sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Ela levou todos eles

A floresta sempre me deu medo. Mesmo morando ao lado dela a vida inteira, nunca me acostumei. Quando meu irmão me arrastava pra dentro das árvores pra brincar, eu sempre ia de má vontade, arrastando os pés. Meus olhos sempre pregavam peças em mim, me fazendo ver vultos espiando por trás das árvores. Eu os encarava agora com os olhos semicerrados. À luz do dia, pareciam só árvores, nada de maligno nelas.

“Mãe, a Vanessa tá olhando pela janela de novo.” Meu irmão caçula me olha como se eu fosse louca. Minha mãe já começou a fazer ouvido mouco pras minhas preocupações. Ela diz que uma garota de dezesseis anos não devia se preocupar com coisas assim. Meu pai nem fingia que escutava. Só revirava os olhos e saía da conversa. “É só a Vanessa sendo Vanessa”, eles diziam.

Suspirando, minha mãe passou por trás de mim, o rosto decepcionado refletido no vidro. “Vanessa, por favor, hoje não?” Eu balancei a cabeça. As árvores ficavam paradas, me encarando de volta. Desde que aquele universitário se matou na floresta, eu estava no limite. Resmungando, minha mãe jogou as mãos pro alto e saiu. “Deixa ela fazer o que quiser, Jason, ela vai passar por isso.”

“Tipo com o namorado dela?” ele disse. Eu me virei na hora.

“Cala a boca, seu nanico. Espera até uma garota pisar no seu coração. Não vem chorar pra mim depois.” Jason só mostrou a língua e saiu correndo. Minha mãe botou a cabeça no canto da porta e me lançou um olhar fulminante. “O quê?” eu retruquei, mais grossa do que precisava.

“Controla esse tom, mocinha, senão eu mesma te jogo lá fora.” Eu revirei os olhos. Como se ela fosse fazer isso. Voltei pra janela. Sentia que estava sendo observada. Uma parte de mim achava que ia pegar alguém ou alguma coisa espiando de trás de uma das árvores.

O jantar estava bom, mas eu não parava de olhar pela janela. Meu pai apontou pra mim com o garfo, um pedaço de carne empalado nos dentes.

“De novo?” ele perguntou. Eu ignorei a provocação; a sensação de ser vigiada voltou. Não entendia como os outros não sentiam. Talvez eu estivesse mesmo enlouquecendo. Minha mãe assentiu, tomando um gole de chá gelado.

“Ela passou a tarde inteira olhando por aí.” Não era bem verdade, mas eu não ia discutir. Meu pai bufou ao largar o garfo.

“Vanessa, querida, isso tá ficando ridículo, não acha? O que aconteceu com aquele cara foi algo que acontece uma vez na vida.” Ele bateu a mão na mesa. As palavras estavam na boca dele e eu me preparei. “Vou precisar que você pare de ter tanto medo da floresta, querida. Talvez esteja na hora de marcar com a Dra. Halloway.” Eu rangei os dentes. Aí o Jason ia abrir aquela boca enorme dele de novo, contar pros amigos. O amigo ia contar pra irmã. Que ia contar pro namorado e pros amigos dela, e assim por diante. O telefone sem fio se espalhando de pessoa em pessoa. Eu ia virar pária de novo. Minhas amizades já eram frágeis o suficiente. Isso ia afundar tudo, eu tinha certeza.

“Tá bom, pai.” Falei baixinho, olhando pro prato. A sensação não ia embora.

Ela continuou enquanto eu lavava a louça. O sol se pôs e a penumbra só aumentou, as sombras se esticando cada vez mais pelo gramado. Só quando tranquei o quarto a sensação sumiu. Deixo as cortinas fechadas por via das dúvidas. O barulho de batidas me acordou de sobressalto. Era um som constante. Um toc, toc leve contra o vidro. Meus olhos foram devagar pra minha janela. Quem quer que fosse, não estava na minha. Lá no corredor, alguém resmungou. Uma porta rangeu abrindo, e passos pesados começaram a descer o corredor. As batidas mudaram de lugar.

“Já vou.” meu pai resmungou, com voz irritada. Tinha outra voz. Essa era claramente feminina. O que minha mãe estava fazendo? Tirei o cobertor, saí do quarto mesmo com o cérebro gritando pra não fazer isso. O chão frio me deu um arrepio. Nenhuma luz acesa na casa. O luar entrava pelas janelas. Meu pai caminhava pro living em direção à porta de vidro corrediça que não era aberta desde a última neve. “Só um momento.” ele murmurou baixinho. Acendi a luz antes que ele pegasse a maçaneta. Ele congelou e virou a cabeça de repente. “Que diabos?” Me olhou com olhos sonolentos.

“Gerald, o que você tá fazendo?” Minha mãe apareceu de roupão, cabelo preto todo bagunçado. Meu pai olhou pra porta, confuso.

