terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Eu achava que ia ficar segura trabalhando de casa. Já não tenho tanta certeza

Não tenho mais ninguém pra contar isso, então tô despejando tudo aqui pra você. Faz um ano que trabalho 100% remoto. Dá uma solidão do caralho ficar trancada no apartamento adentro, mas minha gata Mimi me faz companhia. Enquanto eu fico corcunda na frente do monitor, ela esfrega a cabecinha na minha perna com carinho e pula no meu colo. Eu endireito a postura, largo o mouse um segundo só pra fazer cafuné naquela cabeça doce cabeça. Em todos os momentos, pra tudo, ela é a minha luz.

Até o ano passado eu era barista. Salário mixuruca, mas dava pra sustentar a vidinha simples que a Mimi e eu tínhamos construído. Eu era feliz, adorava passar o turno batendo papo com os clientes, tomar café de graça era o bônus. Mas larguei tudo depois de um incidente que me deixou marcada — literalmente.

Resumindo a ópera: um cliente, docinho na fala mas meio esquisito, pegou um tesão incômodo por mim. Era figurinha carimbada, tomava café preto com um tiquinho de creme que ele mesmo colocava no balcão.

Numa noite ele me esperou do lado de fora da cafeteria, mão fechada em volta de um tijolo que pegou num canteiro de obra ali perto.

Eu achava que trabalhando de casa ia ficar segura. Já não tenho tanta certeza.

Hoje trabalho pra uma empresa de tecnologia, dando feedback humano pra modelos de linguagem grande, IA generativa e motores de busca. É repetitivo pra cacete, mas até que interessante, embora seja extremamente impessoal. Nunca falei com ninguém da empresa, nem conheço colega de trabalho — nem sei se tenho. Mal assinei contrato direito. Mas o pagamento cai direitinho, e eu posso assistir filme enquanto faço tarefas infinitas e burras pra caralho. Uns centavos por submissão vão somando rápido, e ainda ganho extra pra aceitar avaliar conteúdo NSFW.

Começou há uns dois meses. Eu tava na mesa de sempre, prestes a dar uma pausa pra dar comida pra Mimi que já tava arranhando as costas da cadeira. “Só mais uma tarefa, meu amor”, sussurrei enquanto clicava. Eu tava avaliando resultados de busca do Google pra certas queries. Enviei a tarefa, pronta pra deslogar. Foi aí que eu vi.

Meu nome completo, escrito na barra de pesquisa.

Meu nome é bem único, vai. A empresa obviamente tem meus dados de contato arquivados — será que eles usam dados de funcionário pra gerar queries falsas pra gente avaliar? Não lembro de ter lido nada sobre isso nos documentos de onboarding.

Então era uma busca real? Fiquei olhando pro monitor.

Já procurei um ou outro colega de escola pra ver o que eles viraram na vida, mas não tinha como me sentir lisonjeada. A palavra que vinha depois do meu nome me deu um arrepio na espinha: “endereço”. Alguém tava me procurando?

Olhei os resultados que eu tinha que avaliar. Nenhum, graças a Deus, mostrava meu endereço de verdade. Achei que tava viajando. Desde o incidente na cafeteria eu fico em alerta máximo. Perdi os poucos amigos que tinha assim, inclusive a colega que nos encontrou e me salvou naquela noite do caralho.

A paranoia venceu. Queria poder dizer que trabalhei em mim mesma, mas não trabalhei. Me fechei, tranquei a porta e joguei a chave fora. Hoje em dia peço quase tudo online — mercado, livro, tudo. Eu amava livraria de bairro, aquele cheiro de livro velho era o céu pra mim, mas navegar na Amazon substituiu todos os rituais da minha vida antiga.

Então sim, eu tava ligada no 220. Quando um pacote meu sumiu e depois descobri que o vizinho pegou por engano, a cara dele foi a primeira coisa que veio na cabeça. O sorrisinho torto dele também apareceu num flash. Será que era ele me procurando? Olhei a localização do usuário. Minha cidade. Nossa cidade.

No fim tive que enviar a tarefa e deslogar. A Mimi tava roendo o pé da cadeira. Não consegui tirar a sensação de que tava sendo vigiada. Mas quando voltei meia hora depois, a rotina já tinha engolido tudo. Nada estranho. Nada fora do normal.

Queria contar pra alguém, ligar pra uma amiga, mas a linha ficou muda.

Naquela noite fiquei espiando pela persiana no escuro antes de apagar a luz.

Há poucas semanas começaram a me mandar tarefas novas: avaliar prompts de geração de imagem. Basicamente classificar se o pedido do usuário era seguro ou inseguro. Sem imagem, só o texto. Acho que pra impedir o modelo gerar coisa imprópria.

A maioria era tranquila — até engraçada. Eu ainda tava rindo de um prompt anterior quando cliquei “enviar”. Joguei uma uva na boca esperando o próximo carregar.

