segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Eu monitoro câmeras de segurança pra viver. Uma delas tá me mostrando agora mesmo

Trabalho pra uma empresa de monitoramento de segurança. A gente vigia os feeds de pequenos negócios. Postos de gasolina, depósitos, estacionamentos cobertos. Lugares muito pão-duros pra contratar seguranças de verdade.

Meu trampo é ficar sentado numa sala sem janela olhando pra doze monitores. Cada monitor vai rodando os feeds de clientes diferentes. Se eu vejo algo que merece ser reportado — roubo, vandalismo ou alguém desmaiado no banheiro —, corto o vídeo e mando pro cliente. Do contrário, só fico olhando.

Pego o turno da madrugada, das 23h às 7h. Quatro noites por semana. O salário é uma merda, mas dá pra fazer lição de casa entre os incidentes e ninguém me enche o saco.

No mês passado comecei a ver coisas nos feeds que não faziam sentido nenhum.

Coisas pequenas no começo. Uma câmera dava um glitch, mostrava estática por uns segundos e voltava. Ou o timestamp pulava pra frente, perdia uns minutos como se tivesse um buraco na gravação. Comentei com minha supervisora e ela disse que o sistema era velho, provavelmente HDs corrompidos. Mandou eu registrar os glitches e continuar trabalhando.

Os glitches pioraram.

As câmeras cortavam pra feeds que não estavam na rotação. Eu tava vendo o estacionamento quando a tela piscava e de repente eu tava olhando pra outro lugar. Corredores vazios. Escadas. Salas que eu não reconhecia. Depois piscava de novo e voltava pro feed normal.

Comecei a anotar todas as anomalias. Horários, locais, duração. Em duas semanas eu tinha trinta e sete incidentes. Nenhum padrão que eu conseguisse enxergar. Câmeras diferentes, horários diferentes, sempre rápidos. Nunca mais de dez segundos.

Aí eu me vi.

Era 3h47 de uma terça-feira. Eu tava vendo o feed de uma lavanderia 24 horas. A câmera aponta pra porta da frente e pra fileira de máquinas de lavar junto à vitrine.

A tela piscou. A imagem mudou.

Eu tava olhando pra uma cozinha. Pequena, antiquada. Piso de linóleo, armários brancos, luminária fluorescente. Uma mulher estava de costas pro balcão, despejando algo de uma panela num pote.

A mulher se virou.

Era eu.

Mesmo rosto. Mesmo cabelo. Mesma cicatriz na sobrancelha esquerda de quando bati a cabeça num balanço na terceira série. Ela olhou direto pra câmera por uns dois segundos, depois o feed voltou pra lavanderia.

Fiquei ali parado, olhando pro monitor. Minhas mãos tremiam.

Voltei o vídeo. Assisti de novo. Com certeza era eu. Com certeza uma cozinha que eu nunca tinha visto. O timestamp marcava 3h47, igual ao horário atual, mas a data estava errada. Mostrava uma data três dias no futuro.

Cortei o vídeo e salvei no meu drive pessoal.

Não contei pra supervisora. Fui pra casa quando o turno acabou e tentei dormir, mas ficava vendo aquela cozinha. Os armários brancos. A luz fluorescente. Eu nunca tinha estado naquela sala. Tinha certeza.

Mas a pessoa no vídeo era eu.

Na noite seguinte vigiei os monitores com mais atenção. Peguei um caderno e anotei toda vez que um feed deu glitch. A maioria era igual aos anteriores. Lugares aleatórios, flashes rápidos, nada identificável.

Às 2h18 vi a cozinha de novo.

Mesma sala. Mesmo ângulo de câmera. Dessa vez a cozinha estava vazia. Só o balcão, os armários, a luz. O vídeo rodou por seis segundos e cortou de volta pro posto de gasolina que eu devia estar vigiando.

Confiri o timestamp. Horário atual, mas data dois dias no futuro.

Comecei a puxar vídeos antigos do arquivo. A empresa guarda tudo por noventa dias antes de apagar. Voltei seis semanas de gravações da madrugada, procurando anomalias nos meus turnos.

Me encontrei em quarenta e três clipes.

Lugares diferentes. Roupas diferentes. Mas sempre eu, sempre com timestamp que não batia. Alguns no futuro. Alguns no passado. Uns poucos com datas que ainda não tinham chegado.

Num clipe eu caminhava por um corredor de concreto. Paredes institucionais, blocos pintados, portas pesadas com janelas de tela metálica. Eu usava jaleco hospitalar. Nunca tive jaleco. O timestamp dizia que tinha sido gravado oito meses atrás.

