Quando eu era criança, tinha terrores noturnos. Não era toda hora, mas o suficiente pra deixar uma marca permanente na minha cabeça que ainda tava se formando. Eu não lembro direito de quase nada do que acontecia neles. Tipo um sonho tão foda que a memória simplesmente rejeita lembrar, te deixando só com um medo profundo, remexendo no estômago, como se aquilo pudesse ter te seguido pro mundo acordado.
O que eu lembro é pouco. Eu tava no escuro, um escuro infinito, vazio. Não era breu total, mais parecido com o inverso daqueles quartos brancos vazios que usam pra gravar clipe. Parecia que não acabava nunca, em qualquer direção. Eu lembro vagamente de borrões se arrastando pelo canto do olho, formas que pareciam se desfazer no segundo que eu tentava focar nelas, mas tudo tá bem nebuloso agora.
A coisa que eu realmente lembro, e que ficou grudada em mim e fixou qualquer memória que eu tenha, marcada na minha lembrança como uma cicatriz, era a sensação do estômago despencando, e aquela impressão de ser disparado pra frente. O mundo – se é que dá pra chamar assim – se dissolvendo ao meu redor enquanto eu sentia ser arrastado pra frente, depois pra cima numa velocidade impossível. Tudo na minha visão se esticando em borrões de cinza e preto.
Eu acordava de supetão, lágrimas escorrendo pelo rosto, aquela propulsão violenta ainda correndo pelo corpo, me seguindo pra consciência. E por alguns segundos horríveis, eu sentia o quarto ao meu redor se distorcer. Objetos esticando ou encolhendo, paredes respirando pra dentro e pra fora, como se eu estivesse vendo tudo com um binóculo que não parava de refocar. Chegava ao ponto de eu dar zoom e ver o branco dos olhos dos meus pais enquanto eles vinham correndo pra me consolar de má vontade.
Eu era uma criança nervosa, mesmo sem os terrores noturnos, e a vida familiar nunca foi muito estável. A gente mudava muito por causa do trabalho do meu pai no exército, e justo quando a gente começava a se acertar ou eu fazia um amigo raro, o serviço dele arrancava a gente e jogava em outro contrato militar. Mal dava tempo de aprender o mapa de uma escola antes de ser jogado em outra. Falando nisso, parecia que ele tava ausente praticamente toda a minha infância. Trabalhava até tarde, e nas raras vezes que saíamos pra um jantar em família ou passeio, ele era bombardeado com ligações “importantes” e tinha que correr pra algum lugar fazer sei lá o quê. Eu nunca soube o que meu pai fazia de verdade, e mesmo quando cresci e perguntei, só me diziam que ele trabalhava na divisão de “pesquisa”, seja lá o que isso significasse.
Minha mãe também não ajudava muito, eu sempre me sentia mais um peso morto, um estorvo. Ela parecia responder com um suspiro antes mesmo de eu terminar a frase, como se já estivesse cansada de mim. Eu era filho único, então não tinha ninguém pra dividir esses sentimentos, e claro que cresci achando que aqueles terrores noturnos eram só mais um sintoma de uma infância vivida em terreno instável, tipo tentar subir um morro de cascalho. Tudo parecia explicável.
O estopim veio no meu aniversário de 18 anos. Obviamente, meus pais não tinham planejado nada, por mais que eu tivesse esperança de pelo menos um cartão, um bolo, qualquer coisa. Mas eu tinha reservado uma mesa pra nós três numa pizzaria perto de casa e avisei. Minha esperança era que, por ser um marco na minha vida, eles finalmente fizessem algum esforço, alguma concessão pra comemorar o filho único deles. Fui direto do turno diurno no bar onde eu tinha arrumado um trampo e esperei. Esperei. Passaram 45 minutos e, percebendo que não iam aparecer, eu saí. Chegando em casa, o carro do meu pai não tava na garagem, como era de se esperar, e ao passar pela sala vi minha mãe dormindo no sofá, ela, a garrafa de vinho vazia e a de remédio pela metade na mesinha, iluminadas pelo brilho da TV.
