sábado, 6 de dezembro de 2025

Listras

Quando eu era mais novo, a hora de dormir sempre foi uma parada difícil e assustadora pra mim. Não era medo do escuro, não – era uma coisa bem mais sinistra, por conta própria.

Minha cabeça de criança sempre botava a culpa nos sonhos ou na minha família zuando comigo. Olhando pra trás, eu me sinto um completo idiota por achar que alguém da família ia se dar ao trabalho de me sacanear tão tarde da noite.

Família, no caso, era só uma pessoa mesmo. Cresci só eu e minha mãe.

Minha mãe era artista – ou pelo menos era louca por coisa artística quando eu era pequeno. Ela curtia especialmente fazer roupa. Por isso, tinha uns manequins espalhados pela casa. Eles ficavam sempre no ateliê dela, onde ela usava pra provar as peças.

Queria que a gente tivesse sacado o que tava rolando bem antes.

Eu tinha pesadelos com frequência. Experiências aterrorizantes que minha mente inventava na hora de dormir. Acho que era por isso que era tão difícil aceitar. Também era o principal motivo de ir pra cama ser um sacrifício daqueles. Até hoje não sei se os primeiros foram realmente pesadelo ou não.

Eu lembro com detalhes das três vezes que aquilo aconteceu.

A primeira vez eu nem liguei muito. Deitei, consegui dormir sem drama. O problema foi continuar dormindo. Primeiro era só escuridão. Aí meus olhos abriram.

Eu tava no meu quarto, ainda na cama. Só que alguma coisa tava diferente. O quarto tava muito mais escuro do que algumas horas antes – normal, quanto mais tarde, mais escuro fica.

Mas não foi isso que me apavorou. O que me fez mergulhar debaixo do cobertor foi uma figura parada bem no meio do quarto. Só conseguia ver porque tinha uns fiapos de luar entrando pelas frestas da persiana.

Olhei pro vulto o tempo suficiente pra sacar uns detalhes da roupa. A pessoa tava completamente imóvel, vestindo o que parecia uma calça social preta e uma camisa branca com listras pretas. Só isso. Não dava pra ver o rosto, e nem precisava. Ficou lá, parada. Eu não consegui gritar – não era que eu tava segurando, eu literalmente não conseguia. Fiquei tão apavorado que só consegui me enfiar no cobertor e esperar aquilo sumir.

Pode ser que eu tenha dormido de novo. Não sei, não lembro direito. Só sei que num momento eu tava escondido e no outro já tava acordando com o quarto todo iluminado pelo sol. A figura tinha sumido, então achei que tinha sido sonho.

Ainda assim fiquei na dúvida, e na hora do café perguntei pra minha mãe.

“Oi, mãe.” Eu falei. “Você… você colocou um dos seus manequins no meu quarto?”

O rosto dela mudou de tranquilo pra nervoso na hora. “O quê? Não, claro que não. Por que tá perguntando isso?”

“Ah, tá bom.” Respondi. “Então deve ter sido sonho.”

“Como assim?” Ela perguntou.

“Tinha uma pessoa no meu quarto, mas eu mal conseguia ver. Quando acordei de vez, não parecia que alguém tinha entrado. Acho que foi sonho.”

“Hmm.” Ela fez. “Que estranho. Qualquer coisa você me avisa, tá?”

“Tá bom.”

Preciso deixar claro: minha mãe nunca foi burra, em tempo nenhum. Ela pensou nas possibilidades. Revistou a casa inteira depois da nossa conversa e não achou nada. Não tinha como ela imaginar que aqueles sonhos, por mais reais que parecessem, podiam não ser só sonhos. Mas eu tô divagando. Não tinha como ninguém ter invadido a casa. Ela até desceu pro porão, inclusive nas partes que a gente evitava entrar. Nada.

O fato de ela não ter encontrado nada torna o que aconteceu depois ainda mais difícil de explicar, mas vou tentar.

O último caso foi mais ou menos uma semana depois do primeiro. Eu tinha acabado de pegar no sono e tava até sonhando uma coisa boa quando fui interrompido.

Dessa vez teve barulho de verdade. Acordei com o som do meu despertador caindo da cômoda e se espatifando no chão. Eu tinha certeza que tinha deixado ele bem longe da borda, mas vai que eu errei. Achando que tinha sido descuido meu, levantei um pouco o cobertor e me inclinei pra pegar.

Recuei horrorizado. Ali, saindo um pouco debaixo da minha cama, tinha um braço. Não era braço cortado, não – tava claramente ligado a alguém. O despertador não tinha caído perto da mão, então não dava pra ver direito, mas já saquei que era a mesma situação da semana anterior.

A luzinha do despertador mostrou que o braço era da mesma figura. Mesma camisa branca com listras pretas. Eu voltei pra trás na hora e me enterrei de novo no cobertor. Fechei os olhos com força. De algum jeito, mesmo com o pavor absoluto de ver aquela mesma coisa debaixo da minha cama, eu consegui dormir.

Na manhã seguinte, minha mãe tava puta da vida. Desci pro café já me preparando pra contar o que eu achava que podia ter sido sonho de novo. Ela tava de mau humor pra caralho. Pelo visto algum bicho tinha mexido lá fora e quebrado uma das janelas que davam pro porão.

Ela tava resmungando duas coisas. Primeiro: que o bicho que quebrou a janela ainda podia tá lá dentro. Quando ela foi ver, umas coisas tinham sido mexidas, principalmente perto daquela área escura tipo um vão de engatinhar. Segundo: como diabos ela ia pagar pra consertar a porra da janela. Eu e ela descobrimos que ela não ia precisar se preocupar com isso quando eu tentei falar com ela.

“Que foi?!” Ela cortou.

“Eu… hm.” Gaguejei.

“Desculpa.” Ela disse. “Tô só puta com essa janela. O que você queria me contar?”

“Eu vi de novo.” Falei. “A figura. Acho que eu tava sonhando?”

“Você sonha muito com isso.” Ela disse. “Lembra de algum detalhe?”

“Tava usando uma daquelas camisas listradas que você fez.” Respondi.

O rosto da minha mãe congelou. Ela ficou quieta um tempo. Quando falou, foi sério pra caralho. Me pegou pela mão e fomos direto pra porta de entrada. Enquanto eu calçava o tênis, perguntei:

“Por que você tá nervosa?”

Ela só respondeu quando já tava dentro do carro e ligando o motor. Olhou pra mim com aquele tom grave:

“Eu não fiz isso. Eu nunca fiz camisa listrada.”

Nós mudamos naquele mesmo dia.

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