Em outro eu estava sentada num carro. Noite. Estacionado num lugar escuro. Eu estava chorando. Esse clipe era datado cinco dias a partir de agora.

Fiz cópias de tudo e tentei achar padrões. Horários do dia. Locais. O que eu estava vestindo ou fazendo. Nada se conectava. Os clipes pareciam aleatórios, espalhados por meses, me mostrando em lugares que eu nunca estive fazendo coisas que eu não conseguia explicar.

Aí encontrei o mais longo.

Dezoito minutos de vídeo de uma câmera que eu não conseguia identificar. Mostrava um quarto pequeno. Cama de solteiro, cômoda, uma janela com persiana. O timestamp dizia que tinha sido gravado três semanas atrás, às 4h33.

Eu estava dormindo na cama.

A câmera estava posicionada no alto, provavelmente fixada num canto perto do teto. Tinha visão clara de todo o quarto. Fiquei olhando eu mesma dormir por dezoito minutos. Não me mexi muito. De vez em quando mudava de posição. Em certo momento rolei e o cobertor escorregou.

Aos dezesseis minutos, eu me sentei.

Não como se estivesse acordando. Mais como se algo tivesse me puxado pra cima. Meus olhos estavam abertos, mas eu não olhava pra nada. Saí da cama, fui até a cômoda, abri a gaveta de cima. Tirei algo. Não dava pra ver o quê. Depois saí do quadro.

O vídeo continuou por mais dois minutos. Quarto vazio. Cama desarrumada. Depois cortou.

Eu não reconhecia o quarto. Não era meu apartamento. Não era lugar nenhum onde eu tinha ficado. Mas com certeza era eu na cama.

Comecei a carregar o celular pra todo lado, gravando tudo. Se eu estivesse sonâmbula ou tendo estados de fuga, talvez eu me pegasse fazendo algo que não lembrava.

Gravei oito horas por dia durante uma semana. Toda noite antes de dormir, toda manhã ao acordar. Gravei o turno inteiro no trabalho, o trajeto, o tempo em casa.

Nada fora do comum. Eu estava exatamente onde achava que estava, fazendo exatamente o que lembrava de ter feito.

Mas os clipes continuavam aparecendo nos feeds de segurança.

Vi eu mesma num estacionamento discutindo com alguém que eu não conhecia. Vi eu mesma num prédio comercial, passando por baias às 2h da manhã. Vi eu mesma parada num campo vazio ao anoitecer, só parada ali, sem me mexer.

Os timestamps estavam chegando mais perto do presente.

Tentei achar os locais. O estacionamento parecia genérico, mas rodei a cidade inteira conferindo todas as garagens que encontrei. Nada batia. O prédio comercial não tinha nada que identificasse. O campo podia ser qualquer lugar.

Pensei em ir à polícia, mas o que eu ia dizer? Que estava me vendo em câmeras de segurança que eu não tinha acesso, em lugares que nunca estive, em horários que não batiam com a realidade?

Semana passada me vi no meu próprio apartamento.

O feed deu glitch à 1h23. Quando voltou, eu estava olhando pra minha sala. Mesmo sofá, mesma estante, mesma TV. O ângulo era do canto perto do teto, igual à câmera do quarto que eu não reconhecia.

Eu estava sentada no sofá. Só sentada ali, olhando pra parede.

Levantei da minha mesa no trabalho e olhei em volta. Estava sozinha na sala de monitoramento. A porta fechada. Olhei de novo pro monitor.

Na tela, eu me levantei do sofá no meu apartamento. Fui até a janela e olhei pra fora. Depois me virei e olhei direto pra câmera.

Meu celular estava no bolso. Tirei, abri o app da câmera, troquei pra visão frontal.

Eu estava no trabalho. Luzes fluorescentes. Paredes cinzas. Monitores atrás de mim mostrando os feeds.

Na tela, vi eu mesma no apartamento sair do quadro.

O feed ficou mais dez segundos e depois cortou de volta pro depósito.

Fui pra casa quando o turno acabou. Revirei cada canto do apartamento. Cantos, teto, atrás dos móveis. Procurando câmeras. Algo tinha que estar me gravando.

Não achei nada.

Mas comecei a reparar em coisas que estavam levemente erradas.

Objetos mudados de lugar. Não muito longe. Uma xícara no balcão seis centímetros pro lado. Minhas chaves na mesinha de centro em vez do gancho na porta. Livros na estante em ordem diferente.

