quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Minha última caçada

Eu moro numa cidadezinha do interior tão pequena que dói. População? Uns 345 habitantes. A cidade mais próxima fica a uns trinta minutos de carro pela interestadual, bem no meio do cu do nada no Texas. Só tem argila vermelha e pé de mesquite pra todo lado. Aqui, quem não cria gado ou participa do programa agrícola da escola, planta algodão ou milho miúdo.

Os campos de milho miúdo ficam no que a gente chama de “arredores” da cidade – se você for generoso o bastante pra dizer que o lugar tem arredores. Nessas lavouras é comum ver porco morto jogado. Esses javalis selvagens adoram milho miúdo e, sendo Texas, a gente tá infestada dessa praga do caralho. Não é raro ver fazendeiro esperando na beira do campo e estourando uns dez, treze porcos só pra espantar. Só que eles sempre deixam os corpos lá. Os porcos, por mais feios que o pecado e cheios de consanguinidade, viram um ótimo adubo depois que a natureza faz o serviço. Não dá pra comer, então muita gente tenta envenenar mesmo. Nesse ponto já virou só controle de praga.

Era fim de outubro e a temporada de cervo já tinha aberto no começo do mês. Meu pai e eu atirávamos em porco o ano inteiro pra ajudar os fazendeiros da cidade, mas cervo era raridade, era presente. Quando a gente caça não é por maldade nem por esporte. Claro que um cervo grande, com chifre bonito, sempre é legal, mas na maioria das vezes a gente só abatia um mesmo. Dessa vez a gente tinha um em mente. Achamos ele pelas câmeras de trilha que colocamos na nossa propriedade. Não era um cervo enorme de galhada, mas dava pra ver pelas cicatrizes de briga e pelo olho direito cego que ele era o chefe daqueles matos de mesquite. A gente batizou de Uno, por causa do olho que ainda funcionava. Era um cervo bonito, corpo grande, oito pontas. Eu chutaria uns cinco ou seis anos de idade.

Meu pai e eu compramos milho, passamos horas estudando onde ele dormia, os caminhos que fazia, os trechos que mais gostava de comer. Decidimos que tava na hora. Nos equipamos praquela tarde. Pegamos os arcos compostos, umas facas e uma pistola. Só por garantia – os porcos da região às vezes são bem filhos da puta. Já aconteceu de um javali idiota achar que ia me ensinar quem mandava e partir pra cima da gente.

Chegamos na propriedade umas 3:30 da tarde, estacionamos a caminhonete e entramos a pé pro resto do dia. Meu pai foi pro posto dele perto do tanque d’água – um tripé de metal com cadeira a uns dois metros e meio do chão, encaixado direitinho entre uns galhos pra ter cobertura. Eu nem imaginava que aquela seria a última vez que eu ia ver meu pai vivo.

“Quem vir o Uno primeiro, garoto.” Ele brincou. “Eu peguei o cervo no ano passado, mas não fica muito animado não.” Eu sorri pra ele. “É mesmo? Ele vai te sentir de um quilômetro de distância, seu velho fedido!” A gente se abraçou e eu comecei a andar mais pra dentro da propriedade até o meu posto. “Quer a pistola hoje, durona? Os porcos podem te farejar.” Eu fiz cara de quem pensa e balancei a cabeça. “Não, valeu! Eu não sou doce o suficiente!” A gente riu e cada um foi pro seu lado.

Eu precisava escrever isso. Precisava contar pra alguém o que aconteceu. E também porque eu nunca mais fui caçar desde então. Me desculpa, pai.

A propriedade tem uns quarenta hectares. Não é grande coisa, mas pra atravessar todo o mato e as trilhas de bicho leva uma hora e meia a pé. Até a cidade são mais quarenta e cinco minutos, e sinal de celular? Nem em sonho. Pedir ajuda era praticamente impossível.

Desci a trilha de terra, curtindo o ar fresco da tardezinha. Pulei galhos e cactos pequenos até conseguir subir no meu posto – um tripé de quatro pernas feito pra caçar de rifle. Lá eu sentei… e percebi uma coisa. Não tinha ouvido um pássaro sequer. Nem coelho, nem esquilo. Silêncio total. Só dava pra ouvir o vento balançando leve as árvores. Dia quieto acontece, claro, mas aquele era diferente. Sinistro. Parecia que tinha alguma coisa esperando do outro lado da cerca. Com o tempo, começou a chegar um cheiro. Devagar no começo, quase imperceptível. Forte, almiscarado, parecia lama de porco depois de chuva pesada. Já eram umas seis da noite e ficou escuro demais pra caçar de arco.

