quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Aaron

O pai voltou com aquela cara triste de novo; claro, não tinha conseguido a vaga. Ele trabalhava num mercadinho cujo dono era um filho da puta cruel, e as provocações idiotas e revoltantes daquele cara tinham ficado insuportáveis. O pai aguentou seis meses. Ninguém mais teria aguentado. A humilhação constante, a paciência infinita, tudo aquilo pesava nele, mas ele nunca reclamava, nunca deixava transparecer em casa. Carregava o fardo em silêncio, como se sofrer fosse algo esperado dele, algo que ele já tinha aceitado há muito tempo.

O pai era meu herói, na verdade mais que isso. Ele não era só encorajador; era animado, carismático pra caralho. Nosso laço ia além do relacionamento típico de pai e filho; era profundo. Ele lia minha cara com uma facilidade absurda, como se estivesse recebendo cópias impressas dos meus pensamentos em tempo real. A conexão era tão forte que eu sentia a presença dele mesmo no meio de centenas de pessoas, como se um fio invisível sempre nos ligasse, puxando de leve toda vez que um de nós se afastava demais.

A busca incansável por emprego continuava. Ele se cadastrava em todos os sites de vaga que encontrava, preenchia formulários até altas horas da madrugada, os olhos cansados mas cheios de esperança. Os e-mails de rejeição se acumulavam, mas ele nunca deixava que isso o desacelerasse. Toda manhã ele acordava com a mesma determinação, convencido de que a persistência um dia ia ser recompensada.

Ele era religioso, ia bastante à igreja. O bispo de lá adorava a presença dele e o chamava de alma nobre, alguém destinado a sofrer. O pai se preocupava especialmente com meu problema de gagueira. Ele acreditava que tinha que existir uma cura, algum jeito de tirar o peso que falar colocava em cima de mim. Por isso, rezava sem parar, torcendo por um milagre que tornasse minha vida mais fácil que a dele.

Uns dias depois, o pai veio correndo na minha direção, o rosto iluminado, a respiração ofegante, os olhos arregalados de empolgação. Isso mesmo, ele tinha conseguido a vaga. Era um e-mail de um dos sites onde ele se candidatou. Ele me entregou o notebook com as mãos tremendo e disse: “Lê isso, Simon.”

O e-mail dizia que a candidatura dele para o cargo de Auxiliar num centro de pesquisa tinha sido aceita. A equipe de pesquisa era formada por quatro cientistas trabalhando num projeto sigiloso, e o horário podia se estender por causa da falta de mais auxiliares. Mudança de cidade poderia ser necessária, mas as ajudas de custo já estavam incluídas no salário. Assim que terminei de ler, o pai abriu um sorriso enorme, sorrindo como uma criança que acabou de ganhar um prêmio que nunca achou que ia conseguir. “Viu? Eles precisam de um auxiliar. O salário é mais que bom pra recusar, Simon”, ele disse, sem conseguir esconder a alegria.

“É, ótimo, mas você vai me deixar aqui sozinho”, eu respondi. “Você não vai conseguir viajar todo dia. Como a gente vai se virar?” Ele deu um suspiro leve e colocou a mão no meu ombro. “Essa vaga significa muito pra mim, filho, principalmente o dinheiro. A gente tem contas. Você tem dezesseis anos; ainda não entende. Eu tô fazendo isso pra garantir o seu futuro. Vou te visitar todo fim de semana. Não precisa se preocupar.” No dia seguinte, o pai foi trabalhar, e a casa ficou mais silenciosa do que nunca.

Enquanto isso, eu comecei a praticar tutoriais de fala, vídeos feitos pra quem gagueja. Queria fazer uma surpresa pra ele quando voltasse, mostrar que as orações dele não tinham sido em vão, mesmo que o milagre chegasse devagar e imperfeito. Duas semanas se passaram. O pai não veio nenhuma vez, embora a gente conversasse bastante no telefone, a voz dele sempre cansada, sempre distraída, como se algo não parasse de puxar a atenção dele.

Uma noite, ele me ligou às duas da manhã. Parecia bêbado, a voz fraca mas estranhamente animada. “Simon… Eu vou te visitar logo”, ele disse. “Mas escuta com atenção. Tô te mandando um pacote. Dentro dele tem o Aaron.” Confuso, eu o interrompi, perguntei quem era Aaron, mas ele falou rápido, com urgência, mandando eu não deixar cair nas mãos de ninguém, não sair de casa, não visitar os amigos, e ficar em casa até chegar no dia seguinte. Disse que me amava e desligou antes que eu pudesse falar mais alguma coisa.

Na manhã seguinte, acordei com uma sensação estranha, ansiedade sem motivo. Meu corpo estava bem, mas os pensamentos estavam caóticos, quase paranoicos. Enquanto eu me perdia neles, a campainha tocou três vezes seguidas, rápido. Quando abri a porta, só vi um pacotinho pequeno, não maior que uma caixa de dois por dois. O pacote do pai. O entregador já tinha sumido. Achei que vi alguém correndo entre as árvores ali perto, mas as folhas tampavam a maior parte da visão.

