Quase não quero mais dormir. Estou tão exausto que só penso em morrer. Lembro dos bons tempos. Minha cabeça no travesseiro depois de um banho quente. O sono vindo quase instantaneamente.
Sempre tive esse talento. Cheguei a me gabar disso, em outra época.
Agora, é o meu inferno. Especialmente agora, tentando ficar acordado. Tentando adiar o inevitável. Se eu me deitar, apago na hora.
Por que isso começou? Que se dane, eu não sei. Só quero que acabe. Não uso eletrônicos antes de dormir. Nada de telas. Não como nada menos de uma hora antes de ir pra cama. Tomo banho todas as noites. Leio um livro. Algo chato, tipo filosofia ou sei lá o quê. Algo pra apagar as luzes. E, nossa, como elas apagam.
Em menos de uma hora, meus olhos começam a pesar, e agora me deito para dormir.
Eu costumava amar dormir. Fazia isso o tempo todo. Até durante o dia, tinha períodos de cochilos marcados e um horário fixo pra dormir à noite. Levo meu sono a sério, me processem. Na verdade, agora, só me matem.
Não são pesadelos. Sei o que você tá pensando, mas não são. Toda vez que acontece, estou lá. No segundo em que minha cabeça toca o abraço gostoso do travesseiro, os demônios começam a aquecer os tridentes pra me atormentar a noite toda.
E, de repente, é como se eu estivesse acordado de novo. Estou sentado no sofá de alguém, alguém real. Na mesa de jantar de alguém, alguém real. Na cama com eles, de verdade. Perto demais pro meu gosto, de verdade. Observando.
E é diferente a cada vez. Alguém novo. Como se eu estivesse assistindo a um filme do qual faço parte, mas sou aquela mosca na parede que ninguém nota, mesmo estando bem na frente deles.
E todos estão sendo massacrados.
Lá estou eu, sentado na poltrona reclinável da casa de uma velhinha e um velhinho. O carpete é tão macio. A poltrona cheira a suor de idoso e queijo. As lâmpadas são todas velhas e amareladas. Iluminam o suficiente pra enxergar, mas não com clareza. À minha frente, uma TV. Ao meu lado, um sofá com uma senhora comendo amendoins de uma tigela, sem olhar pra TV. Ouço cada mastigada e estalo como se fossem engrenagens triturando. Vejo e ouço tudo em 4D. O marido dela está ao lado, encarando a televisão, o pé batendo no chão antes de ele se levantar.
Ele resmunga, com a voz rouca: “Vou pegar um cigarro.”
“Isso vai te matar, sabia?”, diz a velhinha.
Tem uma porta à esquerda da TV que não paro de olhar. Uma daquelas portas de correr que entram na parede. Está totalmente aberta. A escuridão aberta boceja como a boca de um blasfemo.
Porque o que vem de lá é profano.
O velho é jogado contra a parede do outro lado. Ainda não o vejo, mas sei o que está acontecendo pelo barulho. Ele cai no chão, convulsionando violentamente, batendo em tudo que é quebrável na sala. A esposa ao lado dele, gritando. Amendoins e cigarros voando por aí. Eu, incapaz de me mover, e ele finalmente para. Ele olha pra esposa uma última vez.
“Por favor, Edith. Só me beije mais uma vez…”
Confusa e assustada, ela o faz. Eles se abraçam, e os lábios se unem. O som de carne molhada se chocando, saliva escorrendo pelos rostos, línguas fazendo um aperto de mãos secreto. A mão dele ainda segurando o maço de cigarros. A esposa limpa a boca e olha pra ele.
“Querido… o que foi isso?”
Foi quando o rosto dele se abriu.
Eu trabalhava numa criação de pombos. Vendíamos as aves pra fazendas e acampamentos de caça, pra treinar cães. Não sei se você já viu um filhote de pombo natimorto dentro do ovo, depois que você puxa a camada de carne e vê ele lá, todo vermelho e amontoado, como um verme deformado encharcado de grenadine e salpicado com lascas de madeira. Era mais ou menos assim que parecia.
Aconteceu em, no máximo, cinco segundos. Toda a pele e os ossos do rosto dele se abriram. Como uma pupila se dilatando ao máximo. Só que dentro havia algo como lama vermelha misturada com carne, que caiu direto no rosto dela e na boca ainda aberta.
Um último beijo de despedida.