Coisas pequenas. Fáceis de achar que era falha de memória.

Só que comecei a testar. Antes de ir pro trabalho, arrumava objetos em padrões específicos. Três canetas na mesa formando triângulo. Quatro livros empilhados com a lombada pra fora. Quando voltava, os padrões estavam diferentes.

Alguém entrava no meu apartamento enquanto eu não estava.

Ou eu entrava no meu apartamento e não lembrava.

Configurei o notebook pra gravar enquanto eu estava no trabalho. Apontei pra sala, deixei rodando a noite toda. Quando cheguei em casa na manhã seguinte, conferi o vídeo.

Sete horas de uma sala vazia. Ninguém entrou. Ninguém mexeu em nada. Mas quando olhei pra mesinha de centro, o controle remoto estava do lado errado.

Tentei pensar racionalmente. Talvez eu estivesse mexendo nas coisas e não lembrando. Estresse, falta de sono, algum estado dissociativo. Marquei consulta com médico.

Mas os vídeos do trabalho continuavam piorando.

Vi eu mesma numa cabine de banheiro, sentada no chão. Vi eu mesma num porão com canos expostos e paredes de concreto. Vi eu mesma no porta-malas de um carro, encolhida, olhos abertos, sem me mexer.

Esse clipe era datado amanhã.

Ontem à noite vi eu mesma morrer.

O feed deu glitch às 4h52. Eu estava olhando pra uma sala que não reconhecia. Piso de azulejo, pia industrial, mesa de metal. Eu estava deitada na mesa. Sem me mexer. Olhos fechados.

Alguém entrou no quadro. Não dava pra ver o rosto. Usava luvas. Ficou parado em cima de mim por um tempo, só olhando. Depois pegou meu pulso, checou a pulsação.

Deixou meu braço cair e saiu do quadro.

O vídeo rodou mais três minutos. Só eu na mesa. Sem respirar. Depois cortou de volta pro feed normal.

O timestamp dizia que tinha sido gravado seis horas a partir daquele momento.

Liguei dizendo que estava doente. Falei pra supervisora que era intoxicação alimentar. Fui pra casa e tranquei todas as portas, conferi todas as janelas. Estou sentado na minha cozinha com todas as luzes acesas.

São 10h47 da manhã.

Em seis horas eu devo estar morta numa sala que nunca vi.

Mas é o seguinte que não sai da minha cabeça.

Puxei todos os clipes que salvei. Passei frame por frame. Procurando qualquer coisa que me dissesse de onde essas gravações estavam vindo.

No clipe de mim dormindo, aquele de dezoito minutos, tem um momento bem no final. Logo antes de cortar. A câmera se mexe. Só um pouquinho. Como se alguém tivesse ajustado.

E no canto inferior do quadro, por talvez meio segundo, dá pra ver um reflexo na janela.

Alguém parado no quarto. Me observando dormir.

A resolução é baixa demais pra ver detalhes. Mas dá pra ver o contorno. A forma.

Sou eu.

Sou eu que estou segurando a câmera.

Tenho que ir pro trabalho hoje à noite. Meu turno começa às 23h. Pensei em não ir, mas se eu já estiver morta até lá, que diferença faz?

E talvez quando eu chegar lá, finalmente veja de onde todos esses feeds estão vindo. Talvez eu encontre a fonte.

Ou talvez eu só assista acontecer.

Tenho ficado olhando os monitores pelo celular. O app da empresa deixa ver os feeds remotamente. Fico atualizando de poucos em poucos minutos.

Dez minutos atrás apareceu um clipe novo.

Estou na minha cozinha. Agora mesmo. Sentado à mesa com o notebook.

O ângulo da câmera é de trás de mim, por cima do ombro direito. Dá pra ver a tela. Dá pra ver o que estou digitando.

Olhei em volta na cozinha. Não tem nada atrás de mim além da parede.

Mas no celular, consigo me ver sentado aqui. Consigo ver a parte de trás da minha cabeça. Consigo ver minhas mãos no teclado.

O timestamp diz que está sendo gravado agora. Feed ao vivo.

Vou me levantar. Vou me virar.

Se tiver uma câmera, vou achar.

Se não tiver, então eu não sei o que estou olhando.

Acabei de me levantar e me virar.

Não tem nada aqui.

Mas no celular, ainda consigo me ver. Ainda sentado à mesa. Ainda digitando.

A pessoa na tela não se mexeu.

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