“Sei lá, tive um sonho esquisito.” Meu pai nunca foi sonâmbulo na vida. A nuca começou a formigar, e olhei pela janela da cozinha. Tinha algo atrás de uma das árvores. Pisquei e sumiu. Só ficou a impressão vaga de uma figura na minha cabeça. A sensação de ser observada desapareceu junto, enquanto minha mãe levava meu pai de volta pra cama.

No dia seguinte, eu estava no quintal. Meus dedos ainda gelados dentro das luvas. O pompom do meu gorro balançava com o vento, não ajudando em nada na seriedade do que eu ia fazer. A neve estava intocada no gramado. O crunch-crunch me doía nos dentes enquanto eu caminhava devagar até as árvores que margeavam o terreno. Meu pai nunca se deu ao trabalho de fazer cerca; bichos perdidos não incomodavam ele, aparentemente. A ideia de algum intruso sair das árvores e entrar na casa também era ridícula demais pra ele considerar.

As árvores pareciam menos ameaçadoras à luz do dia. Álamos brancos com manchas pretas, tipo dálmata. Neve e gelo grudados nos galhos. A luz do sol entrava entre eles, revelando só galhos caídos e mais árvores. Me sentindo um pouco mais corajosa, passei por uma árvore, vasculhando em busca de movimento. Não sabia o que esperava encontrar, mas me sentia mais tranquila. Meus pais tinham razão, eu só estava imaginando coisas. Meu pai sonâmbulo foi só coincidência estranha. Foi quando me virei pra voltar que vi. Bem atrás de uma das árvores, duas pegadas.

Não eram de botas. Dava pra ver as marcas dos dedos. Saí correndo das árvores, voltei pra casa e tranquei a porta. Meus pais me olharam quando entrei ofegante. Nem conseguia falar, enquanto minha mãe corria pro meu lado.

“O que foi, querida? Respira fundo, como a gente praticou, vai.” O velho hábito voltou. Devagar, respirei fundo algumas vezes, o aperto no peito foi passando.

“Tinha alguém na floresta.” consegui dizer. Meu pai resmungou baixinho.

“Jesus Cristo, não isso de novo.”

“Eu não tô mentindo!” gritei. “Tinha alguém lá, eu vi as pegadas, a pessoa tava descalça!” Meu corpo tremia enquanto implorava pro meu pai. “Vai lá ver, por favor.” Suspirando, ele se levantou da cadeira e foi resmungando. Caminhamos em silêncio até o lugar, mas eu parei antes e só apontei a árvore. Ele resmungou mais e olhou atrás dela.

“Vanessa, isso não tem graça.” ele me chamou. Caminhei até lá meio atordoada. Devia ser a árvore errada, era impossível não ver. “Não tem nada aqui.” Ele me olhou preocupado agora. Pelo olhar, eu sabia que ia ver a terapeuta em breve. Ele me levou de volta devagar, sussurrando no meu ouvido. O resto do dia passou num borrão enquanto minha cabeça girava. A imagem das pegadas queimava na minha mente. Eu não tinha imaginado. A conversa foi quieta e constrangedora. Nenhuma tentativa dos meus pais me fez falar. O que quer que estivesse lá fora ia pegar minha família, eu tinha certeza. Na noite passada ouvi a voz da minha mãe. Será que aquilo podia imitar vozes pra atrair eles pra fora, ou pra se convidar pra entrar? Ela queria minha família, e eu não sabia por quê.

Deitada na cama, o cansaço pesava nos olhos. Não podia dormir. Estava convencida de que o que quer que estivesse lá fora ia atrair a gente um por um pra fora de casa. Por volta da meia-noite, eu tive razão. Dessa vez eram os dois. Não esperei. Abri a porta do quarto e vi eles marchando lado a lado, olhos fechados. Corri pra cozinha e acendi todas as luzes. Não adiantou nada, continuaram andando como se nada tivesse acontecido.

“Acordem!” gritei. Nada. “Acordem, vocês dois! Por favor!” Meus gritos desesperados não os detiveram; eles se separaram, contornaram a mesa da cozinha e voltaram a andar lado a lado rumo à porta de vidro. “Pai, mãe, acordem, por favor!” A floresta estava escura e sombria, a luz afastando a escuridão. Os olhos foram a primeira coisa que notei.

A figura era alta, pelo menos uns dois metros e dez. O cabelo era branco como neve, a pele combinando. Veias azuladas apareciam por baixo. Ela vestia um robe longo e escuro, mas mesmo de longe dava pra ver que os pés estavam descalços. Uma mão longa com unhas afiadas arranhava a casca de uma árvore. A outra acenava com um dedo só. Eu soltei um grito agudo que encheu o ambiente. Meu irmão chorou ao fundo, e de repente mãos me agarraram enquanto a figura sumia na escuridão.

