"Antes de você ir embora, eu queria te contar sobre um novo estudo de pesquisa", diz Sarah.
Faz seis meses que eu faço terapia com a Sarah, e ela usou o mesmo cardigã em todas as nossas sessões. Eu sei que isso é por minha causa, porque uma vez eu apareci de surpresa pra remarcar um horário e ela estava de suéter verde. Hoje o cardigã está desabotoado e uma parte de mim já tá morrendo de medo da inevitável troca de guarda-roupa do verão.
"Que tipo de estudo?"
"É pra analisar os efeitos de um treinamento pra ajudar pessoas com prosopagnosia a reconhecer rostos. Eles vêm desenvolvendo um software há cinco anos e agora estão prontos pro primeiro teste com gente de verdade. Você toparia participar?"
"Tô dentro."
Não foi uma resposta cheia de animação. Já deixei de reconhecer minha própria irmã quando ela entrou na mesma academia que eu, e um ex particularmente nojento uma vez se aproveitou da minha condição pra tentar me cantAR depois do término fingindo ser literalmente um cara novo. Por sorte isso rolou numa festa e uma amiga me salvou rapidinho, mas dá pra entender por que eu não tava pulando de alegria com a ideia.
No dia seguinte já caiu um e-mail com todas as informações do software. Tinha até versão de app, além do site. Os dois registravam quanto tempo eu passava treinando e me diziam em que “nível” de reconhecimento facial eu estava. Era tipo Duolingo ou aqueles joguinhos de treinar o cérebro. Eu continuava sem muita esperança, mas fiquei com medo da Sarah perguntar quantos exercícios eu tinha feito e eu parecer a preguiçosa que nem tentou…
A primeira semana foi um saco. Meu nível subia devagarzinho, mas parecia que eu estava chutando o tempo todo. Na segunda semana, porém, comecei a melhorar de verdade. Reconheci as pessoas do app — reconheci de verdade — e até consegui identificar minha irmã dentro da sauna da academia. O cabelo dela estava molhado e mais cacheado do que ela costuma deixar, o rosto vermelho do vapor, a luz bem fraca… e mesmo assim eu soube quem ela era sem ela abrir a boca! Fiquei eufórica.
Logo eu já estava gastando todo tempinho livre no app e transformei reconhecer gente na rua num jogo particular. Tinha umas duas ou três pessoas da academia que deviam morar no meu prédio, porque os rostos delas apareciam direto e eu nunca tinha percebido. Comecei a sacar quais atores apareciam em mais de uma série que eu assisto. Fiquei obcecada com meu próprio reflexo, fascinada por finalmente conseguir me reconhecer até em vidros de janela e tela de celular.
Um dos exercícios do software de reconhecimento de padrões mostrava primeiro um rosto normal, inteiro, depois a mesma cara feita só de pontinhos ou pontinhos e linhas. Parecia aquelas capturas de movimento de filme. Aí eu tinha que achar esse rosto de pontinhos no meio de um monte de outros rostos de pontinhos. Não tô te contando isso porque acho interessante, mas pra explicar por que, na primeira vez que eu vi um rosto solto, eu não fiquei apavorada. Estava numa toalha que eu tinha deixado embolada no chão do banheiro. Já tinha ouvido falar que as pessoas veem formas de rosto em lugar nenhum, mas, talvez por causa da minha prosopagnosia, nunca tinha acontecido comigo.
"Quem é você, hein?", perguntei pra toalha e fiquei olhando com cara de boba antes de decidir que ela provavelmente não devia ficar no chão — com rosto ou sem rosto.
Continuei batendo recorde atrás de recorde no meu app favorito. Um dia mostrei pra minha amiga Lisa.
"Então, ele te mostra esse rosto aqui, ó, depois mostra o mesmo rosto distorcido de algum jeito e você tem que achar ele no meio de um monte de outros distorcidos igual. Nas primeiras fases a mudança era super sutil, a pessoa só passava de cara neutra pra levemente irritada ou virava um pouco a cabeça, mas eu fiquei tão boa que agora ele me dá distorções extremas. Preparada?"
A Lisa ficou mais um segundo decorando o rosto do cara na tela e fez que sim com a cabeça, decidida. Apertei o botão e o rosto normal sumiu, dando lugar a dez rostos ondulados e borrados.
"Espera, quê?", a Lisa gritou. "Não, isso é impossível! Eu não sei. Quatro. Meu chute é o quatro."
"É o sete."
Apertei o rosto número sete e minha escolha ficou contornada de verde — sinal de que acertei.
"Isso é loucura. Você chutou? Ou já tinha feito esse?"
Sorri toda orgulhosa pra ela.
"Nenhum exercício se repete. Eu simplesmente soube."
"Nossa. Acho que não vou mais precisar te proteger de ex namorado pilantra, hein."
Dei de ombros.
"Sei lá… o app melhorou meu reconhecimento facial, mas não melhorou meu gosto pra homem. Aposto que ainda vou namorar uns caras com formas novas e criativas de me foder pra você ter que me salvar."
Como se respondesse a uma discussão que eu nem estava acompanhando, o barman desligou a TV e eu olhei automaticamente pra tela, já pronta pra testar se conseguia identificar algum rosto refletido. Em vez do barman ou dos clientes, eu vi o rosto de uma mulher da academia. O rosto dela estava tão grande na tela que, se fosse um reflexo de verdade, ela teria que estar colada na televisão, tão perto que tampava tudo.
"Tá tudo bem?", a Lisa perguntou.
