domingo, 14 de dezembro de 2025

Há uma Sombra no Meu Quintal, e Ela Está Aprendendo a Ser Eu

Era 1h47 da manhã quando eu acordei de sobressalto. Achei estranho — eu quase nunca acordo no meio da noite. Normalmente durmo direto até o dia clarear, mas ali estava eu, de boca seca, encarando o reloginho digital. A Lucy não estava do meu lado na cama. Por um segundo nem lembrei onde ela estava, depois caiu a ficha: ela estava no plantão noturno do hospital.

Meio zonzo, saí rastejando da cama e desci pra cozinha pegar uma água.

A casa ficava vazia e silenciosa à noite, igual o bairro todo. Eu amava essa casa: tranquila, bem localizada, a poucos minutos do centro. Os vizinhos eram gente boa também — mesmo com as casas e os quintais colados uns nos outros, nunca rolava briga. Eu estava ali na cozinha, inclusive pensando em marcar um churrasco com a galera. Bebi um gole d’água — e foi aí que eu vi.

Uma silhueta preta. Mal dava pra enxergar na escuridão da noite, mas se destacava mesmo assim. Lá no fundo do quintal, perto da cerca. Uma forma humana: alta, magra, o contorno quase imperceptível. E ela só ficava lá parada, sem se mexer, olhando pra dentro pela porta de vidro da varanda.

Um arrepio desceu pela espinha. Que porra era aquela parada no meu quintal, me encarando daquele jeito? Por um momento nem ousei me mexer. A figura também não. Parecia que nem respirava. Só ficava olhando pra dentro — olhando direto pra mim. Senti que se eu não fizesse nada agora, ela ia dar o primeiro passo.

Não demorou muito pra o pânico virar raiva. Peguei a lanterna que eu guardava numa gaveta da cozinha e saí feito um louco pra varanda. Abri a porta de vidro com tudo, apontei o facho pra figura — e achei que tinha enlouquecido.

Porque não tinha ninguém lá.

Não tinha ninguém. Varri o quintal inteiro com a lanterna. Não era um quintal grande — a Lucy e as crianças mantinham tudo arrumadinho —, então nem dava pra dizer que alguém podia estar escondido atrás de um arbusto ou no mato alto. Não sabia o que pensar. Dei de ombros, culpando os olhos cansados e o fato de ter acordado no susto no meio da madruga. Devia estar só exausto mesmo.

Voltei pra dentro, pra cozinha, pra terminar o copo d’água pela metade. Mas mal cheguei no balcão, vi de novo. Pelo canto do olho, uma figura preta alta — o contorno inconfundível. Lá no quintal, exatamente como antes, olhando pra dentro.

Engoli em seco. Não ousei gritar; o Francis e o Tommy estavam dormindo lá em cima, e o bairro inteiro em silêncio absoluto. Fiquei com os olhos cravados na figura parada. Dessa vez decidi que ia sair de novo — mas ia correr atrás, quem quer que fosse. Não ia deixar alguém me aterrorizar dentro da minha própria casa.

Voltei pisando forte pra porta da varanda, sem tirar os olhos da figura lá fora. Já estava quase na porta quando percebi uma coisa estranha. A figura não estava só parada. As pernas dela se mexiam exatamente como as minhas. No começo achei que era coincidência… mas quando parei, ela parou também. Perfeitamente sincronizado.

Como se eu estivesse olhando pro meu próprio reflexo — só que do lado de fora, no escuro.

Entrei em pânico. Andei de um lado pro outro na cozinha. Lá fora, a figura fez o mesmo. Dava o passo igual ao meu. No começo realmente pensei que fosse algum tipo de reflexo, mas tinha algo errado nos passos dela. Como se estivesse só agora aprendendo a andar — às vezes desajeitada, às vezes sem saber onde colocar o pé. Que caralho era aquela coisa no meu quintal? Por que estava me imitando — e, mais importante, o que ela queria?

Não sabia o que fazer. A única ideia que tive foi apontar a lanterna de novo. Mas no instante em que acendi o facho de dentro da cozinha, não tinha nada. Só o reflexo da janela voltando pra mim. O quintal estava vazio outra vez.

Apaguei a lanterna, e a figura sumiu. Desapareceu. Nem uma silhueta no fundo do quintal. Era como se tivesse se dissolvido na escuridão.

Fiquei ali parado uns minutos, apavorado achando que não tinha ido embora de verdade — só se escondido em algum lugar que eu não via. Devo ter ficado uns meia hora ali, olhando pela janela da cozinha. Procurei em tudo, mas a figura não aparecia mais.

Como era quinta-feira de madrugada e eu tinha que trabalhar no dia seguinte, acabei subindo de novo. Conferi os meninos: os dois dormindo pesado. Da janela do quarto fiquei de olho no quintal mais um tempo, mas a figura não voltou. No fim, peguei no sono — embora cada nervo do meu corpo tivesse pavor de acordar e dar de cara com ela de novo.

