Bem, era isso que eu sempre acreditei. Eu sempre fui a prática da família – “uma cabeça no lugar”, como meu avô dizia – e me orgulhava de não me deixar levar por fantasias e teorias da conspiração como minha mãe, minha avó... e minha tia Carol, e todas as outras mulheres da família. A loucura sempre vem atrás das mulheres, segundo meu avô, e eu estava determinada a não acabar assim. Sempre há uma explicação lógica. Era nisso que eu acreditava – ou melhor, acreditava.
Para ser honesta, hesitei muito antes de decidir revisitar essas memórias, muito menos escrevê-las e publicá-las em algum lugar para milhares, talvez milhões, de estranhos lerem. Só mais uma maluca de chapéu de papel-alumínio pulando nas sombras e lendo nas entrelinhas que nem sequer foram escritas. Mas passei os últimos dias olhando posts nesse site. É aqui que as pessoas vêm quando veem coisas – coisas que não podem ser explicadas, ou cujas explicações vão contra o que a sociedade considera “aceitável”.
Eu vi coisas. E agora estou pronta para falar sobre elas.
Tudo começou quando meu marido, Eliott, e eu nos mudamos de volta para a fazenda da minha família para cuidar do meu pai depois que ele sofreu um derrame que o deixou incapaz de se cuidar por alguns meses. Minha mãe tinha sido internada num hospital psiquiátrico dois anos antes – as teorias da conspiração sobre alienígenas finalmente a fizeram surtar – então, meu pai estava sozinho em cinquenta acres de terra no meio do mais puro, velho e bom interiorzão do meio-oeste.
Eu chamo isso de fazenda, mas se você está imaginando celeiros gigantescos, tipo industrial, cheios de vacas, e equipamentos brilhantes cuidando de campos infinitos de plantações e feno... para com isso. Noventa por cento da terra era mata, com apenas um pedaço aberto para uma casa de fazenda de dois andares, um pequeno celeiro para algumas galinhas, um par de cabras e um cavalo velho e curvado, e o milharal que ocupava mais espaço que a casa e o celeiro juntos. Milho era a única coisa que meu pai vendia – isca para cervos para os caçadores – e, quando minha mãe ainda estava por aqui, eles transformavam o campo num labirinto para as crianças do bairro.
No começo, tudo correu bem. Eu tinha um trabalho que me permitia trabalhar remotamente, e Eliott conseguiu um emprego de meio período na livraria local. Meu pai estava se recuperando bem, e eu tinha acabado de ver duas linhas rosa no teste de gravidez depois de um ano tentando.
Estava sentada na varanda da frente, me sentindo um pouco enjoada e um pouco tonta, pensando na melhor forma de contar para o Eliott, quando não percebi o quão tarde tinha ficado. A noite cai rápido e pesado no interior, um crepúsculo curto é o único aviso antes de você ser engolido por uma escuridão que você não consegue imaginar se nunca viveu isso.
Nada de dramático aconteceu antes. A mata não ficou subitamente silenciosa, eu não senti um arrepio inexplicável na espinha. Só vi um brilho pequeno entre os talos de milho enquanto eles balançavam na brisa noturna. Pequeno, rente ao chão – provavelmente uma raposa – querendo roubar uma galinha. Algo comum num lugar como esse, tanto que mal registrei.
O que eu registrei, porém, foi o farfalhar no milharal à esquerda dos olhos brilhantes. Provavelmente um cervo, outra visão comum no milharal.
Vi um minuto depois, seu pelo castanho iluminado pelo fraco brilho da luz da varanda, mas algo não estava certo no jeito que ele se movia. Estava agachado, quase rastejando, as patas dobradas de um jeito que cervos simplesmente não fazem. Imagine um gato espreitando um rato, e você terá uma ideia decente do que esse cervo estava fazendo. Parece bobo e cartunesco de imaginar, mas era assustador ver isso acontecendo bem na minha frente. Não me mexi da varanda, hipnotizada por esse cervo esquisito rastejando pelo milharal até sair do círculo de luz da varanda e eu não conseguir mais vê-lo.
Estava prestes a me levantar para contar ao Eliott e ao meu pai quando ouvi o grito. Se você nunca ouviu uma raposa gritar, a melhor forma de descrever é o grito de uma mulher morrendo. As pessoas já relataram ouvir uma mulher gritando na mata quando, na verdade, era uma raposa. Não importa quantas vezes você ouça, vai te assustar, e essa não foi exceção. O grito de um animal sendo torturado.
Sangue. Agonia. Rasgando. Puxando. Devorando.
Pulei de pé, e algo no milharal se ergueu comigo, a cabeça aparecendo acima dos talos. Mais alto do que qualquer animal de quatro patas deveria ser. O cervo. O brilho da luz da varanda dificultava enxergar, mas eu sei o que vi. Vi seus olhos enormes, brilhando laranja na luz, olhando diretamente para mim, e soube que eu tinha sido Vista. Vista do jeito que uma presa é vista por um predador caçando. Imobilizada como uma mariposa em exposição.