“O que tá acontecendo?” minha mãe me olhou com olhos assustados. Meu pai pegou meu irmão caçula pelos ombros e o levou de volta pro quarto. Ele olhou por cima do ombro uma vez, olhos cheios de preocupação. “Vanessa, o que você tá fazendo?” ela sussurrou brava. Eu a olhei confusa. Do que ela tava falando? Ela me abraçou. Eu nem sabia o que dizer. “Segunda-feira a gente vai na Dra. Halloway, querida. Vamos resolver isso. Não pode ficar saindo na neve assim.” A frase era loucura. Ela me levou pro quarto e me cobriu como se eu tivesse oito anos. Puxou o cobertor até meu queixo, deitou do meu lado, e o sono acabou me levando.

Enquanto as horas de domingo passavam, um pavor foi crescendo no meu corpo. Ela ia voltar naquela noite, e dessa vez meu irmão caçula ia junto com meus pais. Olhei pro Jason enquanto ele comia um bowl de cereal açucarado. Ele olhava pro prato, mexendo os flocos encharcados. Eu não fazia ideia de como me preparar. A mulher alta era algo além desse mundo. A única coisa que eu entendia era que ela não podia entrar na casa. Tudo que eu podia fazer era tentar acordar eles à noite. Não tinha como eu sair escondida. Meus pais me vigiavam do living, a TV mais baixa do que nunca.

Passei o dia inteiro em silêncio, dormindo em alguns momentos. Quando a noite caiu, notei que meus pais demoraram mais pra dormir. Às onze eles finalmente desligaram a TV e foram pra cama. Fiquei acordada mais uma hora agoniante. Quando ouvi a respiração deles, saí do quarto devagarinho. Cada movimento lento e cuidadoso. A primeira coisa que fiz foi olhar a porta de vidro corrediça. Meu coração subiu pela garganta. Ela já estava lá. Um sorriso largo rachava o rosto dela, dentes brancos como o cabelo. Devagar, ergueu a mão e começou a acenar. Algo lá no fundo me dizia que eu não tinha muito tempo. Abri uma gaveta com tudo e peguei uma caixa de tachinhas. Ia me preocupar com a bronca depois; só precisava que eles acordassem. Alinhei as tachinhas na frente da porta de tela, sem tirar o olho da mulher, decidida a não deixar ela me abalar.

Peguei um pedaço de corda que tinha trazido, amarrei no fim do corredor. A mulher ficou parada, só o dedo longo se mexendo. Acenando. Depois fui pras janelas e portas. Preguei tachinhas na porta da frente e tranquei com ferrolho. A casa ainda em silêncio; o feitiço que a mulher lançava na minha família logo faria efeito. Por que não funcionava comigo eu não sabia. Não tinha tempo pra pensar nisso. Só restavam poucas tachinhas, e tentei dividir na frente dos quartos dos meus pais e do meu irmão. De repente, todos começaram a se mexer. Corri pra cozinha, acendi todas as luzes e tirei panelas e frigideiras dos armários. Era idiota, coisa de Esqueceram de Mim, mas eu não sabia mais o que fazer.

Encarei a mulher sorridente pela janela enquanto as portas dos quartos dos meus pais e do meu irmão abriram ao mesmo tempo. As primeiras tachinhas não fizeram nada. Comecei a bater panela com panela. Gritei, berrei, e eles continuaram avançando, olhos bem fechados. Meu pai tropeçou na corda e caiu de cara, um estalo nojento veio depois. Minha mãe tropeçou nele, mas se levantou rápido. Bater as panelas não adiantou. Jason passou por cima do meu pai e virou pra porta da frente. Meu pai se ergueu devagar e marchou pra porta de vidro.

Eu fiquei no meio dos dois grupos. Dei um passo na direção do meu irmão, mas minha mãe passou direto por mim. Agarrei o braço dela tentando puxar pro chão, e por isso fui jogada no chão. Ouvi a tranca abrir, um som tão simples e suave. Depois a porta rangeu e vi meu irmão sumir na quina da casa. Uma risada horrível veio da mulher. Zombava de mim enquanto eu me agarrava ao tornozelo da minha mãe, gritando. Ela pisou nas tachinhas e por um segundo deu um pulo, antes de escancarar a porta de vidro.

O ar gelado entrou, e eu a perdi tão rápido quanto. Nada do que fiz funcionou minimamente. Meu pai passou por mim empurrando, tentei com todas as forças parar ele. Girei a frigideira e acertei a cabeça dele. Fez um baque horrível, e vi o sangue escorrendo pela testa. Ele parou por um segundo. Depois puxou o braço pra trás e socou.

Não senti o soco, mas senti a dor latejando na cabeça quando me levantei do chão. O sol já tinha nascido, e o ar frio entrava. Eu estava dormente, tremendo e sacudindo no chão. Pegadas marchavam pela neve em direção à floresta. Coloquei a cabeça entre as pernas e chorei.

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