quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Narcose

O profundímetro no meu computador de pulso marcava 84 metros. Uns 275 pés de água preta esmagadora, canalizada por uma garganta de calcário tão estreita que meus cilindros de estágio raspavam na rocha com um grito de metal contra osso.

A gente tava no “Intestino” — uma restrição num sistema de cenote ainda não mapeado, em algum lugar debaixo do chão da selva, a quilômetros do ponto de saída mais próximo. Meu parceiro de mergulho, o Beckett, ia na minha frente. Eu via as pontas amarelas das nadadeiras dele e o halo violento e sacolejante da luz principal dele cortando o breu absoluto.

A gente tava forçando demais a barra. Eu sabia. Ele sabia. O perfil do mergulho era agressivo pra caralho, quase suicida pra uma dupla em circuito aberto, mas o prazo da bolsa de pesquisa tava acabando e o Beckett tava com uma obsessão febril de conectar o Intestino com o aquífero principal.

— Pressão — murmurei no regulador, as palavras gorgolejando na boquilha. Bati a lanterna no cilindro duas vezes: clanc, clanc. O sinal pra checar. O Beckett nem respondeu. Só deu um coice mais forte, as nadadeiras levantando a camada de sedimento do fundo.

Esse é o pecado capital do mergulho em caverna: você não toca no chão. O fundo de uma caverna virgem é feito de eras de argila depositada e podridão orgânica. Se você mexe nisso, detona um silt-out. A água vira do cristalino pro leite com chocolate em segundos. Você perde o alto, o baixo e a saída.

Uma nuvem marrom rolou de trás das nadadeiras do Beckett e me engoliu.

Puta que pariu. Eu esvaziei o colete pra parar o avanço, tentei nadar de ré pra fora da nuvem. Mas o túnel era apertado demais. O sedimento me envolveu. O facho da minha lanterna morreu, espalhando uma parede branca cegante contra as partículas suspensas.

— Beckett! — gritei, esquecendo que ele não ia me ouvir. Apalpei procurando a linha-guia, aquele fiozinho de náilon que era nossa única ligação física com a superfície. Minha mão pegou só água.

Pânico, gelado e afiado, cravou no meu peito. Varri o braço pra esquerda, pra direita. Pedra. Pedra. Água. Nada de linha. O Beckett devia ter cortado numa quina afiada ou soltado o enrolamento quando deu aquele arranco pra frente. Eu tava cego. Tava fundo. E tava respirando ar num profundidade em que o nitrogênio age como narcótico. Aos 84 metros, a pressão parcial de nitrogênio fode o cérebro igual quatro ou cinco martínis de estômago vazio. Chamam de Efeito Martini. Lentifica o tempo de reação, mata o instinto de medo e troca o raciocínio lógico por uma aceitação fofa e eufórica da morte.

Forcei o corpo a ficar parado. Respirar. Entra. Sai. O som da minha própria respiração era ensurdecedor. Sss-clic. Rugido. Bolhas trovejando.

Olhei o manômetro: 110 bar. Uns vinte minutos de ar se eu ficasse calmo. Cinco se pirasse.

Decidi esperar. Às vezes, se a corrente ajudar, o silt-out limpa. Fiquei flutuando no vazio marrom, sentindo o peso imenso da rocha em cima de mim. Foi aí que a narcose começou a sussurrar. Não era voz. Era sensação. A água não parecia mais água, parecia melado. Eu sentia calor. O frio cortante do rio subterrâneo virou um calorzinho gostoso, anestesiante. Deu vontade de cuspir o regulador só pra provar o gosto da água. Provavelmente tinha gosto de ferro. De sangue.

Não, caralho, falei pra mim mesmo, cravando os dentes na borracha da boquilha. Isso é a narcose. Fica esperto.

Aí eu vi a luz.

Era fraca no começo, um brilho difuso atravessando a nuvem de sedimento na minha frente. Balançava ritmado. Esquerda, direita. Esquerda, direita. Era o Beckett. Ele tinha voltado. Vinha me buscar. Bati no cilindro de novo. Clanc. Clanc. A luz parou. Ficou ali, suspensa na lama, uns três metros de mim.

Esperei o sinal dele. O “OK” padrão. Polegar pra cima pra abortar o mergulho. Qualquer coisa. A luz só ficou parada.

Avancei devagar, mão esticada. O sedimento tava assentando um pouco, caindo pro fundo pesado e estagnado. Quando cheguei perto, a silhueta de um mergulhador surgiu do escuro. Era o Beckett. Flutuava na vertical, trim perfeito, braços pendendo ao lado do corpo.

