terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Matador de Vampiros

Ele era só um cara. Um cara comum. Você provavelmente nem notaria se cruzasse com ele na rua.

Mas quando eu olhava pra ele, via um anjo. Uma fruta doce que Deus fez só pra mim. Ele tinha aquele tipo de calor que fazia todo mundo se sentir confortável e seguro só de entrar no ambiente. Ser hipnotizado por aqueles olhos azuis macios era tipo flutuar numa piscina quentinha cheia de lontras fofinhas enquanto te servem bolo e sorvete no seu aniversário. Cada pessoa se sentia o centro do universo dele quando ele tava por perto, e parecia tão fácil pra ele ser adorado.

Por isso eu mereço o que aconteceu comigo depois que eu matei ele.

Eu simplesmente não consegui me segurar. Essa raça sempre foi a minha favorita. Toda aquela energia altruísta que o mundo não valoriza deixa a pessoa desesperada pra alguém notar, morrendo de vontade de ser abraçada, implorando por um momento de paz. O sangue praticamente desce sozinho pela sua garganta quando você morde, e aí irradia uma sensação profunda de conforto e calor por cada artéria e sinapse do seu corpo durante dias enquanto você digere todo aquele bem e amor que todo mundo menosprezava.

Ele não viu chegar. Nunca veem. Na real, ele devia ter me agradecido: dei muito mais tempo pra ele do que pra qualquer outro. Ele me entretinha, era engraçado, fofo, e eu simplesmente perdi a noção do tempo. Que porra é um ano ou três quando você já não conta mais os séculos? Era gostoso demais ficar perto dele, tão cheio daquele calor delícia que eu sentia pulsar só de estar do lado, e o toque aveludado dele fazia minha pele arrepiar com uma eletricidade do caralho.

Olhando pra trás, não sei por que eu não deixei isso ser suficiente. Se eu conseguia viver assim com ele, por que caralhos eu precisei querer mais? Eu nem tava com fome. Eu tava feliz. Acho que ele também tava. Não precisava ter terminado assim.

Era nosso aniversário de namoro e a gente tinha ido no restaurante que ele me levou no primeiro encontro. Ver o pôr do sol refletido nos olhos dele enchia tanto a minha alma que parecia que eu tava transbordando, e eu simplesmente não aguentei a ideia de outra pessoa ver aqueles olhos lindos ou desperdiçar o calor da presença dele. Só a risada dele já levantava qualquer festa, e de repente eu senti náusea só de pensar que outra pessoa pudesse sentir o que eu sentia. Nenhum deles ia valorizar a essência dele do jeito que eu valorizo.

Foi tipo instinto. Uma outra fera saiu pra caçar. Eu vi a forma que a garçonete ajeitou o cabelo atrás da orelha e sorriu pra ele quando pediu nossas bebidas. A vadia chorou, gritou e tentou desesperadamente me enganar quando eu peguei ela no beco na hora do intervalo. “Eu tô só fazendo meu trabalho! Homem dá gorjeta melhor se você flerta!”. Puta não me enganava. Eu ainda sentia o calor dele grudado na mente dela.

Eu tinha passado tanto tempo focada só nele que devia ter esquecido como era sangue bom de verdade, porque não consegui me parar enquanto eu me empanturrava daquele pescoço com gosto de mentol. Ou talvez eu só estivesse desesperada pra sentir uma migalinha patética do calor dele nela…

Mas ela só me deixou vazia…

Toda aquela energia dourada que eu tava transbordando sumiu e eu tava lá, coberta de sangue, sozinha no beco atrás de um restaurante caro, segurando o corpo mole do que um dia foi uma garçonete. Nem senti o estalo quando o pescoço dela quebrou. Não era tão bruta com comida desde criança. Que vergonha. Levantei uma tampa de bueiro e joguei ela no esgoto com um barulho molhado. Problema de outro agora.

Não podia deixar ele me ver assim, então mandei mensagem dizendo que passei mal e peguei um táxi pra casa. O motorista perguntou se a festa à fantasia tinha sido boa e eu só balancei a cabeça quietinha. Ainda bem que nem todo mundo sente cheiro de sangue, porque o último abate ainda tava me dando náusea e eu não tava afim de papo. Só queria chegar em casa e ficar de boa.

Tirei o vestido grudento e joguei na lareira, depois entrei no chuveiro. Fiquei hipnotizada vendo os riscos vermelho-vivo do que sobrou da garçonete rodopiarem pelo ralo. Parecia estranho, como se faltasse um pedaço de mim. Aumentei a temperatura da água, mas continuava com frio. Parecia que eu ainda tava com saudade de casa mesmo estando no meu próprio chuveiro quente do caralho.