Duas semanas depois, depois de ruminar meu estado lamentável, num impulso autodestrutivo e angústia adolescente, eu peguei uma garrafa de uísque do armário do meu pai e saí escondido, o zumbido da geladeira na cozinha sendo o único som numa casa sempre silenciosa. Digo saí escondido. Meu pai tava no trabalho e quase nunca aparecia, e minha mãe não tava exatamente fiscalizando. Cheguei nos trilhos de trem perto de onde a gente morava naquele mês.
Cheguei na ponte sobre os trilhos, passei as pernas por cima da grade, abri a garrafa e comecei a engolir aquele líquido marrom nojento, engasgando enquanto queimava a garganta, juntando coragem líquida pra... você sabe, esperando um trem passar. Eu não tinha amigos, nem namorada. Me sentia um hóspede indesejado na minha própria casa, sem perspectivas. Inevitavelmente, o estilo de vida nômade fodeu minha escola, e eu era o último da turma desde que me conheço por gente, trabalhando num emprego sem futuro que eu odiava.
Quando senti o tremor característico da minha libertação iminente com um trem se aproximando, e levantei a garrafa pros lábios pra um último gole, senti minha gola sendo puxada pra trás. Meu primeiro pensamento naquele segundo antes de bater no metal frio da passarela foi que alguém se importava. Alguém tinha vindo me impedir de fazer uma burrice. Mas não. Era um grupo de outros adolescentes da minha idade que eu via pela cidade, rindo de mim enquanto eu andava sozinho. E eles começaram a me dar uma surra do caralho, me deixando um amontoado sangrento e inconsciente na ponte.
Acordei no dia seguinte numa cama de hospital, no ambiente estéril e estranho, a única companhia uma cadeira vazia ao lado da cama. Nem preciso dizer que nenhum dos meus pais tava lá esperando quando eu acordei. O médico disse que eu tive uma concussão leve e três costelas quebradas. Disse que eu tive sorte de não morrer de hipotermia, porque um mendigo viu a cena, afugentou os vagabundos e chamou a polícia. Naquele momento eu não consegui evitar sentir um apego melancólico por ele, pensando no meu salvador fantasma como a única pessoa que talvez realmente se importasse comigo. Eu certamente não me sentia sortudo.
Fiquei no hospital pra observação por mais 3 dias, o único contato dos meus pais sendo uma mensagem da minha mãe perguntando quando eu ia ter alta e quando ela devia me buscar. Ela não disse uma palavra no caminho de volta pra casa e, sem falar nada, assim que chegamos, eu fui pro meu quarto, arrumei uma mochila com roupa e saí. Me sentindo estranhamente calmo e decidido. Era inevitável, na real. Ela só ficou parada na porta me vendo ir embora pela rua, não disse nada, e eu nem olhei pra trás.
Eu tinha um dinheirinho guardado do trampo no bar, e eles toparam me manter em período integral. Daí dormi na rua por umas semanas até achar uma república perto do trabalho. A casa era uma zona, gente aleatória, móveis que não combinavam e primeiras impressões constrangedoras. Meu quarto mal cabia uma cama de solteiro e um guarda-roupa, com papel de parede descascando e mofo no teto no canto oposto à cama. Mas com o tempo, eu senti algo que nunca tinha sentido antes: uma conexão. Essas pessoas que eu nunca tinha visto viraram as mais importantes da minha vida, minha primeira ligação de verdade. Me ancorou e me fez perceber o quanto eu tinha sido idiota. Me permiti esquecer, ou pelo menos começar a esquecer, aquela parte de mim que se sentia à deriva, e simplesmente me deixar pertencer.