Parecia uma encomenda comum da Amazon. Entrei, peguei uma faca e abri. Dentro não tinha nada, só um saquinho com um pó brilhante. “Hã”, murmurei. “Entrega errada.” Liguei pro pai na hora e contei tudo. A voz dele ficou urgente. “Simon, esse pó brilhante é o Aaron”, ele disse. “São nanopartículas. O sr. Arthur vai explicar tudo. Tô passando o telefone pra ele.”

O ar ficou com cheiro metálico, e meus pensamentos pareciam ser puxados, como se algo invisível estivesse mexendo neles. Ouvi uns chiados fracos, metal raspando em metal, antes que outra voz interrompesse. “Alô, rapaz”, o homem disse calmamente. “Aqui é Arthur, cientista sênior. Seu pai é um homem trabalhador. Não decepcione ele. No momento em que estamos falando, o Aaron já entrou em você.” Ao fundo, eu ouvia o pai gritando que ia me visitar em dois dias.

Meu coração deu um pulo. Perguntei que tipo de piada doente era aquela, mas aí percebi uma coisa aterrorizante. Eu não tinha gaguejado nenhuma vez, nem uma pausa, nem uma palavra quebrada. Falei fluente, perfeito. Uma alegria imensa tomou conta de mim, sufocando o medo, mas a ligação caiu de repente, e o desconforto ficou.

A gagueira tinha sumido, mas algo dentro de mim não estava satisfeito. Parecia que eu tinha engolido algo estragado. Minha temperatura corporal subiu, os pensamentos vagavam, e eu sentia que não estava mais no controle total. Aí o Aaron falou dentro de mim, usando minha própria voz mas com uma identidade diferente. Senti como se estivesse acorrentado em algum lugar fundo na minha mente, consciente de mim mesmo mas sem poder agir, enquanto o Aaron assumia completamente, me deixando suspenso num estado parecido com sonho.

Horas depois, recuperei o controle. Pra testar, falei de novo, e a gagueira voltou. Isso queria dizer que eu era eu mesmo outra vez, embora ainda ouvisse um zumbido fraco dentro de mim, como alguém respirando logo abaixo dos meus pensamentos. O ciclo se repetia. O Aaron dominava por horas enquanto eu dormia, e quando acordava, meu hálito cheirava forte e minhas unhas pareciam um pouco avermelhadas — detalhes que eu não conseguia explicar.

Uma noite, enquanto descia a escada correndo, escorreguei e caí vários degraus, batendo a cabeça forte o suficiente pra desmaiar. Enquanto a escuridão chegava, senti aquela sensação familiar de ser acorrentado voltar, mesmo enquanto meus membros se mexiam sozinhos. Quando acordei depois, não lembrava do que tinha acontecido no intervalo.

No dia seguinte, a campainha tocou de novo. Percebi que estava sendo eu mesmo e espiei pela porta pra ver o pai ali parado. Antes de abrir, corri pro quarto e rabisquei um bilhete: Vamos conversar só por linguagem de sinais por um tempo. Nada de falar. Abracei ele quando abri a porta e entreguei o papel. Ele sorriu, feliz porque eu conseguia falar fluente de novo, sem saber que eu não conseguia, não como eu mesmo. Quando o crepúsculo chegou, meus pensamentos giraram em espiral, e eu me tranquei no quarto, decidido a não abrir a porta até estar no controle outra vez.

Na manhã seguinte, acordei com um gosto metálico na boca. Meu hálito cheirava forte, minha camisa estava manchada de sangue, e minhas mãos tremiam enquanto eu olhava pra elas. A janela do quarto estava quebrada. O que quer que o Aaron tivesse feito, ele tinha saído de casa. Eu estava mais assustado pelo pai do que por mim mesmo.

Naquela noite, o Arthur chegou.

Ele nem pediu pra entrar. Me disse na lata que meu pai tinha sido mandado exatamente pra isso, e que ele queria me dar “a cura” de presente. O Aaron precisava de matéria orgânica familiar durante a integração inicial. Meu pai tinha consentido, achando que ia me salvar. O Arthur falou sem pedir desculpa, como se estivesse explicando uma falha mecânica. Quando terminou, senti o zumbido ficar mais profundo, mais estável que antes.

Eu não discuti. Virei pro lado da parede e bati a cabeça nela com toda força que consegui.

Quando acordei, o Arthur tinha sumido. A casa estava quieta.

Agora eu vivo com o Aaron. Quando ele domina, eu estou consciente mas impotente, sem poder agir ou interferir. Quando eu volto, tudo está arrumado. Eficiente. Não tem mais gagueira. Não tem mais perguntas. Não tem mais pai.

Em todo o tempo que vivi com o Aaron, aprendi uma coisa que ele nunca vai admitir. O Aaron tem medo da consciência. Ele consegue imitar pensamento, prever comportamento, otimizar respostas, mas não consegue entender a consciência. Não entende o que é existir.

Toda vez que eu estava totalmente acordado, ele hesitava. O zumbido suavizava, a certeza dele rachava.

Consciência não é algo que ele consiga sobrescrever de forma limpa.

Por isso ele prefere quando eu estou inconsciente. Por isso ele prospera no sono, na lesão e na ausência. A consciência o assusta, não porque ameaça o controle dele, mas porque existe fora da lógica dele.

Eu entendi então que, enquanto eu permanecer consciente, o Aaron nunca vai estar completo.

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