“Beckett”, pensei, alívio me invadindo. “A linha. Cadê a porra da linha?”

Joguei a luz na cara dele pra chamar atenção. O Beckett não reagiu. Só flutuava, derivando levemente na corrente fraca. Cheguei perto, a um braço de distância. Foi aí que notei o equipamento dele.

O colete dele tava desabotoado no ombro. Um dos cilindros laterais pendia só por uma mangueira, balançando que nem membro decepado. E tinha alguma coisa errada com as bolhas. Não tinha bolha nenhuma. Ele não tava respirando.

Eu travei. A névoa da narcose no meu cérebro de repente virou um horror afiado e cristalino. Se ele não tava respirando, tava morto. Ou infartou, ou levou uma embolia, ou pirou e prendeu o ar.

Estiquei a mão pra agarrar o colete dele, pra chacoalhar. A cabeça do Beckett levantou num estalo. Não foi um movimento lento. Foi mecânico, violento: queixo no peito e depois esticando pra me encarar direto nos olhos.

O facho da minha lanterna bateu na máscara dele. Os olhos tavam escancarados. Não era o olhar vazio de cadáver, era o olhar dilatado e hiper-focado de um predador. Mas foi a boca que congelou meu sangue.

O Beckett não tava com o regulador na boca. O regulador flutuava atrás da cabeça dele. Ele tava sorrindo. Aos 84 metros a pressão da água é umas 135 libras por polegada quadrada. Se você abre a boca sem gás pressurizado empurrando de volta, o mar entra nos seus pulmões com força de mangueira de bombeiro. Você afoga na hora. Os pulmões colapsam. O Beckett tava me sorrindo, dentes brancos e perfeitos na luz crua do LED. Os lábios puxados até a gengiva. Não entrava água. Não saía bolha.

Ele só flutuava ali, boca aberta naquele sorriso impossível, me encarando.

Narcose, meu cérebro gritou. Isso é alucinação. Você tá completamente narcosado. Ele tá morto e seu cérebro tá desenhando uma cara na tragédia.

Fechei os olhos com força, contei até três, abri.

Ele tava mais perto. Não tinha nadado. Não tinha mexido as pernas. Simplesmente… se deslocou pela água. Tava a centímetros da minha máscara agora. Eu via os poros do nariz dele. Via as veinhas vermelhas no branco dos olhos. E via que a garganta dele se mexia. Um volume ritmado, pulsando, subindo pelo pescoço, por baixo da pele, como se engolisse ao contrário.

Ele esticou a mão.

A mão dele, com luva preta de neoprene, não pegou meu colete. Foi direto na minha cara. Especificamente no meu regulador.

Eu bati na mão dele. Parecia sólida. Real.

— Sai pra lá, porra! — gritei dentro da boquilha, o som abafado e inútil.

O sorriso do Beckett se alargou. Esticou. As comissuras da boca não pararam nos molares. A pele das bochechas rasgou — não com estalo, mas com uma separação úmida e silenciosa, tipo abrir massa crua. O sorriso continuou, partindo o rosto até as orelhas.

Dentro da boca não tinha língua. Não tinha garganta.

Tinha um tubo pálido, translúcido. Um sifão carnoso, pulsando, forrado de cílios minúsculos e transparentes que batiam na água.

Não era o Beckett. Era uma coisa vestindo o Beckett.

Eu chutei. Arranquei as nadadeiras no chão de pedra, explodindo o sedimento de novo, dane-se a visibilidade. Precisava de distância. Nadei de ré, raspando o cilindro no teto da caverna, hiperventilando.

Sss-ssss-ssss. O regulador entregava ar em rajadas desesperadas.

Iluminei a nuvem marrom. Nada. Aí veio um som. Som viaja quatro vezes mais rápido na água. Vem de tudo quanto é lado. Você não consegue localizar. Clic. Clic. Clic. Parecia pedra molhada batendo. Ou dentes rangendo.

Olhei o manômetro: 50 bar. Eu tava gastando ar pra caralho. Tinha que sair. Tinha que achar a saída. Girei 180 graus, deixando a nuvem pra trás, e nadei às cegas pro escuro. Rezei pra estar voltando pro entrada, pro salão maior onde a luz do sol pudesse infiltrar. O túnel afunilou. Meu peito raspou no chão. Meus cilindros rasparam no teto. Uma restrição. Eu não lembrava dessa restrição. Caminho errado. Você veio pelo caminho errado.