Por um tempo, as coisas pareceram normais. Eu tinha minha rotina. Geralmente trabalhava até fechar, pegando o máximo de turnos que dava. Levava comida sobrando da cozinha pra casa, e eu e minha turma maluca sentávamos no chão ou no sofá remendado vendo qualquer série nova no streaming que a gente dividia a senha. Não era grande coisa. Não era nada, mas era normal. Era perfeito.
Um dia, porém, eu me vi naquele espaço vazio de novo. Eu tava de atestado por causa de uma gripe foda que me deixou delirando, e também naquele vazio escuro toda vez que fechava os olhos. Fazia anos que não ia lá, e só lembrava do lugar no momento que chegava. Dessa vez foi diferente. Antes, as formas que eu via se mexiam de um lado pro outro fora do meu campo de visão; agora elas tavam paradas. Essas formas impossíveis que pareciam se distorcer quando eu olhava, de tamanhos variados, só tavam lá. Enquanto eu absorvia mais o ambiente, percebi que tinha um monte delas, todas viradas pra mim, tentadoramente fora do meu foco pra eu distinguir detalhes, cobertas pela penumbra. Mas uma coisa eu sabia: antes elas não pareciam me notar; agora com certeza notavam. Elas tavam me observando.
Senti o corpo inteiro travar. Um frio de gelar o sangue desceu da cabeça até os pés e, enquanto isso acontecia, eu senti – não vi – as figuras se lançando em cima de mim. Por instinto levantei os braços pra me proteger, pro pouco que isso adiantaria, quando senti aquela velha sensação familiar. Aquela de ser disparado pra frente e pra cima em velocidades impossíveis. Aquela que me assombrava tanto na infância agora aparentemente vindo me salvar.
Acordei de sobressalto na cama, meu primeiro instinto sendo agradecer que tinha acabado. O segundo, enquanto recuperava o fôlego, foi olhar ao redor enquanto via as paredes respirando pra dentro e pra fora e os objetos do quarto se aproximando na minha visão. Depois de alguns segundos, quando controlei a visão e a respiração, ouvi o rangido característico da porta se abrindo. Prendendo o fôlego que eu tinha lutado pra recuperar, senti uma gota de suor salgado escorrendo devagar pela bochecha, no mesmo ritmo da porta abrindo. Lá estava Tina, uma das minhas colegas de casa, encostada no batente. Com as sobrancelhas erguidas, ela disse: “Pesadelo?”. Concordei com a cabeça, passei as pernas pra fora da cama, esfreguei o rosto com as mãos e olhei pra ela de novo. “Fumar um?” ela disse, apontando pro baseado na mão esticada, o cheiro doce enjoativo enchendo o quarto.
Passamos o resto da noite chapados e eu contei pra ela o sonho, ou melhor, o terror. Expliquei que não tinha mais isso desde criança, mas que ficar doente tinha acionado algo na minha cabeça. Falei do zoom na visão, das paredes respirando, e a gente fez uma pesquisa chapada na internet.
“Te lembra alguma coisa? Distorção de escala, alucinações visuais, esse tipo de coisa?” Tina disse, apontando pra um artigo no celular enquanto me passava o baseado. Dei um trago, li o título. Síndrome de Alice no País das Maravilhas. Continuando a ler, descrevia uma condição neurológica rara, mais comum em crianças. Percepções distorcidas de tamanho. Objetos parecendo maiores ou menores do que deveriam. Macropsia. Micropsia. Palavras clínicas pra algo que nunca tinha parecido clínico pra mim.
“Parece coisa que um adolescente emo que odeia os pais e passa tempo demais no Tumblr inventaria”, Tina zoou, me cutucando nas costelas com o cotovelo. A gente riu, e eu me senti mais aliviado do que queria admitir. Tinha um nome praquilo. Outras pessoas tinham passado por isso. O artigo dizia que era benigno. Rolei por alguns relatos em primeira mão, meio que esperando ver minhas próprias palavras me encarando. A maioria era curta. Vagosa. Reclamações de dor de cabeça. De quartos parecerem errados por alguns minutos. Nenhum mencionava figuras espreitando nas bordas da visão. Nenhum falava da sensação de ser arrastado, lançado pra frente, como se o chão da realidade tivesse sumido.
