Depois do término com o Carl — e depois de um período mais do que necessário de autopiedade descarada e de me afundar na fossa —, eu sabia que precisava fazer alguma coisa positiva, me mexer de novo, me sentir bem comigo mesma. Decidi pela trilha por alguns motivos. Nunca tinha sido do tipo “gente da natureza” e queria provar pra mim mesma que conseguia me desafiar. Tinha ficado confortável demais, confortável demais mesmo no relacionamento, tava na hora de sair da zona de conforto. Além disso, eu curtia a ideia da solidão que a trilha ia me dar. Precisava de tempo pra pensar e refletir.
Bom, digamos só que essa parte eu errei feio, mas sair da zona de conforto? Isso eu consegui. E muito.
Depois de gastar uma fortuna num par de botas de trilha, numa mochila de ataque e um monte de equipamento (nada disso ia servir pra porra nenhuma, como vocês vão ver), escolhi uma trilha a uns quarenta e cinco minutos de carro de onde eu morava.
Cheguei cedo no início da trilha. O ar tava fresco, gostoso. Renovador até.
Entrei na casinha do guarda florestal pra assinar o livro de visitantes. Me receberam dois caras: um mais velho, com sobrancelhas grisalhas gigantes e cabelo grisalho preso num rabo de cavalo, e um mais novo, provavelmente da minha idade, uns 30 e poucos, cabelo preto lambido pra trás.
— Bom dia! — disse o Rabo de Cavalo, todo animado. — Dia lindo pra uma trilha, hein?
Tive que acreditar na palavra dele, já que era literalmente a minha primeira vez fazendo trilha na vida, mas sorri de volta enquanto ele me entregava a caneta pro registro.
O Rabo de Cavalo explicou umas regrinhas básicas: ficar na trilha marcada, não levar nem deixar nada pra trás… e aí ele falou uma coisa que me fez congelar.
— A gente tá tendo um probleminha com uma… hã… moradora de rua aqui no parque. Uma mulher. Ela tem incomodado alguns trilheiros. A gente não sabe… — ele foi interrompido pelo telefone tocando lá no fundo. Levantou o dedo pra mim, pedindo pra esperar, e foi atender.
Durante todo esse tempo, o Cabelo Lambido tava sentado num banquinho atrás do balcão, me encarando com uma expressão que eu não conseguia decifrar. Não tinha falado um “a” até o Rabo de Cavalo sair.
— Escuta aqui — ele falou baixinho assim que ficamos sozinhos. — Aquilo não é mulher coisa nenhuma. Ele sabe — apontou pro Rabo de Cavalo atendendo no outro cômodo — e eu sei. O que eu vou te falar agora pode fazer você dar meia-volta e correr pro carro, mas se mesmo assim você quiser fazer a trilha, presta muita atenção.
Ele mantinha a voz baixa, claramente pra o outro não ouvir.
— Se você vir ela… ou aquilo… seja lá o que for… vai ser numa árvore. Ela sempre tá nas árvores. Ela vai tentar falar com você. Não responde. Tenta nem olhar pra cima se ouvir uma voz vindo das árvores. Mas se não conseguir evitar, pelo amor de Deus, não fala de volta. Faz de conta que não existe, dá meia-volta, volta pro início da trilha, entra no carro e cai fora. Se você vir ela uma segunda vez, corre. Se ela começar a descer da árvore… reza.
Eu fiquei olhando pro Cabelo Lambido de boca entreaberta, sem saber se ria ou se gritava.
— Só tô te falando isso — ele continuou — porque, sem ofensa, dá pra ver que você não é exatamente uma trilheira experiente. — Ele me mediu de cima a baixo, reparando nas botas claramente zero quilômetro e no cinto da mochila apertado demais na minha cintura. — E ela parece escolher justamente gente como você. O problema é que agora não parece que ela só tá observando mais, mas… — ele parou de repente quando o Rabo de Cavalo voltou pro balcão.
O Cabelo Lambido me encarou sério pra caralho.