A mulher se contorcendo e se debatendo de nojo. Cuspindo, tossindo, engasgando. Eu desejando poder fazer o mesmo. Ela se arrasta, o rosto rosado virando de um lado pro outro, procurando um agressor. Fazendo um gemido baixo, como o de uma mula, repetidamente. Recuando, recuando, recuando. Ela não viu a mesinha de centro e cai de lado. Ouço um estalo audível e um suspiro raso.
E então, apago.
Como o fade-out de uma cena de filme, as cortinas se fecham, e sou puxado pra uma escuridão turva, de volta a algo como o sono. O resto da noite sem interrupções.
Agora me deito para dormir.
Mas não é um sono tranquilo. É um sono longo, atormentado, suado, quente, que me faz acordar sentindo como se tivesse dormido por dias e com uma enxaqueca que faria um padre botar uns trocados no pote de palavrões.
Revirando o cérebro. Dizendo a mim mesmo que foi um sonho. Ainda sentindo o cheiro daquele filhote de pombo quente e se contorcendo.
Tomo banho toda manhã também. Não só por causa do suor, da enxaqueca e da urina, mas também do sangue. Minhas narinas parecem ter sido perfuradas por um lápis Ticonderoga até a letra R.
Não, não bati o rosto. Não, não estou doente. Não, não vou ao maldito médico. Não tenho plano de saúde e, literalmente, não posso pagar por isso.
Toda manhã é assim. O cheiro de órgãos recém-abertos nunca vai embora. Um cheiro quente, ardido. Fica pior quanto mais isso acontece. Como se o cheiro estivesse apodrecendo nas minhas vias respiratórias, e a cada manhã, uma nova camada é cuidadosamente aplicada. Dói pra respirar, pra comer, pra engolir, tossir, espirrar. As bordas do meu nariz estão cheias de cascas de tanto limpar as gotas, rasgando a pele a cada vez.
Toda noite é a mesma coisa, mas diferente.
Dessa vez, é uma esposa e filhos encolhidos num canto enquanto o pai é espancado e mutilado na frente deles por um invasor que nenhum de nós consegue ver. Ele gritando, repetidamente:
“Me desculpe! Me desculpe! Me desculpe! Não consigo evitar—”
Enquanto isso, eu fico pendurado com uma mão no ventilador de teto. Só apreciando a vista.
Em outra, estou aos pés da cama de alguém, na posição de sapo. Os pés deles pra fora do cobertor, começando a convulsionar silenciosamente, correndo no lugar por um instante, como um porco baleado, enquanto uma voz vem debaixo da porta.
“Tom?”
Em resposta, o volume na outra ponta da cama começa a manchar, se espalhar, vazar. Um rio de sangue escorre dos dois lados, e um pouco respinga em mim.
Deveria ter mantido os pés debaixo do cobertor.
E de novo, agora estou em cima de uma cômoda, olhando enquanto um homem abre as gavetas. Ele pega uma caixa. Um envelope. Muito dinheiro. Mete a mão no bolso e coloca outra pilha de dinheiro no envelope. Uma mulher se junta a ele e olha dentro, impressionada. Eles riem e falam sobre o que vão fazer com o dinheiro antes de pararem e olharem pra baixo, cada um pro próprio peito, e começarem a se despir. Algo está se movendo. Algo dentro deles. Eles gritam, choram, as costelas explodem pra fora enquanto caem de cara no chão, mortos, e as costelas batem de cada lado como pequenas asas.
Elas não voam muito longe. As asinhas os elevam ligeiramente, mas os braços e rostos moles só arrastam no chão. Eles voam em círculos, em direções opostas, ao redor do envelope e da pilha de dinheiro espalhada, deixando um rastro duplo de sangue como lesmas.
E sou sempre eu que tenho que ver.
Já faz três dias que não durmo. Tento entender isso. Não quero que aconteça de novo. Não quero ver de novo. Não assisto às notícias. Não saio mais de casa.
Não quero dormir. Mas está tão tarde, e estou tão cansado. Preciso. Não entendo. Preciso de um drinque. De muitos drinques.
Talvez essa seja a cura. Vou ficar bêbado. Bêbado demais pra isso acontecer. Só apagar até amanhã. Como nos velhos tempos.
Minha mão na garrafa. Levanto pra tomar um gole longo e glorioso. Mas, de repente, minha cabeça dói de novo, muito. Uma enxaqueca rasgando meu cérebro como uma agulha quente de veneno, e meu nariz começa a sangrar.
Não de novo.
Perco o equilíbrio e desabo no chão, chorando, nu e gritando como no dia em que nasci.
E sinto o leve cócegas de uma mosca pousando no meu pé.