Eu disse pra mim mesmo que isso não importava.
Só fiquei feliz por não estar louco. Feliz por isso não ser algum tipo de psicose.
“Pensa assim”, Tina disse, parando pra dar um trago longo, “muita gente pagaria caro pra uma viagem dessas. Menos os demônios ou seja lá o que for.” Ela riu. “Você devia fazer o que eu faço”, acrescentou. “Ter um diário de sonhos do lado da cama. Se acontecer de novo, escreve na hora, enquanto tá fresco. Ajuda a entender, e às vezes é engraçado reler.”
Concordei com a cabeça, já pensando que algumas coisas, depois de escritas, param de ser engraçadas.
Passaram umas semanas, e eu mantive o diário. Não teve mais terror noturno. Nem macropsia ou micropsia, ou seja lá como o artigo chamava. Só sonhos fragmentados sobre nada em particular. Impressões banais do dia anterior, ou cenas claramente roubadas de série ou filme que eu tinha visto antes de dormir.
Tina e eu às vezes trocávamos figurinha de manhã, lendo as anotações um do outro e zoando o quanto eram sem graça. Eu tinha lido em algum lugar que fumar maconha atenuava o sono REM, a fase onde a maioria dos sonhos acontece, então fizemos um pacto meio sério de parar por um tempo, nem que fosse pra ver no que dava.
John, outro colega de casa, sugeriu tentar sonho lúcido. Disse que se eu caísse num daqueles terrores de novo, poderia ajudar se eu conseguisse tomar controle em vez de só aguentar. Tentamos por um tempo sem sucesso, até que uma noite, por impulso, resolvi testar uma técnica que li online. Dizia pra deitar de costas, mãos ao lado do corpo, e ficar olhando pro teto. Só isso.
Parecia fácil. Eu queria ver se conseguia voltar pra aquele lugar que me assustava desde que me conheço por gente. Disse pra mim mesmo que, se eu chegasse lá de propósito, seria diferente. Eu seria o que mandava, pela primeira vez.
Então tentei. Deitei de costas, mãos ao lado do corpo e fiquei encarando o teto. Foquei nos desenhos no gesso em cima da cama. Traçando os relevos e rachaduras com os olhos, repetidamente. Depois de um tempo, foquei na respiração pra distrair das pálpebras pesadas como cimento, contando cada volta que dava nos padrões lá em cima.
Eu tava sozinho naquela noite, todo mundo tinha ido pro bar. A casa tava pesada de silêncio, aquele silêncio que só rola de madrugada. Pairava grosso sobre tudo, o único som além da minha respiração profunda sendo o zumbido baixo do aquecedor no quarto ao lado, constante e distante.
Não teve um momento específico que eu consiga apontar. Nenhum limite claro que senti ter cruzado. Em algum ponto senti a distância entre mim e o gesso rachado no teto crescer cada vez mais. Não mais alto, só... mais longe do que tinha direito de ser. Os padrões no gesso amoleceram nas bordas e se enrolaram, esticando na minha direção quando eu tentava focar. Senti a escuridão e o peso atrás dos olhos ficar mais denso, até que precisei piscar.
Nem percebi onde tava no começo, só senti a ausência da cama embaixo de mim. Isso até tentar olhar ao redor e perceber que tinha chegado. Eu tava naquele lugar escuro de novo.
Dessa vez eu conseguia perceber mais. Não tudo, mas mais do que nunca. À minha frente tinha uma multidão daquelas figuras que me assombravam desde que me lembro, de costas, se arrastando em direção a alguma estrutura no horizonte. Impossivelmente longe, o formato indistinto contra a penumbra.
