Uma vez, um desses meninos voltou já crescido e me perguntou por que os pais dele tinham me arrancado dali tão depressa e nunca mais deixaram ele voltar pra me ver. Eu contei o que já contei pra você e o que vou contar agora:
Tem um pintor morto no meu quintal. Você pisou na sepultura dele sem querer, e o pintor nunca quis que ninguém fizesse isso. Ele mesmo fez a própria cova e o próprio túmulo: moldou uma torre alta com as próprias tintas e pincéis, uma espécie de obelisco que sai do chão. Depois cavou um buracão na frente, deitou lá dentro e se matou. Aquela torre é frágil pra caralho – aguenta tempestade, mas quebra fácil no toque de gente, não importa o quanto você chegue de mansinho.
Naquele fim de semana, o fim de semana que ele se enterrou, caiu o maior temporal. A chuva e a terra que ele tinha jogado pros lados da cova cobriram o corpo dele. Tinham duas montanhas de terra – uma do lado direito, outra na lateral – pra dar conta dos quase dois metros de profundidade que ele tirou pra fazer a própria porta pro inferno. Dois metros em dois montes. Cada um parecia ter mais de um metro de altura; pareciam uns quatro pés gorduchos.
O pintor já tava morto há quatro dias. O corpo já tinha virado uma massa podre, pele solta, que derreteu e virou um caldo viscoso quando a chuva bateu. Quando a terra finalmente cobriu tudo, só as pernas dele – ainda dentro daquelas calças marrom chiques – não tinham perdido a pele e virado esqueleto. Ninguém sabia do cadáver no quintal – que hoje é meu, exceto a mãe dele. Ela viu o filho morto dentro do buraco e perdeu o juízo de vez. Nunca mais conseguiu voltar lá fora pra enterrar o menino direito. Fui eu mesmo que mandei a coitada pro sanatório lá perto do porto. Presa atrás de paredes brancas, ela deixou Deus e a Mãe Natureza fazerem o que ela, louca, não conseguia: enterrar o filho.
Quando chegou a hora de passar a casa adiante (casa vazia vira fantasma perfeito, né?), eu comprei da mãe dele por uma mixaria, uns trocados que pra ela não valiam nada, mas que pra mim abriram um rombo considerável na conta. Depois disso, fiz a coisa mais humana possível: gerei cinco filhos dentro dessa casa, cada um com uma esposa diferente. Nenhum deles – nem filhos, nem esposas – ficou muito tempo depois de eu soltar o clássico: “Querida, a gente tem um pintor morto no quintal.” Não vejo as crianças que elas levaram embora há até vinte e dois anos. A vida deles já tá longe demais pra ser minha de novo.
Nunca fui lá fora desenterrar aquele morrinho que hoje incha de leve no meu quintal, meter pá naquele montinho que brotou perto do meu canteiro de petúnias, como se a Terra tivesse criado uma espinha baixa no meio da barba rala. Não é alto o suficiente pra me dar trabalho de aplainar, mas incomoda o bastante pra eu tropeçar e cair toda vez que os anos vão matando meus ossos. O pintor era meu amigo; eu gostava mais dele que o próprio pai, aquele filho da puta que fez dele um bastardo. Enfim, eu já morri o suficiente pra não conseguir fazer mais nada sozinho, preciso de ajuda contratada, porque aquele buraco financeiro ainda não fechou, ainda sangra.
Olha lá pra torre. Tá desbotada, as cores agora cinza e mortas, lá na beira das árvores. Ainda é visível pra quem tem um pé no passado e força um pouco a vista: destaca contra a casca escura. Debaixo dela, um metro à frente, estão os restos do pintor morto. Do meu amigo morto. Acho que se você cavar vai achar os ossos dele lá, e a terra toda em volta vai estar impregnada da tinta que ele engoliu pra se matar. Quando eu morrer, você pode desenterrar ele se quiser; eu me arrependo tanto de não ter enterrado direito que jamais desenterraria de propósito, não enquanto ainda tiver um fiapo de moral me guiando.
Quando eu largar essa casa, só você vai poder decidir pelo meu amigo pintor: deixa ele em paz ou faz a coisa certa – acorda ele, invade a casa dele, dá o enterro decente que Deus manda, mesmo depois de cinquenta anos de sono? Pra mim, pensa se quiser, mas nunca faça. Se bater aquela vontade louca, vai lá e finca uma placa no chão, enfia uma faca na porta dele. Ou passa tinta por cima do nome desbotado que ele mesmo pintou na torre, na frente e atrás, se quiser desrespeitar a obra-prima do cara. Repinta essa casa, pinta meu caixão de vermelho antes de pintar de azul, mas nunca passe por cima da assinatura de um artista. Deixa ela gritar o próprio valor, e deixa o valor gritar por ela. Se tiver valor, fica e continua de olho na gente. Se não tiver… bom, acho que você é esperto o suficiente pra descobrir o que acontece.
E quando me enterrarem, me enterra bem longe do meu amigo, do lado da minha mãe, nunca do meu pai ou dos meus filhos. Os dois viveram vidas que eu não quero mais saber e não sou mais obrigado a conhecer. No céu, eu ainda quero deitar a cabeça no colo da minha mãe e soltar setenta anos de suspiro. Não sei o que levou meu amigo a se matar. Não quero encontrar ele lá em cima. Quero só a torre dele e a lembrança – nunca, jamais, a verdade que gerou as duas coisas.


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