— Beleza — disse o Rabo de Cavordo. — Desculpa aí. Você levou água suficiente? O percurso de ida e volta leva umas quatro horas, cinco se você… hã… não andar muito rápido ou não estiver acostumada com a trilha.
Eu balancei a cabeça, ainda tonta.
É óbvio que essa era a hora de eu ter dado meia-volta e corrido pro carro. Mas o problema é que eu sou teimosa pra cacete. Com o julgamento implícito do Rabo de Cavalo e o explícito do Cabelo Lambido sobre minha experiência zero, eu fiquei decidida a provar que os dois tavam errados.
Dez minutos trilha adentro, eu já tinha me convencido que o Cabelo Lambido só queria me assustar porque achou que eu ia dar trabalho, tipo sair da trilha ou tentar fazer carinho num puma…
Meia hora depois, minhas botas começaram a machucar pra valer.
Uma hora depois, o ar tinha virado um forno úmido e opressivo, e o dedão do meu pé esquerdo latejava que era uma beleza. Eu não sabia quanto tempo mais minha teimosia ia me segurar.
Achei um banco uns minutos depois e desabei nele. Tirei a bota e a meia na hora pra ver a bolha gigante, vermelha e em carne viva que tinha se formado.
Não tinha levado kit de primeiros socorros e fiquei me xingando enquanto dava um gole caprichado na garrafa d’água.
De repente — não tem outro jeito de descrever — eu senti a presença de outra pessoa. Olhei automaticamente pro caminho, certa de que ia ver outro trilheiro dobrando a curva. Nada. Ninguém.
Prendi a respiração. A floresta ficou num silêncio do caralho, como se ela também estivesse prendendo a respiração comigo.
E aí eu levei um puta susto quando um bando de graúnhas explodiu de uma árvore lá atrás, grasnando feito loucas enquanto voavam pra longe.
Talvez fosse a dor, o calor desgraçado, ou talvez eu já tivesse ficado assustada com o que o Cabelo Lambido falou, mas decidi dar o fora dali. Calcei a meia e a bota de novo e guardei a garrafa em tempo recorde.
Ia levar mais uma hora pra voltar pro carro, talvez um pouco mais porque eu já tava mancando pra não apoiar o pé esquerdo.
Ainda sentia aquele aperto no peito de que não tava sozinha, que a qualquer momento outro trilheiro ia aparecer no caminho.
Em vez disso, ouvi um “Oi” bem fraquinho vindo de cima.
Eu olhei. Claro que olhei. Qualquer um olharia.
O que eu vi foi uma mulher magérrima, pálida pra caralho, sentada num galho baixo da árvore bem acima de mim.
Os braços dela abraçavam o tronco, e demorei um segundo pra sacar que eram compridos demais — tipo, impossivelmente longos —, porque davam quase a volta inteira no tronco grosso. Se fosse eu, minhas mãos nem se encontrariam. Os dedos eram longos, abertos na casca, com unhas enormes e imundas.
O rosto dela vai ficar queimado na minha memória pra sempre. A pele era tão branca que parecia papel, os olhos eram azul-leitosos, grandes demais e muito afastados. Tinha um cabelo loiro quase branco, fino e ensebado.
Ela tava completamente pelada.
— Tá com dor? — ela perguntou com uma voz rachada, sussurrada, e começou a sorrir.
Eu esperava ver presas, mas os dentes eram minúsculos, espaçados em gengivas rosadas e inchadas. Mas eram afiados pra cacete, pontiagudos tipo de jacaré.
Quanto mais eu ficava chocada, mais o sorriso dela abria, e eu senti a adrenalina explodir no meu corpo.
As palavras do Cabelo Lambido ecoaram na minha cabeça: volta pro início da trilha e entra no carro.
Coração na boca, pescoço suado, comecei a andar rápido, sem saber se virar as costas pra ela era a pior ideia do mundo. Sentia os olhos dela cravados em mim.