As figuras se moviam juntas com um propósito quieto. Não dava pra dizer o quão longe tavam, só que a distância entre nós parecia intencional. Como se tivessem acabado de me perder de vista. Pela primeira vez, eu conseguia ver detalhes. Elas vinham em todos os tamanhos e formas, vagamente humanas, cobertas por fiapos de fumaça ou névoa. Quando se mexiam, a vapor rareava e se abria, revelando rapidamente corpos brancos como osso por baixo, disformes, inacabados, antes da fumaça se fechar de novo.
Elas não tinham me visto. Eu pretendia manter assim.
Segui elas enquanto iam em direção ao que quer que as atraía. Pareciam horas passando, mas eu nunca cansava. O tempo não parecia se comportar como deveria ali.
Enquanto eu andava, o número delas crescia. Nunca vi nenhuma nova chegar. As figuras simplesmente apareciam, como se sempre tivessem feito parte da multidão e eu só tivesse notado agora. Algumas arrastavam outras atrás. Essas tavam envoltas numa fumaça diferente, cinza em vez de preta, mais grossa, mais pesada. As formas dentro dela não se mexiam sozinhas.
Continuei seguindo. Queria aprender as regras daquele lugar. Já tava claro que eu não conseguia mudar nada ali, mesmo sabendo que era sonho. O espaço resistia a esse tipo de influência. Então resolvi só observar, entender o máximo que pudesse.
O tempo continuou passando, impossível medir quanto. Mais e mais figuras se juntavam, entrando no lugar sem cerimônia, e a única mudança real era a estrutura no horizonte ficando mais perto. Quando chegamos perto, o formato se definiu como algo mais plano. Mais longo. Uma parede.
Ela se esticava até onde a vista alcançava nos dois lados, a superfície emitindo um brilho pálido e fraco que parecia vir de lugar nenhum e de todos ao mesmo tempo. Ouvi primeiro antes de entender o que tava vendo.
O som chegou até mim, gemidos e gritos desumanos que faziam meus dentes doerem, um coro de vozes sobrepostas tão denso que eu não conseguia dizer onde uma acabava e outra começava. Parei de andar.
A parede era feita de carne. Rostos pressionados na superfície em intervalos irregulares, bocas se abrindo e fechando em gritos mudos, a fonte do barulho enterrada em camadas e camadas de matéria viva.
Quando a procissão chegou na beira da parede, as figuras que arrastavam outras começaram a trabalhar juntas. Levantavam e empurravam os fardos pra frente, pressionando contra a superfície viva. Braços brotavam da parede pra encontrá-los. As figuras sumiam sob uma maré de membros agarradores, os contornos se dissolvendo enquanto eram puxadas e absorvidas, os corpos adicionados à massa imensa e gritante. Nenhum dos rostos que eu conseguia distinguir na parede parecia estranho. Eu só não lembrava onde tinha visto antes.
Cambaleei pra trás e virei pra correr, mas meus pés se enrolaram e caí feio, de bunda no chão. De onde tava deitado, olhei pra parede. Todas elas tavam me olhando agora.
As figuras tinham parado. Os rostos incrustados na parede tinham parado. Os gemidos cessaram completamente, substituídos por um silêncio tão absoluto que zumbia nos meus ouvidos, alto o suficiente pra ensurdecer. Então as figuras começaram a se mexer. Devagar no começo. Com cautela. Quando se mexeram, o som voltou, não delas, mas da parede. Sussurros abafados vazavam da carne dos dois lados de mim.
“Saaaaaiiii daaaaquiii.”
As palavras se sobrepunham, espalhadas, saindo de dezenas, centenas de bocas ao mesmo tempo. Enquanto as figuras se aproximavam, os sussurros ficavam mais altos, virando gritos, depois berros, um coro frenético e desesperado me mandando embora. As figuras tavam quase em cima de mim. “SAAAAAI DAAAAAQUIIII”.