O dia inteiro, a noite anterior ficava voltando na minha cabeça. Por que eu tinha acordado tão no susto? Quem — ou o quê — tinha estado no meu quintal? Contei pra Lucy à tarde, mas ela achou que eu estava zoando. Insistiu que eu devia estar cansado, talvez fosse algum tipo de paralisia do sono. Mas no fundo eu sabia que era outra coisa.

A noite chegou de novo. A Lucy tinha que acordar cedo no dia seguinte, então já tinha deitado. Eu não conseguia descansar. As crianças dormiam, e eu fiquei na cozinha, só vigiando. Lá pela meia-noite e meia, acabei cochilando no sofá. Acordei todo duro e dolorido. A casa estava escura, iluminada só pelo brilho da televisão. Meio grogue, levantei e fui pra cozinha pegar água. Foi aí que lembrei por que tinha ficado acordado até tão tarde.

Ela estava lá de novo. No quintal. A sombra preta em forma de gente. Observando.

Desconfiado, fiquei encarando de volta. Cheguei mais perto da janela, tentando distinguir o que era. Mas ela não se mexia — só ficava lá, alta e magra, uma silhueta preta.

Aí me veio uma ideia. Corri pegar o celular no sofá e voltei voando pra cozinha.

Tirei uma foto, mas na escuridão da noite quase não apareceu nada. Talvez tivesse uma figura na tela… ou talvez fosse só algum borrão da foto granulada.

Mas enquanto eu levantava o celular e tirava fotos da sombra, ela começou a me copiar. Desajeitada, como se não tivesse dedos de verdade. Ergueu o braço, mas o pulso dobrou errado, os dedos mais parecendo varas longas e quebradiças. Fingiu tirar foto também, embora a mão se mexesse de um jeito que parecia que ia partir ao meio.

Fiquei olhando pela janela da cozinha outra vez, os nervos à flor da pele. A figura preta não se mexia — só ficava vigiando as janelas da casa. Aí, de repente, começou a se mexer. Mas dessa vez não estava me imitando. Se mexia como se estivesse procurando alguém, olhando em volta com aqueles movimentos bruscos e desajeitados. Que porra ela estava fazendo? Depois, do nada, congelou de novo.

“Gordon, o que você tá fazendo?” a voz da Lucy sussurrou atrás de mim.

Quase tive um treco. Nem tinha percebido ela chegando. Estava totalmente absorto, perdido olhando pra figura no quintal.

“O quê?” gaguejei, assustado.

“O que você tá fazendo, Gordon?” ela chiou irritada. “São três da manhã e você tá aqui parado, olhando pela janela da cozinha. Que porra é essa?”

“Vem ver!” falei rápido, quase animado.

A Lucy veio pro meu lado. Ela ia pegar café mesmo, mas pelo menos olhou pela janela pro escuro.

No começo só revirou os olhos. Mas no instante em que viu, o sangue sumiu do rosto dela. Deu um passo pra trás, como se o vidro não protegesse mais da noite. Dava pra ver que ela tinha visto também. A figura no nosso quintal assustava ela tanto quanto me assustava.

“Que porra é essa, Gordon?” ela sussurrou, o pânico já na voz.

Só balancei a cabeça. Não sabia o que a gente estava olhando. Era humano sequer? Ou era algo completamente diferente — algo que não era desse mundo?

“Gordon, liga pra polícia,” a Lucy disse, branca que nem fantasma.

“E o que eu vou falar pra eles, Lucy?” retruquei nervoso. “Que tem uma sombra no meu quintal?”

Ela me fuzilou com os olhos, já puta da vida. Eu conhecia aquele olhar — se eu insistisse mais, ela ia ficar bem mais assustadora que a coisa parada lá fora.

Foi a Lucy quem acabou ligando pra polícia. Não me deu muito tempo pra reagir, mas eu entendi — ela estava nervosa e com medo.

Enquanto isso, eu não tirei os olhos da figura enquanto a Lucy falava no telefone. A sombra preta não se mexia. Ou melhor, só copiava a Lucy enquanto ela falava. Enquanto eu observava, percebi que estava ficando melhor — imitava os gestos dela com mais fluidez, quase natural.

“Daqui a pouco eles chegam. O que essa coisa tá fazendo?” a Lucy sussurrou, chegando do meu lado de novo.

“Está te copiando,” falei seco. “Enquanto você estava no telefone. Agora só tá olhando.”

“Essa coisa me dá um arrepio do caralho, Gordon,” a Lucy disse, apertando meu braço. “Me sinto tão insegura, e tô com medo pelas crianças.”

“Os meninos estão bem,” respondi calmo. “Já conferi eles.”

Não saímos da janela da cozinha. Ficamos só ali parados, olhando pra fora, até a Lucy finalmente ver o flash das luzes da viatura na frente da casa.

Chegaram dois policiais. A Lucy subiu pros meninos, e eu só tirei os olhos da sombra o tempo suficiente pra abrir a porta pra eles. Mas quando voltamos pra cozinha, ela tinha sumido. O quintal estava escuro e vazio.

