Tudo começou quando a gente decidiu marcar essa escapadinha. A gente falava nisso fazia tempo e, com o trampo dos dois ficando uma merda e a vida em geral pesando, pegamos uma grana que tínhamos guardado e alugamos uma cabana no Lake District por um feriadão: sexta até segunda.
No dia antes de viajar, reparei que a Emma não tava bem. Ela disse que não era nada físico, só uma sensação estranha. Pelo jeito que ela descreveu, pra mim parecia nervosismo misturado com pavor. Ofereci pra adiar ou até cancelar tudo, mas ela bateu o pé que a gente ia mesmo. Beleza, partiu.
Chegamos na cabaninha por volta das cinco da tarde. Logo de cara já senti uma mudança na Emma: quanto mais a gente se aproximava, menos ela falava. Quando entramos, ela nem comentou nada sobre o lugar. A casa mais próxima ficava a pelo menos um quilômetro e meio do outro lado do lago, bem do jeito que eu planejei pra ela, porque no trabalho dela ela lida com um monte de idiota e eu achei que ficar totalmente isolada ia fazer bem. Mas nem um “nossa, que lindo” saiu da boca dela.
Conforme a noite foi caindo, fizemos janta. Tentei puxar papo, mas ela tava monossilábica. Achei que era cansaço da viagem e aquele mal-estar que ela tava sentindo. Coloquei os pratos na sala pra gente comer na frente da lareira. Quando botei os pratos na mesinha, percebi que ela não tava mais atrás de mim. Um segundo antes ela tava ali, carregando as bebidas. Olhei pro corredor que levava pra cozinha: escuridão total. Cadê ela?
“Amor?” chamei, esperando um “esqueci o celular na cozinha” ou qualquer coisa normal. Nada. Só o silêncio sinistro e o estalo da lenha queimando.
Não era o fim do mundo, sentei e comecei a procurar um filme pra gente ver enquanto comia. Passaram uns cinco minutos, zero barulho na casa inteira. Chamei de novo: nada. Fiquei prestando atenção em porta fechando, descarga, qualquer coisa. Até que ouvi um rangido lento e calculado bem atrás do sofá onde eu tava sentado. Impossível ela ter chegado ali sem passar do meu lado direito, que era o corredor da cozinha, ou sem eu ver ela indo pro quarto, que ficava exatamente atrás de mim.
Desliguei a TV na hora pra ouvir melhor. E gelei. No reflexo da tela preta eu vi minha namorada: cabelo pingando, roupa rasgada e encharcada, sorrindo feito psicopata a menos de 30 cm das minhas costas. Pulei do sofá e me virei: ninguém. Nem poça no chão, nada. Mas os rangidos continuavam, como se ela ainda estivesse ali, só que eu não conseguia ver.
Fiquei encarando o corredor do quarto sem piscar, esperando outro rangido pra localizar o que quer que fosse aquilo.
“Ei amor, tá tudo bem?” uma voz veio do meu lado esquerdo. Eu dei um grito e quase derrubei a comida toda.
“Porra, que susto! Parece que você viu um fantasma”, ela falou rindo de leve.
“Que porra, de onde você saiu?”
“Tive que fazer xixi, posso?” respondeu sarcástica.
Tentei controlar a respiração e sentei do lado dela, que agora tava preocupada de verdade.
“O que aconteceu?”
“Achei que vi… alguém no reflexo da TV.”
“Tem certeza? Não era o cabideiro do lado da porta? Quantas taças de vinho você já tomou mesmo?”
Fiquei na dúvida, mas concordei. Vai ver minha cabeça tava zuando comigo porque eu já tava meio tenso. Só queria esquecer essa parada estranha. Assistimos TV, mas eu não conseguia parar de sentir que tava sendo observado. De vez em quando ouvia um pingo bem fraquinho, tipo água caindo no chão de madeira logo atrás de mim.
Na hora de dormir eu ainda tava meio cagado. Quis falar sobre aquilo, mas como que eu ia dizer “ei amor, por que você apareceu feita uma doida no reflexo da TV e depois teleportou?”. Sempre acreditei pra caralho em fantasma e coisa do tipo, a Emma não. Não queria virar piada, porque realmente parecia loucura.
A noite foi tranquila, uns barulhinhos na casa escura que dava pra explicar, nada demais. Talvez eu não tivesse visto mesmo o que achei que vi e a cabana não fosse mal-assombrada pra cacete. Com esse pensamento fechei os olhos e dormi.
