
A gente tacitamente concordou em esquecer ela.
Mas quanto mais eu penso nessa reportagem, mais eu sinto aquela sensação daquele dia. Aquela sensação de topo da escada. Tipo olhar pra baixo e ver algo que você não quer ver. Aquele sentimento de Meu Deus, Meu Deus, Meu Deus de pavor iminente.
E eu tô prestes a passar mal.
Porque o Wade namorou ela também. E amou ela. E eu tô cada vez mais certa de que olhei escada abaixo antes dos fogos e não tinha mala lá. E agora eu tô me perguntando... Se o Wade nunca viu o que tinha na mala, nunca pegou ela, abriu ou mexeu nela, como ele sabia que ela tava de lingerie quando morreu?
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