Os policiais revistaram o quintal inteiro, até deram uma olhada rápida dentro de casa, mas não acharam nada. Não contamos exatamente o que tínhamos visto — pra falar a verdade, a gente mesmo não sabia. Só falei que alguém tinha ficado parado no quintal, e a gente não fazia ideia de quem era.

O lance da polícia não deu em nada.

A Lucy acabou indo pro trabalho. Consegui dormir um pouco depois que os policiais foram embora. Eles prometeram patrulhar o bairro e dar uma passada na nossa casa de vez em quando.

A figura preta não voltou. Mas demorei muito pra pegar no sono de novo — tinha sido a segunda vez que eu via ela, e a segunda vez que simplesmente desaparecia.

Minha sexta passou rápido. Levei as crianças pra escola, e como era sexta, tive só meio período no escritório. Mas quando cheguei em casa, levei um susto: a Lucy estava na sala, com todas as nossas coisas já arrumadas pras quatro pessoas.

Ela disse que não ficava mais ali. Que a gente devia ir tudo pra casa dos pais dela. Mas eu não queria sair da nossa casa. Era nossa, o nosso lar. Não ia jogar tudo fora por causa de uma sombra — eu era feito de material mais forte que isso. Discutimos um tempo, e no fim ela e as crianças foram pros pais dela pro fim de semana, enquanto eu fiquei pra resolver essa parada da sombra de uma vez por todas.

A primeira coisa que fiz foi comprar uma câmera. Instalei uma câmera com visão noturna do lado de fora, apontada direto pro lugar onde a sombra costumava aparecer. O segundo passo foi comprar uma pistola de gás. Tinha certeza que naquela noite ia acabar com essa palhaçada de susto.

À noite, me tranquei no quarto. Fiquei olhando o feed da câmera do quintal no notebook, rodando na base da cafeína pra garantir que não ia dormir até a sombra finalmente aparecer.

Devo ter cochilado. Quando acordei, já tinha passado da meia-noite faz tempo. O notebook tinha travado a tela. Em pânico, destravei e abri a câmera do quintal.

O vídeo não mostrava nada. O quintal estava completamente vazio. Mas quando aumentei o volume pra ouvir o áudio, peguei algo.

“Foi vista aqui ontem também?” perguntou uma voz de homem.

Depois veio só um barulho confuso, como alguém tentando falar mas sem conseguir formar as palavras.

Eu sabia que era a sombra. Peguei a pistola e, feito quem não conhece medo, desci pisando forte pra cozinha.

Ela estava lá de novo, parada no quintal. O negócio todo era desconcertante: na câmera, nada aparecia — mas pessoalmente, lá estava ela. Abri a porta da varanda com força e apontei a pistola de gás pra sombra.

“Sai daqui, seu filho da puta!” gritei.

Ela não se mexeu. Em vez disso, com gestos estranhos, tortos e lentos, imitou apontar algo pra mim — embora as mãos estivessem vazias.

Na minha fúria, apertei o gatilho. A pistola deu um estalo alto, e o tiro acertou a cerca do quintal. Passou direto pela figura como se ela fosse mesmo só sombra.

Fiquei de boca aberta. Como eu podia ter achado que uma pistola de gás ia parar essa coisa? Quando abaixei a arma, ela abaixou as mãos também. Fiquei só ali na porta da varanda, encarando no escuro a silhueta preta alta que nunca dava pra ver direito.

“Que porra você é?” sussurrei, quase só pra mim mesmo.

“Gordon, o que você tá fazendo?” falou a voz da Lucy.

Mas a Lucy não estava lá. Ela não tinha voltado pra me checar. A voz veio de fora — do quintal, onde a figura estava.

Fiquei todo arrepiado, as pernas tremendo.

“Senhor, infelizmente não encontramos nada.” Veio outra voz em seguida, dessa vez de homem. Era a voz do policial da noite passada.

Um gelo correu nas minhas veias. Que caralho era essa coisa no meu quintal? A gente morava ali fazia sete anos — por que agora? Por que aqui?

E foi nesse momento que minha coragem acabou de vez.

“O que eu devo falar pra eles, Lucy?” veio a minha própria voz do quintal.

E no instante em que falou essas palavras, a sombra disparou — direto pra cima de mim. Correu como um atleta profissional.

Apavorado, entrei correndo na cozinha, peguei a chave do carro no criado-mudo e saí voando pela porta da frente. Atrás de mim ouvi passos pesados se aproximando, e sem parar, a minha própria voz repetindo:

“O que eu devo falar pra eles, Lucy?”

Saí de casa direto pro carro. Pulei dentro, tremendo todo pra encaixar a chave na ignição. E aí eu vi: uma figura preta parada na porta aberta da casa. Tão alta que quase encostava no batente de cima.

Ela não veio atrás. Só ficou lá, olhando. Enquanto eu saía de ré com o carro, peguei um último vislumbre dela no retrovisor — erguendo a mão pra dar tchau. Primeiro rígido e travado, como se não soubesse mexer os braços direito… depois de repente fluido, como o aceno de um velho amigo.

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