sábado, 13 de dezembro de 2025

Eu não tenho cachorro

Moro num prédio alto, daqueles que só dá pra acessar por um túnel duplo de trem ou carro. Anos atrás isso aqui era uma base militar, mas foi convertido em moradia residencial. O lugar é bem sombrio, e todo mundo que mora aqui se mudou ou ficou pelo mesmo motivo: a gente queria isolamento. Por ser tão isolado — praticamente uma ilha —, temos todas as comodidades necessárias pra sobreviver sozinho. Tem academia, escola fundamental, consultório médico, delegacia e umas poucas lojinhas. Eu trabalho numa loja de conveniência simples no quarto andar.

Acordei numa manhã fria de inverno e dei de cara com minha goldendoodle branca gigante deitada na cama comigo. Ela me manteve aquecido, e aquele cheiro familiar de pipoca dela me fez sorrir na hora que eu voltei à consciência total. Dei um carinho na cabeça dela e nós nos levantamos juntos. Enquanto eu me vestia, ela foi pra sala e se apoiou no parapeito da janela pra olhar a paisagem completamente branca lá fora — estava rolando uma nevasca dos infernos. Não tinha tigela nem ração na cozinha. Fiz uma nota mental pra comprar umas coisas no caminho de volta do trabalho, mas ela era uma cachorra grande e aguentava ficar sem uma refeição. Deixei um pote de cerâmica com água na cozinha, dei um carinho de despedida e saí.

No elevador antigo, mas confiável, trombei com Agnes Keller, uma mulher de meia-idade do nono andar. Ela estava com aquelas roupas cor-de-rosa de sempre. Agnes trabalhava no consultório com o Dr. Pyre. O que me chocou foi que o rosto enrugado dela estava rachado num sorriso. Ela era famosa por ser uma das pessoas mais carrancudas do prédio. Acho que nunca tinha visto nada além de uma cara fechada daquela mulher até hoje. Dei um oi simples e não quis estragar o bom humor dela fazendo perguntas. Mas ela mesma se explicou sem eu pedir. O filho dela tinha contado uma piada engraçada naquela manhã. O engraçado é que Agnes não tinha filho.

Marcus Lin estava andando de um lado pro outro na loja com uma prancheta na mão e me olhou com aquela mistura habitual de desprezo e insatisfação. Meu gerente me botou pra trabalhar na hora, mandando pro estoque repor mercadoria. Por sermos tão isolados, o depósito atrás da loja era enorme e lotado de suprimentos de emergência, bem além do padrão normal. Lin gostava de tocar a loja como se estivéssemos no meio de um centro turístico lotado. Eu aguentava o estilo ditatorial dele porque isso fazia os dias passarem rápido. Depois do nosso “horário de pico” da manhã — umas seis pessoas, mais ou menos —, desci o corredor onde ficava a ração pra cachorro. Um pensamento esquisito me veio à cabeça enquanto eu olhava as poucas opções. Lembrei de uma conversa com Lin em que ele reclamava que a única razão pra gente estocar aquela porra de ração era por causa da Sra. Innes, do segundo andar. Ela era a única pessoa no prédio que tinha cachorro.

Lin me liberou pro intervalo obrigatório de quinze minutos e eu voltei pro meu apartamento com uma lata de ração na mão. Meu gerente nem comentou a compra. A cachorra estava sentada no sofá assistindo TV. Ela tinha um cheiro tão familiar, e só de ver aquela criatura fofinha já dominava qualquer sensação de desconforto com uma tranquilidade gostosa. Ela correu na minha direção e se esfregou na minha perna, ganhando uma coçada na barriga. Nem pensei em como ela tinha ligado a TV. Ela devorou a ração com gula e abanou o rabo. Lin ia me dar um sermão daqueles se eu demorasse mais que o permitido, então deixei a cachorra com a promessa de levá-la pra passear no meu intervalo de almoço maior. Só quando já estava de volta no elevador é que percebi que eu não conseguia lembrar o nome da minha própria cachorra.

Quando voltei pra loja, fiquei surpreso de não encontrar Lin. Ele nunca deixava o lugar sem ninguém e fazia os intervalos ali mesmo, comendo macarrão instantâneo e me criticando. Aí encontrei o bilhete escrito à mão dele. Ia passar o intervalo de almoço em casa com a esposa. O Sr. Lin não era casado. Minha cabeça começou a ficar enevoada enquanto eu tentava juntar as peças da manhã. Uma sensação esmagadora de pavor subiu dos meus pés, fazendo minha pele arrepiar e os cabelos ficarem em pé. Repetidas vezes eu revivia a memória vívida de acordar ao lado da minha cachorra e depois vê-la sentada no sofá. Por que eu tinha lembrado dela como branca e fofa? Ali parado na loja, lutando pra não gritar, eu soube com uma certeza absoluta que a coisa que estava me esperando no apartamento na verdade era magra, cinza e tinha dentes afiados.

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Escritor do gênero do Terror e Poeta, Autista de Suporte 2 e apaixonado por Pokémon