O rosto na TV já tinha sumido. Eu sabia que as pessoas às vezes viam caras falsas em nuvem e tal, mas não sabia que dava pra ver rostos que não existem com tanto detalhe em superfície lisa. Nem que o rosto podia ser de alguém que você já tinha visto antes.
"Tô de boa", respondi.
Talvez não fosse o mesmo rosto. Meu reconhecimento tinha evoluído muito, mas provavelmente ainda não era perfeito. Provavelmente eu só tinha visto um rosto parecido e achado que era alguém conhecido. Se eu continuasse treinando, esse tipo de coisa ia parar de acontecer.
Da próxima vez foi dentro do ônibus. Eu já tinha chegado no ponto de reconhecer quais rostos ao meu redor eu via todo dia no mesmo horário, mas o rosto que me assustou dessa vez não estava dentro do ônibus. Estava escuro e chovendo lá fora e, no reflexo de uma das janelas, eu vi ele. O Cara da Toalha. O rosto que eu tinha visto pela primeira vez numa toalha amassada no chão do banheiro e agora estava aqui, refletido no vidro. Olhei pro banco onde ele deveria estar sentado: ninguém. Quando voltei a olhar pro reflexo, percebi que eu conseguia ver o rosto dele, mas era só isso. Sem cabelo, sem ombro, sem corpo…
O ônibus parou e eu saí correndo na chuva mesmo estando a meia hora de caminhada do meu ponto. Me senti mal, com ânsia, precisava ficar longe daquele rosto. Pela primeira vez desde que comecei o treinamento, fiz de tudo pra não olhar nenhum reflexo nas vitrines que passei. Fiquei encarando o chão na minha frente e, quando uma sequência de rachaduras no asfalto formou um rosto que eu sabia que era familiar, eu dei um grito. Corri o resto do caminho pra casa e me escondi embaixo do edredom como criança, de olhos bem fechados pra nenhum rosto entrar no meu campo de visão.
No dia seguinte liguei pro trabalho dizendo que estava doente — e não era mentira total. Eu realmente me sentia mal, a boca azeda toda vez que eu pensava demais nos rostos que tinha visto. Por que o Cara da Toalha não tinha corpo? Tinha outra coisa me corroendo, esperando eu perceber. Eu não queria saber, mas meu cérebro perguntou mesmo assim: a mulher que eu vi na TV da academia, será que ela tinha corpo mesmo? Ou eu só a tinha visto refletida em lugares onde ela poderia estar atrás de outras pessoas ou no meio do vapor da sauna? Saí do quarto pra pegar água e fingi que não estava vendo o contorno de um rosto na parede.
Ainda podia ser relativamente normal? Pesquisei “ver rostos onde não deveria” e caí na pareidolia, mas aquilo parecia bem mais leve do que o que eu estava passando. Tentei outras buscas com termos diferentes e o Google sugeriu desde motivo espiritual até esquizofrenia pura e simples.
Só no dia seguinte eu lembrei de procurar o contato dos caras que fizeram o app. Fui abrir o aplicativo pra ver se tinha uma seção “fale conosco”, mas o app inteiro estava em manutenção. Desesperada, resolvi ir até o consultório da minha terapeuta. Cada parte da missão foi um pesadelo. Abri o armário pra pegar roupa: tinha um rosto escondido nas dobras. Procurei a chave na bolsa: tinha um rostinho ali também. Fechei os olhos em boa parte do trajeto de ônibus só pra não ver os rostos sem corpo e, quando cheguei no consultório da Sarah, eu devia estar com uma cara horrível.
"Vou ver se ela pode te atender agora", a recepcionista falou assim que me viu entrar.
A Sarah saiu com cara de preocupada.
"Oi, sou eu, a Sarah."
"Eu sei."
O cabelo dela estava preso e ela usava só camisa, sem suéter nem cardigã. Antes essas mudanças teriam feito dela uma completa estranha pra mim, mas agora não mais. Fomos pro consultório dela.
"O que aconteceu?", ela perguntou.
"É o estudo, eu acho que—"
Parei no meio da frase porque, quando eu disse que o problema era o estudo, a Sarah ficou tão tensa que quase se encolheu. Ela já tinha falado da minha prosopagnosia e da ansiedade que vinha junto com uma cara de paisagem perfeita, mas ela sabia que algo tinha dado errado com o estudo.
"Não sou só eu, né?", perguntei.
"Recentemente apareceram alguns relatos de outros participantes do estudo vendo rostos onde não esperavam. Isso só começou faz muito pouco tempo e, embora pareça assustador, ver um rosto de vez em quando nas sombras pode ser perfeitamente normal. O estudo foi pausado por enquanto e, mesmo quando voltar, ninguém vai te obrigar a continuar se você não quiser."
Queria pedir mais detalhes, queria saber o que fazer, mas vi um rosto nos papéis triturados dentro da lixeira ao lado do pé da Sarah. Eu já tinha visto aquele rosto antes, era familiar. E o pior: os olhos dela se mexeram e olharam direto pra mim.
Saí correndo do consultório apesar dos pedidos da Sarah pra eu esperar e, quando cheguei em casa, apaguei todas as luzes. Enquanto escrevo isso, a luz do celular é a única iluminação no quarto e até isso parece perigoso. Mas eu precisava contar pra alguém o que está acontecendo porque eu não sei o que esses rostos são, mas eles estão em tudo.
E eles sabem que eu consigo vê-los.


0 comentários:
Postar um comentário