Sonhei pesado com o lago: eu e a Emma fazendo piquenique na beira, sol brilhando, passarinho cantando, cena perfeita. A gente levantou e correu pra margem. Olhei pra baixo, ri das ondulações que deixavam a gente parecendo estranho na água.
A água acalmou. Foquei no reflexo da Emma. Ela tava com um sorriso assustadoramente largo, e a cabeça girou pra me encarar enquanto o corpo continuava de frente. Levantei o olhar rápido pra cara dela de verdade: tava tranquila, olhando o horizonte. O oposto total do que eu tinha acabado de ver no reflexo. Acordei na hora, olhei pro lado: ela dormindo, roncando do mesmo jeitinho de sempre. Soltei o ar e tentei voltar a dormir, torcendo pra sonhar menos fudido dessa vez.
No dia seguinte parecia que nada tinha acontecido. Caminhamos, rimos, curtimos pra caralho. Teve umas duas vezes que peguei ela olhando pro nada, sussurrando coisas, mas quando eu falava com ela ou quando percebia que eu tava olhando, voltava ao normal. À noite, porém, não sei pra onde minha namorada foi nem o que tava no lugar dela.
Cozinhamos, jantamos, vimos TV, tomamos banho, fomos pra cama. Tudo normal… até a hora de dormir. Ela já tava de lado, começando aqueles roncos leves. Mas eu não conseguia me sentir seguro. Uma intuição fudida gritando que eu não devia dormir, que não era seguro. Sei lá o que me deu, resolvi descer pra sala e ler uma hora mais ou menos, no escuro, sozinho. Nem eu me acho tão esperto assim, mas foi o que eu fiz.
Nem vi o tempo passar: já tava na poltrona marrom grandona, de costas pra parede da TV, encarando o corredor do quarto, com o corredor da cozinha do lado esquerdo. O livro tampava quase toda a minha visão periférica. Devia ter uns 15 minutos que eu tava lendo quando ouvi um “Ei” seco e rápido no meu ouvido esquerdo.
Bati o livro na mesa e virei pra todos os lados. Tinha uma luminária fraquinha do lado, a luz não chegava no fundo dos corredores, mas não importava: a voz veio a centímetros do meu ouvido. Fiquei meio tenso, mas ignorei. Vai ver era tipo quando você tá de fone e acha que alguém te chamou. Voltei a ler.
Quinze minutos depois: outro “Ei” seco, agora no ouvido direito. Reagi rápido, olhei tudo. Juro que vi um vulto sumindo no corredor. Sussurrei o nome da Emma caso fosse ela, sem resposta. Esperei mais um pouco e decidi subir pra dormir. Quando tava dobrando o cobertor, veio um “EI!” mais alto e puto. Dessa vez não tinha como ser imaginação: era voz real, senti até o hálito gelado e podre na minha pele.
Virei esperando ver alguém, um ladrão, ou a Emma fazendo pegadinha (o que seria muito fora do normal dela). Nada. Espaço vazio e mal iluminado. Apertei o passo pro quarto, pelo menos lá eu não ficava sozinho. Quase chegando, olhei pra trás, devia ter deixado quieto.
Vi um vulto se escondendo rápido atrás da cortina. Não deu pra não ver o cabelo castanho avermelhado comprido que ficou pra fora. Quase ri de nervoso: era a Emma, óbvio, tentando me assustar pra se vingar daquela vez que eu pulei nela. Fui abrir a porta do quarto pra fingir que entrei e pegar ela desprevenida atrás da cortina, mas antes que eu conseguisse, vi pelo canto do olho.
Minha namorada dormindo exatamente na mesma posição e ritmo de antes.
O mundo parou. O que caralhos tava atrás daquela cortina?
Entrei no quarto, tranquei a porta e tentei bolar um plano. Acordei a Emma, expliquei o que vi. Ela apontou pro taco de beisebol do lado da porta e fomos conferir. Claro, não tinha porra nenhuma. De novo me convenceram que eu vejo filme de terror demais.
Ela tava morta de sono e não acreditou em nada, voltamos pra cama. Consegui dormir eventualmente, com um braço pra fora da cama segurando firme o taco.
O sono daquela noite foi uma bosta: pesadelo atrás de pesadelo, tudo muito louco e sem sentido, menos um. No sonho eu acordava, Emma não tava do meu lado. Calçava o chinelo e saía procurando. Ouvi arranhões na parede, segui o barulho e achei a Emma, ou o que tentava ser ela, agachada no canto, estalando o corpo inteiro enquanto se contorcia. Pus a mão no ombro dela, ela virou rápido e cravou uma faca na minha costela. O sorriso não vacilou, só cresceu. Enquanto eu caía no chão apertando o ferimento, ela sussurrou “não sai da cama”. Acordei, já era manhã.
