Cinco dias depois que esses trancos pioraram de vez, meus pais começaram a achar que insônia não explicava mais. Começaram a perguntar se eu tava sofrendo bullying na escola, se tinha professor filho da puta, essas coisas. Eu não tinha bully nenhum na época e todos os professores eram legais, então a resposta era sempre “não”. Me levaram pra umas consultas na clínica infantil da cidade, não acharam nada errado fisicamente, mas anotaram que eu tinha um monte de “trauma auto-infligido” – vai entender que porra era essa. Deram uma receita de remédio pra dormir pros meus pais e falaram pra eu tomar um uma hora antes de deitar, pra ver se me mantinha apagado. O remédio nunca funcionou porra nenhuma. Eu até ficava mais sonolento antes de dormir, mas os trancos continuavam acontecendo, toda santa noite, pontualmente à meia-noite.
Isso durou um tempão e eu só queria que aquele inferno acabasse. Acabei perguntando pros meus pais se existia um “médico do sono”. Eles falaram que não tinha isso, mas que podiam me levar num psiquiatra. Logo eu tava sentado num consultório cheio de brinquedo, fidget toy e livro espalhado, enquanto o Dr. Cole, meu psiquiatra na época, me fazia um monte de pergunta. Perguntas ridiculamente básicas: “Quantos anos você tem? Sempre quis procurar ajuda psiquiátrica? Dorme bem? Come direitinho?” e tal. Depois disso ele tirou umas folhas, aquelas com borrões pra ver como a cabeça do paciente funciona identificando imagem. Juro por Deus, cada uma por uma, todas as folhas tinham dois círculos pretos gigantescos dos lados, tão escuros que parecia que eu podia enfiar a mão ali e perder pra sempre. Sei que algumas realmente tinham traços assim, mas pra mim todas eram iguais: vazios absolutos que pareciam me encarar direto. Lá pela nona folha eu desabei chorando e tentei me esconder embaixo da mesa. O Dr. Cole juntou as folhas, guardou na pasta e começou a preencher um relatório. No mesmo dia meus pais foram informados que eu podia ter um caso leve de esquizofrenia, que fazia meu cérebro projetar imagens que eu não queria ver nas folhas. Deram outra receita. Meu pai fez o maior escândalo, falando que não ia deixar o filho caçula tomar remédio pra um transtorno de verdade em vez de tratar de verdade. Resumindo: nunca mais voltei lá.
Por meses eu tive que aguentar aqueles trancos o tempo todo, e ficou tão insuportável que parei de dormir no meu quarto e passei a dormir com meu irmão David. David tinha 10 anos na época e, pra ser sincero, já tava de saco cheio da minha palhaçada, mas ainda me deixava dormir com ele se isso fizesse eu calar a boca. Depois de um tempo chegou meu aniversário. A festa era pra ser uma desculpa pra eu pegar ar livre, mas por causa dos trancos da meia-noite meus pais decidiram que todo mundo ia ficar dentro de casa pra “se conectar mais”. Na festa tinham três dos meus amigos mais próximos – dois eram vizinhos, o outro era da sala. Além deles, dois primos meus que eram pelo menos cinco anos mais velhos que o David, mas ainda curtiam vir em casa zoar com a gente de vez em quando.
Durante a festa eu consegui esquecer completamente dos trancos. Todo mundo jogando, falando de coisa que ia rolar, e principalmente rindo de piada escrota e besta pra caralho. No fim da tarde eu e o David pegamos os sacos de dormir. Ele foi abrir o sofá-cama enquanto eu juntava cobertor e travesseiro. O David parou na frente de todo mundo e avisou que os sacos de dormir eram só pra mim e pra ele, e que o sofá-cama ia ser “quem chegar primeiro leva”. Eu dei um sorrisinho e falei pra eles “se “se matarem pela cama”. Achei que ia rolar guerra de polegar ou pedra-papel-tesoura, mas os primos se ofereceram pra dormir no chão e meus amigos resolveram na queda de braço. Depois de decidir quem dormia onde, ficamos acordados umas boas duas horas depois do horário de dormir, desafiando um ao outro pra ver quem aguentava mais tempo sem apagar. Claro que eu fui o último a dormir.