Meu coração desabou quando vi meu nome na barra de pesquisa.

cadela morta *******-** *******

Me deu náusea. Fui atacada de novo. Meu corpo inteiro tremia enquanto eu passava o mouse em cima do botão “inseguro”. Li e reli o prompt torcendo pra ter lido errado. Não li. Era mesmo meu nome. De ninguém mais. Cliquei “enviar” e chamei a Mimi com a voz tremendo, implorando um pouco de colo. A página atualizou; o prompt sumiu.

O que apareceu em seguida estava longe de ser alívio. Dei um grito abafado, os olhos marejaram.

*******-** ******* cara esmagada com tijolo

Era ele, sem sombra de dúvida. A Mimi, minha melhor e única amiga, tinha entrado no quarto, e por mais que os miados dela fossem suaves, naquele momento não adiantavam porra nenhuma. Pensei em chamar a polícia, mas apesar de lembrar do hálito dele, do olhar vazio, da camisa surrada que ele usava quase todo dia no café, eu nunca soube o nome dele. Sempre pagava em dinheiro vivo e nunca foi preso. Nunca entrou no sistema.

Meu segundo impulso foi entrar em contato com a empresa. Será que eles conseguiam desanonimizar o usuário com base na violência dos pedidos? Mas de novo: nunca falei com ninguém da gerência. Não sei quem é meu líder de equipe — se é que tenho um. Recebo newsletter de funcionário, mas duvido muito que o time de marketing possa fazer alguma coisa por mim.

Nunca me senti tão sozinha, e olha que Deus sabe que já me senti.

Isso tudo, por mais assustador que tenha sido, não foi o que me fez escrever aqui. Depois do segundo incidente eu parei de trabalhar um tempo, morrendo de medo do que a tela ia me mostrar em seguida. A vantagem de ser só uma engrenagenzinha numa máquina tão grande e intangível é que você pode sumir a hora que quiser, sem dar satisfação. Ninguém ia notar, e no meu caso ninguém notou mesmo.

Mas logo vi que precisava do dinheiro. Não dava pra largar. Esse era o único emprego que me dava abrigo do mundo lá fora. Com o que eu sei, não posso — não consigo — arriscar botar o pé na rua.

Então voltei a aceitar umas tarefas, coração na mão toda vez que a página demorava pra carregar. Soltava um suspiro aliviado toda vez que desligava o monitor no fim do dia. Durante dois meses as persianas ficaram fechadas.

Mas não dá mais pra fingir que nada aconteceu depois do que eu vi hoje.

Peguei mais tarefas NSFW pra moderar, tentando compensar a semana que passei na cama. Tapava os olhos da Mimi toda vez que ela vinha pro meu colo — embora tela nunca tenha interessado ela, e eu nem sei se ela entende essas coisas.

Muitas fotos eu reconhecia de filme, outras eram meio cartunescas. Essas eram de boa. Outras eram granuladas, escuras. Prefiro nem saber de onde vieram nem quem tirou. Apesar do nojo da tarefa, eu me sentia segura avaliando aquelas imagens. Achava — ingenuamente — que por mais que ele pesquisasse o que quisesse, ele não tinha nada assim de mim. Não correria risco de ver meu nome de novo.

Estava errada. Hoje fui provada completamente errada, porque na minha tela só tinha vermelho.

Tudo vermelho.

Sangue vermelho.

Carne vermelha.

Tijolo vermelho.

E eu. Meu rosto era uma massa disforme, espancado até virar uma polpa nojenta, vermelho como eu nunca vi na vida real nem na tela. Mas aquele cabelo era o meu, e a gola da camisa, apesar de encharcada de sangue na foto, era inconfundível. Já não me serve há anos, mas eu sei de onde é.

Minha conta no Facebook é antiga, mas continua pública. Perdi a senha faz tempo. Na foto de perfil eu ainda tenho dezoito anos, cheia de vida e cor, intocada, intocável. A Mimi ainda era filhote — postei uma foto daquela bolinha laranja cheia de energia que ela era. Minha página tá cheia dos meus pensamentos — tudo que eu achava engraçado ou interessante eu jogava lá pro mundo ver. Essa parte inteira de mim ainda existe online. E eu sei que ele viu. Sei que ele meteu a mão bem lá dentro.

Não consigo tirar aquela imagem da cabeça. Não consigo esquecer como eu parecia morta naquela foto. Não sei pra quem recorrer. Não sei o que fazer. Será que ele consegue descobrir meu endereço com isso? Será que essa foto vai bastar pra saciar o desejo dele?

Uma pergunta que eu me faço todo santo dia há um ano voltou com força total.

Por quê?

Por que eu?

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Escritor do gênero do Terror e Poeta, Autista de Suporte 2 e apaixonado por Pokémon