Acordei moído, sem dormir direito e, pra ser honesto, puto. Eu nunca menosprezaria um medo da Emma, e ela fez exatamente isso comigo. No café da manhã fiquei quieto, sem falar nada. Ela percebeu que me chateou, eu me senti culpado, mas precisava ser assim por enquanto.
Umas horas depois ela falou que tinha uma surpresa. Fui atrás dela até a beira do lago: um piquenique montado. Me fez sorrir.
Lá tava minha Emma de volta, sorrindo doce com o sol batendo no rosto. Sentamos, comemos, conversamos, parecia que um peso tinha saído das costas. Não sei o que tava causando esses sonhos e possíveis alucinações, mas ia marcar médico quando voltasse. Ficamos ali um tempo até que um enxame de moscas começou a rodear a cabeça dela. Ela tentou espantar rindo, mas acabou correndo com uma risadinha.
Era estranho pra caralho a quantidade de mosca, mas eu ri e corri atrás até a gente parar bem na beirada da água. Ela tirou umas folhas do corpo, elas caíram na água e fizeram ondulações. Olhei pra baixo, achei graça de como a gente ficava distorcido. E aí me caiu a ficha: era exatamente o meu sonho. A memória tava meio embaçada do que vinha depois, mas senti um déjà vu misturado com pavor.
Quando a água acalmou, levantei o olhar pra minha namorada, admirando o quanto ela era linda olhando a paisagem. Sorri pensando na sorte que eu tinha e olhei de novo pra baixo.
O sorriso sumiu da minha cara na hora. No reflexo, a Emma tava com aquele sorriso escancarado e a cabeça virada pra me encarar. Soltei um grito de terror e andei pra trás até aquela coisa sumir da minha vista. Virei e corri pra casa desesperado, querendo distância da Emma e seja lá o que tava fingindo ser ela. Sem saber qual das duas era real.
Claro que ela veio atrás tentando me acalmar. Mal conseguia falar direito antes de ver ela revirando os olhos. Já tava enchendo o saco. Falei firme que a gente ia embora agora, mas ela veio com um monte de motivo do porquê aquilo era importante pra ela, que a gente precisava desse descanso. Tentei argumentar, ela disse que não era real, que era só coincidência.
Eu tava quase acreditando quando olhei pra baixo e vi as unhas dela pretas, mortas, cabelo seco e quebrando, totalmente o oposto de como ela sempre cuida. Era ela, mas não era. Parecia uma gêmea que tinha vivido no escuro a vida inteira. Sabia que a gente precisava dar o fora dali rápido, mas não conseguia convencer ela. Tinha medo que o que quer que tivesse se alojado na minha namorada fizesse alguma merda e machucasse ela de verdade. Cedo pro dia seguinte de manhã, só precisava aguentar mais uma noite.
Fui dormir apavorado, com medo pela minha namorada e muito medo dela. Sabia que a Emma de verdade ainda tava ali dentro, então tentei ter paciência e tirar a gente dali o mais rápido possível sem acionar nada. De tanto cansaço, apaguei.
Acordei de repente, como se alguém tivesse jogado um balde d’água em mim. Emma não tava do meu lado. Talvez tivesse sede ou foi pegar algo pra comer, ela mal comeu desde que chegamos. Levantei pra ir atrás e ver se tava tudo bem. Quando fui calçar o chinelo, lembrei do dia: tinha sido idêntico ao sonho. Não tinha como ser coincidência.
O sonho que eu tive se realizou. Um pensamento me acertou: o sonho da noite anterior. Gele. Voltou tudo: eu acordando, Emma sumida, procurando, os arranhões, ela agachada, a facada. A memória me acertou como um tijolo, quase fiquei tonto. Levantei devagar, fui até a porta e girei a maçaneta.
Não tem como isso tá acontecendo. Meus sonhos não viram realidade, né? Impossível. Aconteceu uma vez, talvez não aconteça de novo. Mas eu precisava ter certeza que minha Emma tava bem.
Dei uns passos no corredor, respiração curta e acelerada, repetindo pra mim mesmo que não podia ser real. Virei a esquina e ouvi um barulhinho fraco. Forcei o ouvido: foi ficando mais alto, mais alto, até não ter mais dúvida.
Era arranhado.
Na parede.


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