Tentei dar ré, mas a válvula do meu cilindro enganchou numa ponta de calcário. Fiquei preso. Girei o quadril tentando soltar. A pedra me segurava firme. Tava encurralado, 84 metros abaixo, num caixão de pedra.

Clic. Clic. O som tava mais alto. Mais perto.

Virei a cabeça, olhando por cima do ombro, de volta pro túnel que eu tinha acabado de passar. A lanterna cortou um cone na água limpa atrás de mim.

O Beckett tava lá. Não nadava. Rastejava. Se arrastava pelo chão usando cotovelos e joelhos, com uma coordenação insectoide e quebrada que destruía qualquer anatomia humana. As pernas dobravam nos ângulos errados. As costas tavam arqueadas pra trás, côncavas, que nem boneco quebrado.

Ele parou a uns três metros. O sedimento tinha assentado o suficiente pra eu ver os detalhes. A “roupa Beckett” tava folgada agora. O neoprene enrugado, murcho. O que tava dentro tinha encolhido, se condensando.

A cabeça pendia frouxa, queixo no peito. Aí o pescoço estalou pra cima de novo. O sorriso tinha sumido. A mandíbula inferior tinha sumido. Pendia solta, desencaixada, batendo no pescoço.

Do buraco escancarado onde era a boca, o sifão saiu. Tava maior agora, grosso que nem jiboia, pálido e translúcido. Ondulava na água, sentindo a corrente. Sentindo a vibração do meu pânico. Eu vi movimento dentro do sifão. Alguma coisa escura e sólida sendo empurrada do peito pra cima, viajando pelo tubo.

Era o computador de mergulho do Beckett. A coisa cuspiu. O disco de plástico bateu no chão de pedra.

Aí cuspiu uma aliança de casamento. Aí um dente. Tava purgado as partes não-comestíveis.

Eu me debati contra a rocha, esperneando, gritando no regulador até sentir gosto de cobre na garganta. Manômetro marcava 10 bar. Dois minutos. Talvez menos.

A coisa voltou a rastejar. Raspa. Arrasta. Clic. Não tinha mais olhos — os olhos tinham rolado pra dentro do crânio, substituídos pela carne branca e brilhante do parasita — mas sabia exatamente onde eu tava. Sabia que eu tava preso.

Parou bem na sola das minhas nadadeiras. Senti uma mão — ou o que sobrou de uma mão, ossos esmagados juntos num gancho — agarrar meu tornozelo.

A narcose me pegou de vez então, uma onda final de indiferença morna. O terror não sumiu, mas se desprendeu. Eu assisti tudo de longe. Vi a coisa-Beckett subir pelas minhas pernas. Senti o peso dela se acomodando nas minhas costas, me empurrando pro sedimento.

Ouvi o chiado do meu regulador entregando os últimos restos de ar. A agulha bateu zero. A próxima respirada foi dura. Vácuo. Olhei pra pedra na frente do meu rosto. Tinha um fóssil ali. Uma conchinha espiral, milhões de anos de idade. Era linda.

Uma cara apareceu do meu lado. Era a máscara. A face do Beckett, esvaziada, pendurada na coisa que nem pano molhado. O sifão empurrou pelas bochechas rasgadas, procurando vedação. Encostou no meu regulador. Queria entrar.

Aí entendi por que tinha usado o Beckett. Não era só camuflagem. Era roupa de pressão. Precisava de um casco pra manter a forma contra o peso do fundo. E o casco do Beckett tava quebrado. Precisava de um novo.

Eu cuspi o regulador.

Não pra lutar. Mas pra receber a água. Pra deixar o mar esmagar meus pulmões antes que ela tomasse eles.

Mas a água não veio.

O sifão grudou na minha boca aberta na mesma hora. Tinha gosto de podre e salmoura antiga estagnada. Formou uma vedação perfeita, hermética, nos meus lábios. E aí empurrou ar pra dentro de mim. Respirava por mim. Um gás reciclado, fétido, bombeado da própria bexiga dela pros meus pulmões. Tava me mantendo vivo. Me queria quentinho. Me queria fresco.

Quando o sifão começou a descer pela minha garganta, se expandindo pra encher meu esôfago, a narcose finalmente me deu uma pequena misericórdia.

Eu comecei a rir. Não saía som, entupido que eu tava, mas meu diafragma convulsionava num loop silencioso e tremendo.

Eu ia ser o novo uniforme. E a gente tinha uma nadada longa de volta pro escuro.

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