Desde quando alimentar dá nojo? Me forcei a vomitar a garçonete inteira de medo que ela tivesse câncer no sangue. Sinceramente nem acho que isso me machucaria, mas eu precisava tentar alguma coisa. Por que ela me deixou tão vazia? Ela nem valia toda essa angústia. Mesmo depois de lavar tudo ralo abaixo, eu ainda me sentia vazia.

Me arrastei pra cama, puxei o cobertor por cima da cabeça e… chorei. Não sabia se era de verdade ou se eu só tava imitando algo que vi humano fazer até não conseguir mais parar. Me contorcendo e vomitando, me encolhi e chorei rios por o que pareceram séculos até que ouvi a fechadura da porta da frente abrir e o calor voltou a inundar a casa.

As mãos dele ainda estavam geladas do ar de inverno, mas o toque gentil dele parecia um bote salva-vidas no meio da tempestade. Puxei ele pra cima de mim, ainda molhada das lágrimas e do chuveiro, e apertei ele nos meus braços mais forte do que ele provavelmente imaginava que eu era capaz. Ele olhou pra mim com aqueles olhos cheios de empatia e soltou um “aconteceu alguma coisa?” enquanto eu espremia o ar dos pulmõezinhos dele.

Afrouxei um pouco e empurrei a cabeça dele pro meu peito. “Não”, falei docinho enquanto acariciava, “só passei mal, mas quando saí senti sua falta. Fiquei mal por te deixar lá.”

“Que pena que você passou tão mal. A gente tava animado pra hoje.” Ele deu um beijinho suave na minha clavícula e eu beijei a testa dele e cheirei o cabelo. “Que tal a gente remarcar pra semana que vem quando você estiver melhor?” Eu assenti com os lábios ainda grudados na cabeça dele e dei um suspiro fundo enquanto sentia a tensão do meu corpo se dissolver.

“Você tá sentindo algum cheiro?” ele perguntou. Meus olhos se arregalaram. Terror. Aquele frio, aquele nojo. “Tipo moeda molhada e… mentol?”

Eu não lembro o que aconteceu depois, só lembro de me sentir sozinha e com saudade de casa na minha cama, segurando desesperadamente as pálpebras abertas de um corpo mole pra ver mais uma vez aqueles olhos que me enchiam de felicidade. Ele deve ter visto o choque no meu rosto quando eu percebi o que tinha feito, porque o rosto ensanguentado dele se contorceu numa olhar de compaixão olhando pra mim enquanto soltava um último suspiro molhado e sussurrava “Te vejo… logo…”

Ele não fazia ideia do que tava falando. Não podia fazer. Não tinha como ele saber o quão especial ele era. Gerações sendo presa tinham virado o jogo de um jeito que nenhum de nós dois esperava.

Não era pra ter sido assim. Tudo errado. Eu bebi a essência dourada desse homem. Eu era pra estar radiante agora. Transbordando, porra! Não lembro o momento que engoli ele, mas ainda sentia o gosto puro dele nos meus lábios e eu só… me sentia… VAZIA…

Ele ainda tava aqui. Cada pedacinho dele ainda tava nesse quarto, mas ele tinha ido embora e toda cor tinha sido sugada do mundo junto com ele.

Em algum momento eu levantei e carreguei ele pro banheiro. Nunca tinha me incomodado com aquela sensação esquisita de cadáver, mas não podia deixar ele daquele jeito. Lavei o sangue dele, embrulhei no cobertor e coloquei na cama. Queria que ele parecesse em paz, mas não conseguia fazer aquela cara dele fazer o que fazia quando encostava a cabeça no meu peito e dormia. Agora ele só parecia um boneco, um casco que eu vesti com as roupas dele e coloquei na cama dele.

Chorei pela segunda vez na minha vida infinita enquanto via nossa casa queimar. Inúmeros caras que engoli desse jeito e nunca tinha ficado pra essa parte; nunca senti necessidade de me despedir. Fiquei lá no frio vendo os humanos lidarem com aquilo até nossa casa virar só um monte de lembranças e sangue fumegante.

Não tentei me alimentar de novo por um tempão. Só de pensar dava nojo até a fome ficar insuportável e eu não conseguir pensar em outra coisa além da necessidade desesperada de consumir o calor de outra pessoa. É Dia dos Namorados e eu tô vendo um casal ficar noivo na praia de cima do penhasco. Minha barriga ronca e eu consigo imaginar a felicidade nos olhos dela e como ele colocou aquilo lá, mas quando desço até lá, a cena não é nem um pouco o que eu imaginei… Ela tá grávida e ele fede a suor de outra mulher. Esse tipo de felicidade é passageira. É mentira que ele conta pra ela pra se alimentar do calor dela.