Algo pendia da sua boca. Rasgado, despedaçado, pingando sangue preto e grosso no milharal.
Não me lembro de gritar, mas quando Eliott apareceu correndo na varanda perguntando o que estava errado, minha garganta estava em carne viva.
O cervo tinha sumido, e quando arrastei Eliott para o campo para procurar no local, não havia nada. Nem sangue no chão, nem tufos de pelo laranja de raposa, nem mesmo pegadas.
“Tem certeza que você não cochilou na varanda e sonhou com tudo isso?” Eliott sugeriu gentilmente enquanto eu contava tudo na mesa de jantar.
“Eu...” Queria dizer que tinha certeza – que sabia o que tinha visto – mas será que tinha? Estava cansada aquele último mês cuidando do meu pai. O que era mais provável: que eu tinha visto um cervo caçar e matar uma raposa, ou que tinha caído no sono e tido um pesadelo? Além disso, cervos comem carne às vezes. Tem vídeos por aí de cervos comendo cobras ou filhotes de pássaros que encontram no chão. Talvez eu estivesse meio dormindo e vi um cervo doente comendo algo já morto?
“Você parece sua mãe,” meu pai resmungou do outro lado da mesa. Isso calou qualquer protesto que eu pudesse ter. O derrame pode ter tirado o uso de um lado do corpo dele, mas a mente ainda estava intacta, e isso era o jeito do meu pai de dizer: “você parece louca”. Igual à sua mãe, à sua avó, à sua tia Carol, e a todas as outras mulheres desse lado da família.
A loucura sempre vem atrás das mulheres.
No fim, murmurei que provavelmente tinha caído no sono, e a atmosfera na mesa ficou leve o suficiente para a conversa mudar para tópicos mais alegres. Pelo menos para o meu pai. Fiquei mexendo na comida distraidamente enquanto Eliott apertava minha mão por baixo da mesa e lançava olhares preocupados.
Mais dois meses se passaram sem incidentes. Não tive mais sonhos ou pesadelos sobre cervos carnívoros espreitando no milharal. Pelo menos, nenhum que eu lembrasse. Meu pai melhorou o suficiente para que provavelmente pudéssemos voltar para casa no próximo mês. Voltar para nossas vidas. Começar a planejar para um bebê, montar um quartinho, comprar roupas e fraldas.
As coisas estavam indo bem. O que, pela minha experiência, geralmente significa que estão prestes a piorar de novo.
Estava sentada na varanda outra vez. Era outubro agora, e o ar da noite estava fresco e cortante. Os talos de milho tinham ficado secos e marrons, farfalhando alto na brisa.
A essa altura, eu quase tinha esquecido do cervo esquisito no milharal. Só um sonho estranho de uma mente sobrecarregada. Mas isso não impediu meu coração de pular na garganta quando vi o pelo castanho de outro cervo no halo amarelo e oleoso da luz da varanda.
Uma corça grande, caminhando com calma determinação em direção ao milharal, segurando algo firme na boca.
Algo que pingava.
Então, outro – um cervo jovem com seus primeiros chifres pontiagudos – seguiu a poucos passos da corça. Ele também segurava algo na boca. Algo que se contorcia. Um após o outro, uma dúzia ou mais de cervos marcharam solenemente para os talos secos de milho, cada um carregando algo morto – ou quase morto – com eles.
Observei toda a procissão do meu lugar na varanda; minha boca seca e as palmas das mãos suadas. Eu não estava sonhando. Sei, com tudo de são e lúcido em mim, que estava bem acordada e completamente sóbria.
Um último cervo, um atrasado, ainda com manchas de filhote, correu para alcançar os outros, lutando para segurar o que carregava na boca.
Algo que se contorcia e se debatia. Algo que pingava sangue preto-avermelhado no chão. Algo que chorava com uma voz humana demais.
Levantei-me então. Minhas pernas me levaram atrás dos cervos antes que meu cérebro pudesse processar o que eu estava fazendo. Os talos de milho batiam contra meus braços enquanto eu corria pelo campo. Não conseguia mais ver os cervos, mas ouvia o choro. Fraco, agudo, e puxando um instinto que vinha crescendo no meu corpo nos últimos dois meses e meio.
Mal consegui parar quando o milharal deu lugar a uma clareira, perfeitamente redonda, os talos pisoteados por incontáveis cascos por sabe-se lá quanto tempo.
Os cervos estavam todos reunidos, parados em silêncio dentro do círculo, suas presas deitadas aos seus pés como oferendas para a besta que estava no centro.
Fui a um museu quando criança e vi os restos de um cervo pré-histórico – não lembro o nome – e me lembro de ficar impressionada com o tamanho dele. Como o pescoço dele devia ser forte para sustentar chifres tão grandes, cada um maior que um homem.
Esse era maior.