Enquanto eu ia apagando, sorria com o dia inteiro de diversão, mesmo tendo ficado só dentro de casa rindo até doer a barriga. Aí, lá pela meia-noite, senti aquele tranco me jogando pra fora do sono de novo, e a vontade de gritar e socar o que tivesse mais perto veio com tudo – só que minha voz não saía. Minha boca tava aberta, mas as cordas vocais não funcionavam. Meus braços, já dentro do saco de dormir, não mexiam. Lembrei que meu primo tinha falado que sentia isso direto: paralisia do sono, quando você acorda rápido demais e o corpo não destrava os movimentos. Varri o ambiente com os olhos pra ver se tinha alguém acordado. Só via a bagunça de jogo de tabuleiro e salgadinho, meu irmão, meus primos e meus amigos dormindo, e a janela grande do lado da porta da frente.
Meu primo sempre dizia que, quando ficava paralisado, tentava ficar olhando pras coisas diferentes porque sabia que a mente acabava ficando entediada e inventava monstro. Meu irmão retrucava que ficar olhando em volta só incentivava a mente a criar os demônios. Meu primo dava de ombros e falava que nunca tinha visto nada que não estivesse ali de verdade. Eu fiquei olhando cada canto da sala que conseguia pra garantir que nada mudava. Quando me senti seguro, fechei os olhos e tentei dormir de novo. Logo depois de fechar os olhos, ouvi um farfalhar no mato bem do lado de fora da janela grande. Abri os olhos num pulo e virei pra ver o que porra era aquela. Fiquei apavorado.
O cara – a coisa, melhor dizendo – que tava do lado de fora da janela era alto e todo escuro. Parecia usar um moletom preto, mas o rosto… nunca vou esquecer aquele rosto. Escuro e ao mesmo tempo pálido, sem boca nem nariz que desse pra ver, e os olhos eram exatamente aqueles círculos pretos gigantescos que eu vi nas folhas do Dr. Cole, só que ainda mais fundos. De algum jeito consegui franzir a cara numa careta de raiva, torcendo pra ele ver que eu tava puto e ir embora. Ele viu mesmo a careta, virou pro lado da porta e… caminhou até ela. Pisquei só pra ter certeza que não tava louco, mas a coisa agora tava dentro da minha casa, parada bem na frente da janela. Com medo de piscar de novo, forcei os olhos a ficarem abertos. A coisa começou a andar na minha direção, bem devagar. Meus olhos lacrimejaram, lutei com tudo pra não piscar, até que, de repente, piscar foi inevitável. Quando abri os olhos de novo, a coisa tinha sumido. Varri a sala inteira: nada fora do normal. Percebi que meu corpo já tinha destravado da paralisia e corri pro David pra acordar ele.
“David! David!” gritei. “Tem um cara, eu vi ele! Tá escondido aqui dentro de casa!”
Meu irmão se mexeu e virou de costas pra mim. “Vai dormir, cara, tá tarde pra caralho.”
“Não! Eu não consigo dormir, David! Ele tá na nossa casa! Pode tá esperando pra matar a gente!” retruquei gritando.
David se levantou devagar, espreguiçou e falou bocejando: “Que tal a gente procurar esse cara e, se achar, a gente vai chamar o papai e a mamãe. Combinado?” Eu balancei a cabeça que sim. Levantamos e fomos procurar pela sala: debaixo do sofá-cama, debaixo da mesinha de centro, até no armário do corredor. Nada. Voltamos pra cama e o David apagou quase na hora. Eu sabia o que tinha visto. Sabia mesmo.
Depois daquela noite os trancos pararam. Nunca soube o porquê, então por um tempo achei que era só uma fase de medo de medo de tudo. Hoje eu tenho 19 anos e ontem à noite eu fui provado errado: senti um tranco de novo, olhei pra janela do meu quarto e lá tava ele – o homem sem olhos.


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