Desci do posto tentando não fazer barulho. Alguma coisa tava errada. O cheiro agora tava inconfundível. Só que era um cheiro velho, como se o que quer que tivesse causado aquilo já tivesse ido embora fazia tempo. Senti um aperto no peito enquanto voltava pro lugar onde meu pai tava.

Quando cheguei perto, o crepúsculo já tinha virado noite. Tirei a lanterna de cabeça e liguei. Dava pra ver o posto do meu pai, mas ele não tava lá. Fiquei confuso. Ele não ia sair sem avisar. Procurei em volta e vi alguma coisa no mato ali perto.

Fui chegando de fininho e olhei. Era o Uno. Meu pai tinha pegado o Uno! Por um segundo um sorriso enorme abriu na minha cara, mas quando eu segurei na galhada pra puxar ele do mato e ver a cara… larguei na hora. A cara dele não existia mais. Parecia que tinham arrancado a cara do Uno inteira! Pedaços de osso e músculo rasgados, sangue por todo lado, cobrindo os galhos quebrados e as folhas. Arranhões gigantes no corpo todo, e a pata traseira torcida num ângulo que só podia estar quebrada.

Outra coisa entrou no meu campo de visão: a mochila de caça do meu velho. O conteúdo espalhado no chão: flechas, embalagens de lanche, o arco do meu pai. Revirei tudo e achei a pistola no fundo, ainda no coldre. Meu coração batia forte contra o silêncio absoluto do mato de mesquite. Aí eu ouvi.

A voz do meu pai. Só que cada célula do meu corpo gritava pra eu correr. Alguma coisa tava terrivelmente errada. Mesmo assim eu chamei: “P-pai? Cadê você?” Ouvi um movimento no escuro. O cheiro ficou mais forte, parecia grande e pesado. Um almíscar podre, grosso, que só dava pra comparar com javali. Nesse momento tirei a pistola do coldre e engatilhei.

Ouvi de novo, vindo de perto do corpo mutilado do Uno. Um barulho forte de arrastar, junto com uma versão distorcida da voz do meu pai. Grave, gutural, arranhada. Parecia um esqueleto falando com brita na boca. “Duuuuroooonaaa?” Antes que eu pudesse entender o que tava acontecendo, a coisa jogou algo em mim. Eu desviei, a coisa rolou no chão e bateu na escada do posto antes de parar.

Mantendo o olho na direção do Uno, recuei até a escada. Olhei rápido pra baixo e pulei pra trás no mesmo instante. Eu vi só por um segundo, mas vi: a cabeça do meu pai, agora uma massa sangrenta mastigada. Um rugido que parecia um porco em pânico. Então eu corri. O cheiro me acompanhou até a caminhonete. Peguei a chave no bolso, entrei de qualquer jeito, joguei minhas coisas no banco de trás e girei a chave na ignição. O motor roncou e os faróis iluminaram o horror.

A uns vinte e cinco metros da caminhonete estava “aquilo”. Tinha uns dois metros de altura. Corpo curvado, pelagem dura e arrepiada, músculos se retorcendo de um jeito que não era possível. A cabeça lembrava porco, mas torta, como se tivessem quebrado várias vezes e colado errado. O focinho torto farejava o ar e fez contato visual comigo.

Os olhos refletiram nos faróis, deixando a criatura ainda mais assustadora. “Seu filho da puta!” eu gritei. Os ombros dele começaram a subir e descer. Roncos encheram o ar. A coisa tava rindo. Tava rindo pra caralho. Coloquei a caminhonete em drive e pisei fundo.

A besta urrou de surpresa quando eu atropelei ela com tudo. Dei ré e passei por cima de novo antes de sair pelo portão e cair na estrada. Cheguei em casa voando aquela noite. Chamei a polícia. Fiz tudo que podia, mas não mudou nada. Eles acharam o que sobrou do corpo dele e até trouxeram o arco e a mochila de volta pra mim. Eu não consigo explicar o que aconteceu naquela noite, mas eu sei que não matei aquilo. Sei porque de vez em quando eu ainda escuto a risada.

Por favor, nunca se separe do seu parceiro de caça. Você nunca sabe o que pode aparecer pra fazer uma visitinha pra ele.

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Escritor do gênero do Terror e Poeta, Autista de Suporte 2 e apaixonado por Pokémon