Andei num trote dolorido, rangendo os dentes de dor, por cinco minutos ou cinquenta — nem sei.
Por favor, meu Deus, não deixa eu ver ela de novo.
Minha cabeça tentava processar o que eu tinha acabado de ver, mas eu empurrava os pensamentos pra longe. Ficar pensando nisso ia embolar meus sentidos, e eu precisava de cada neurônio funcionando pra chegar no carro.
Impossível, mas ela conseguiu chegar numa árvore à minha frente. Parei e senti o coração afundar quando uma perna branca apareceu no meio da copa densa, uns seis metros à frente. E aí a outra perna. Ela tava descendo.
Saí correndo, abaixando a cabeça enquanto passava pela árvore. Um braço comprido desceu tentando me agarrar, mas consegui desviar das garras.
Olhei pra trás e vi que ela já tava no chão, de quatro. As proporções eram humanas, mas erradas pra caralho. Ela começou a correr atrás de mim como caranguejo, passos curtos e rápidos. Cobria o chão numa velocidade assustadora e eu sabia que não tinha como escapar correndo.
Cheguei numa clareira que eu lembrava que ficava perto do estacionamento. Se eu aguentasse mais cinco minutos, talvez, talvez eu conseguisse.
E aí tropecei. Uma dor do caralho explodiu nos dedos já sangrando e cheios de bolha quando bateram numa pedra. Caí de cara no chão, de mãos, e esperei o inevitável — tava tão certa que ela ia me pegar que quase senti o impacto. Mas nada. Ainda de quatro, virei a cabeça tremendo.
Ela tava lá, de quatro, mas parada. Deu um grito animalesco, mas não chegou mais perto.
Demorei pra sacar: ela não entrava na clareira. Ficava na sombra das árvores, rondando, procurando um jeito de me alcançar.
O sol tinha me salvado.
Mil pensamentos passaram pela minha cabeça. Eu podia ficar na clareira até alguém aparecer. Mas e se ninguém viesse? E se a pessoa não conseguisse me ajudar? Ia escurecer eventualmente.
Sabia que depois da clareira, por uns cem metros, a trilha voltava a ter sombra antes do estacionamento. Será que eu conseguia se corresse tudo?
Com o estômago revirando de pavor, sabia que ia ter que tentar. Mantive os olhos nela e comecei a andar pra trás, devagar. Ela ficou na beira da sombra, me observando, calculando.
Sessenta metros até a sombra voltar. Trinta. Quinze. Três. Aí virei e saí correndo feito uma louca. A trilha subiu e eu consegui ver o estacionamento. Ainda não tava aliviada, ainda não tava segura, mas conseguia ver a segurança e me permiti ter esperança.
Pelo canto do olho, vi um flash branco. Virei e vi ela correndo entre as árvores, fazendo uma curva pra me interceptar. Na velocidade que ela vinha, ia me alcançar antes de eu sair da trilha.
Sei lá como, consegui dar um gás a mais, e ouvi ela dar outro grito — um som de pura frustração e fome animal — quando pisei no asfalto ensolarado do estacionamento.
Passei voando pela casinha do guarda, tremendo tanto que quase deixei as chaves caírem. Consegui abrir o carro, entrar e trancar. Liguei o motor e já engatei a ré, saindo da vaga sem nem olhar.
O Cabelo Lambido saiu correndo da casinha, cara de choque e suspeita.
Abaixei o vidro um tiquinho e gritei pra ele voltar pra dentro e trancar a porta.
Ele hesitou um segundo e correu de volta, batendo a porta.
Não parei de tremer durante os quarenta e cinco minutos inteiros até chegar em casa.
Não sei o que ela era. Não sei o que ela queria, nem o que teria feito comigo se tivesse me pegado. O que eu sei é que depois dessa única trilha, nunca mais me senti segura de verdade, e nunca mais consegui me livrar da sensação de estar sendo observada. Deixo todas as luzes da casa acesas o tempo todo.
Evito sombra. Minha própria sombra agora é sinal de segurança e conforto.


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