Tentei me forçar a disparar. Fazer o que sempre fiz sem pensar, deixar aquela força familiar me arrancar pra cima e pra fora. Nada aconteceu.
O que quer que eu tivesse contado todos aqueles anos atrás, eu não conseguia acessar conscientemente. O pânico tomou conta. Me levantei aos tropeços e corri. Corri até os gritos da parede sumirem ao longe, substituídos pela respiração úmida e irregular das figuras me perseguindo.
Meu peito queimava enquanto eu corria. Mesmo num sonho. Nesse lugar. Cada respiração parecia rasa e rápida demais. Continuei correndo até o espaço ao redor começar a se esticar de novo, o chão puxando como tapete sob meus pés, e minhas pernas parecerem pequenas demais pro distância que precisava cobrir. Eu tava piorando as coisas, percebi de repente.
Me bateu uma clareza súbita: eu tinha conseguido escapar aquelas vezes antes porque nunca tentava. Quando criança, eu não FAZIA nada pra sair dali. Chorava. Entrava em pânico. E então, exausto, simplesmente parava.
A ejeção, o lançamento, seja lá como chamar, sempre vinha depois disso.
Tropecei e, em vez de tentar me equilibrar, me deixei cair. Antes mesmo de bater no chão, aquelas figuras me cercaram. As formas lotando minha visão, a respiração quente, perto e desesperada. Enquanto sentia elas me agarrando e puxando, vi fiapos cinzas subindo da minha pele, queimando onde tocavam. Fechei os olhos e parei de tentar fugir.
Tentei focar na respiração. Tentei lembrar os cachos e padrões do gesso no teto acima do meu corpo, por mais longe e distante que parecesse. Depois do que pareceu tempo demais, tarde demais, aquela sensação familiar voltou. Aquele puxão violento bem-vindo, mas dessa vez não veio de cima ou de baixo, veio de algum lugar dentro de mim. Não resisti, e me deixei ser arrancado pra cima e pra longe daquele lugar.
Acordei ofegante. Acordar parece termo errado, porque nunca senti que dormi. Aquela sensação de ser empurrado pra cima ficou no peito enquanto eu sentava na cama arfando, o fôlego ainda não tendo me alcançado. Por alguns segundos eu não sentia meu corpo, nada. Só um peso afundando no colchão.
Então minha visão voltou ao normal. O quarto se esticou e contorceu. Paredes curvando pra dentro, depois pra fora. Objetos distantes avançando em clareza impossível, o edredom encharcado de suor inchando na visão até eu ver as linhas desfiadas na costura.
Foi aí que vi os olhos.
Eles tavam na altura do pé da cama. Baixos demais pra pertencer a alguém, alguma coisa em pé. Amarelos e sem piscar. Me observando com atenção total. Apertei meus próprios olhos enquanto lágrimas escorriam.
Quando abri de novo, aqueles olhos tinham sumido, mas substituídos por outra coisa. Movimento. O papel de parede no fundo do quarto rasgou com um som úmido e nojento. Dedos cobertos de fiapos forçando passagem pelo gesso por baixo. Se esticando pra tentar se apoiar.
Eu nem conseguia gritar mesmo se quisesse.
Então, tão de repente quanto começou, parou.
O quarto voltou ao normal. As paredes pararam. E aquele silêncio familiar e reconfortante voltou, comum e vazio. Meu coração martelava nos ouvidos, e depois de alguns minutos consegui domar a respiração acelerada.
Depois de um tempinho, peguei o caderno do lado da cama. Queria anotar tudo enquanto lembrava os detalhes, embora algo me dissesse que eu não ia esquecer tão cedo.
Virei pra o que deveria ser uma página em branco. Mas não tinha nenhuma. Em todas as páginas, rabiscado repetidamente, numa caligrafia desesperada e faminta, estavam as mesmas 3 palavras, de novo e de novo.
“NÓS TE VEMOS”.


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