Talvez eu consiga um gostinho desse calor se eu tirar ela desse sofrimento. Posso confortar ela enquanto ela desliza suavemente pra dentro de mim. Ela nunca vai precisar saber quanta misericórdia eu tô dando. Dei um passo na direção deles e de repente, como se um véu fosse levantado, senti o abraço dele por trás e congelei. O casal, perdido na própria bolha, nem me notou enquanto eu ficava lá parada feito estátua assistindo o momento deles.

Faziam anos que eu não sentia esse abraço, mas eu sabia que era dele, quente e confortador, em lugar nenhum e em todos ao mesmo tempo. Braços de ar. Braços de nada. Braços de calor e alegria. Eu sentia eles me envolvendo, firmes e fortes como eu lembrava, mas ao mesmo tempo eu sabia que eu tava completamente livre. Eu podia dar um passo à frente. Podia me alimentar desse casal. Podia sentir o calor passageiro deles…

Mas aí eu ia ter que sair desses braços…

Fiquei lá no ar gelado de fevereiro, perdida no tempo como uma memória que nunca aconteceu. Ele me segurou por horas e ninguém prestou atenção. O casal foi embora. Outras pessoas passaram. O sol se pôs, o sol nasceu. Não sei quanto tempo, mas quando acabou, eu não sentia mais fome. Fria de novo, mas não com fome.

Depois disso a cor voltou pro mundo. Não em todo lugar, não como antes, mas eu conseguia ver lampejos de vez em quando. Segui a cor até um parque uns dias depois e só fiquei sentada vendo as crianças meio que brilharem enquanto brincavam. É difícil explicar o que meus olhos viam, mas parecia quente e pela primeira vez na vida eu só queria que aquele calor ficasse onde tava pra eu poder admirar um pouco. Enquanto durasse.

Um aniversário. Um piquenique. Uma pega-pega. Memórias essenciais sendo formadas bem na minha frente. Pequenos vaga-lumes de cor num mar de sépia.

Aí um brilhozinho desceu de algum lugar e pousou na minha palma. Formigava de calor e eu fechei as mãos em volta dele e deixei irradiar pra dentro de mim. Sem palavras ele me disse e eu entendi que eu precisava levantar e ele me puxou pelo canto do abrigo de beisebol e foi aí que eu cruzei o olhar com alguém. Um cara baixinho e peludo em todos os lugares errados, tipo um dedo do pé com unha encravada. Ele segurava um pedacinho de calor tão apertado no punho que os nós dos dedos tavam brancos. O que eu vi nos olhos dele era menos que nada, um vazio que nunca ia ser preenchido exigindo calor mas nunca dando.

Ele ainda tinha aquele sorriso louco de quem achou que o plano deu certo até eu quebrar o pulso dele. A menininha perguntou se ele tava bem e eu sorri com carinho e falei que só precisava dar uma injeção no meu tio porque ele não podia sair do hospital e mandei ela voltar pra mãe.

Arrastei o cara-dedo-do-pé até a van branca feia dele, joguei no fundo e rasguei o motor com as mãos. Talvez eu devesse ter matado ele, mas eu sabia que isso não ia me aquecer. Só deixei ele lá largado, ferido e coberto de merda dele mesmo.

Naquela noite senti ele me abraçando de conchinha. Foi fraco, mas eu sabia que era ele. Um sonho de um abraço de conchinha, mas pela primeira vez dormi como eu dormia nos braços dele antigamente. Quando acordei não sentia mais ele, mas não tinha como confundir.

Levou tempo, mas a gente descobriu juntos. O corpo dele morreu, mas ele ainda tá aqui, grudado dentro de mim, me mostrando a luz. A gente se fala por sensações e cutucadas, calor e cor. Não escuto a voz dele, mas sei que é ele de verdade, consciente, vivo e me guiando. Agora eu honro a memória dele sendo a pessoa que ele via em mim, a pessoa que ele tava olhando quando eu tava focada no pôr do sol refletido nos olhos dele.

Milhares de anos de evolução finalmente ensinaram um humano a matar vampiro; só queria que ele não tivesse precisado morrer pra fazer isso.

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Escritor do gênero do Terror e Poeta, Autista de Suporte 2 e apaixonado por Pokémon