Era branco. Mais alto que qualquer alce, pescoço grosso como um tronco de árvore. Chifres dourados tão altos e largos que cercavam a lua que nascia acima da sua cabeça, criando a ilusão (acho) de que ele a usava. A única joia digna de uma coroa tão majestosa. De uma criatura tão majestosa.
Observei enquanto ele inspecionava as oferendas diante dele com um desinteresse frio até chegar ao bebê – ainda chorando, ainda se contorcendo no próprio sangue no chão duro e pontiagudo de talos de milho quebrados.
As orelhas da besta se moveram para frente por um breve momento de interesse, e ele abaixou a cabeça enorme para cheirar a coisinha patética.
Deve não ter gostado do que cheirou, porque ergueu o casco gigante acima do montinho que se debatia e o baixou.
Com força.
Pensei que faria um estalo; como pisar num ovo, mas não fez. Só um baque surdo, e o choro parou.
Fiz um som então – um suspiro ou um grito, não lembro qual – e duas dúzias de cabeças viraram na minha direção. Duas dúzias de pares de olhos pretos e vazios, brilhando ao luar e me congelando no lugar. Os cervos não se mexeram, nem mesmo um movimento de orelha, apenas encararam.
O monstro branco bufou alto pelo nariz e puxou os lábios para trás num rosnado que desafiava o corpo de cervo que vestia. Seus dentes eram dentes de lobo, pingando cordas grossas de saliva. Ele deu um passo à frente, os cervos reunidos se afastando silenciosamente para abrir espaço, e se aproximou de onde eu estava na borda da clareira.
Eu não conseguia me mexer, não conseguia respirar, mal conseguia pensar. Sentia o chão tremendo a cada passo que a besta dava, mais e mais perto, até bloquear o mundo com uma parede de branco. Doía olhar diretamente para seu rosto, mas algo me dizia que eu não ousasse desviar o olhar. Ele queria que eu visse, queria que eu sentisse toda a força da sua presença.
Ele abaixou a cabeça e me cheirou como tinha feito com o bebê.
E algo mudou.
Suas orelhas se ergueram para frente. Sua boca relaxou. Os cervos na clareira bufaram e se mexeram em antecipação.
A besta branca abriu a boca, e eu tive uma visão da sua língua preta e da sua garganta cavernosa. Ele ia me comer. Me engolir inteira. Eu era o sacrifício que ele queria. A oferenda no altar.
Em vez disso, ele falou. Lento, rouco, forçando palavras por uma garganta não feita para elas.
“Filha... das es...trelas...”
Não tive tempo de pensar no que essas palavras significavam. A besta tocou o focinho no meu ventre, e de repente eu não era mais eu mesma.
Eu era algo antigo, algo com medo, algo fugindo. Estava voando pelas estrelas mais rápido do que uma mente humana poderia compreender.
Estava queimando na atmosfera.
Estava atravessando árvores e rolando na grama.
Estava sendo esmagada pelo peso de uma gravidade que nunca senti antes.
Estava vendo uma criatura. Com galhos na cabeça que alcançavam o céu.
Estava me transformando nela.
Estava aprendendo seu corpo, sangue, ossos, músculos, células.
Estava vendo uma criatura diferente. Pequena, macia, olhando com terror e fascínio enquanto eu me fazia.
Estava fazendo uma conexão.
Estava fazendo uma conexão.
Estava fazendo uma con̷ex̷ã̶o̶.
Acordei num hospital psiquiátrico. A enfermeira gritou quando perguntei onde estava. Minha barriga tinha se transformado numa barriga de grávida de verdade.
Eu estava lá há três meses; silenciosa, sem reação, catatônica.
Meu marido me encontrou sentada no meio do milharal, com lágrimas de sangue seco no rosto, encarando a lua.
Exatamente como meu pai encontrou minha mãe dois anos antes. E como meu avô encontrou minha avó.
Os médicos me fizeram todo tipo de pergunta sobre o que tinha acontecido para causar o que chamaram de “surto psicótico”. Enfermeiras, sem tato, perguntaram se meu marido me batia, se o estresse de cuidar do meu pai poderia ter causado um colapso nervoso.
Não contei a verdade, claro. Histórias sobre cervos alienígenas monstruosos não inspirariam muita confiança no meu estado mental. Contei o que queriam ouvir, fiz todos os passos certos para uma recuperação normal e fui liberada do hospital como uma mulher mentalmente sã. Tudo o que eu queria era esquecer.
Mas não consigo.
Chorei quando minha bebê nasceu. Não pelos motivos normais, embora eu fingisse que era por isso, pelo bem do Eliott.
Chorei porque era uma menina. E continuei chorando por ela pelos últimos três anos. Porque eu posso ver.
Eu posso ver, assim como tenho certeza que minha mãe viu em mim. Nos seus grandes olhos azuis que encaram a lua com uma seriedade que nenhuma criança pequena deveria ter.
A loucura sempre vem atrás das mulheres na minha família.
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