sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Minha escada parece maior...

Não sei explicar direito, mas minhas escadas parecem mais amplas. Antes, eu as subia sem nem pensar, pulando os degraus com facilidade, mas agora elas me chamam a atenção. É algo que você teria que confiar na minha palavra, ou acho que eu mesmo terei que confiar na minha, já que nunca pensei em medi-las até agora. Mesmo assim, hoje gastei energia suficiente ao cruzar o limiar da minha porta para fazer uma nota mental disso. Ultimamente, muitas coisas não parecem estar certas, mas eu caio fácil na armadilha da depressão, o que às vezes distorce a forma como me lembro das coisas. Minhas emoções tendem a enfraquecer minha confiabilidade como narrador, suponho.

Não me sinto triste, mas já passei por momentos em que não me sentia triste, só para depois perceber que estava afundado em um poço de tristeza, tão profundo que não podia ter surgido do nada. Mesmo assim, se isso for tristeza, é diferente de tudo que já senti. Ontem, saí para assistir a uma sessão de cinema à tarde e corri porta afora sem trancá-la. Sei que não tranquei porque, no meio do caminho, o pensamento me atingiu como um caminhão de dezoito rodas. Criei o hábito de dizer em voz alta “Estou trancando a porta agora” enquanto faço isso, porque sei que posso confiar em mim mesmo, ou pelo menos achava que podia. Voltei para corrigir meu erro, me xingando por perder os trailers. Ao pensar novamente naquelas escadas, girei a maçaneta e senti resistência. A porta estava trancada, mas eu sei que não a tranquei. Não disse que tranquei a porta, e eu me lembraria das minhas palavras. A menos que meus gatos tenham trancado a porta por mim, fui eu. Não é?

Será que é assim que se sente descer à loucura? Ficar obcecado pelos menores e mais insignificantes detalhes antes que nada faça sentido e tudo pareça uma mentira? Não é tão ruim quanto imaginei, se for isso, mas talvez eu ainda esteja nas fases iniciais. Ultimamente, não tenho tido muito apetite, então decidi comprar algumas azeitonas soltas e outras coisas em conserva que ficam nas mesas de bufê do supermercado. Amo coisas azedas e fermentadas, que me fazem franzir o rosto, comidas que revidam. Não me importo quanto tempo ficaram nadando em vinagre e ervas italianas secas; elas me fazem sentir algo. Decidi comê-las na mesa de jantar, em vez de em um canto escuro da casa, para aproveitar um pouco de luz solar para variar. O sol e eu nem sempre nos damos bem, mas quando preciso dele, realmente o desejo. Me fechar em casa em dias assim sempre parece errado, então sentir os raios de sol tocarem minha pele pelas frestas das persianas, enquanto mastigava cornichons e tortilhas crocantes, me fez sentir o mais normal possível, dadas as circunstâncias. Na verdade, decidi mandar uma mensagem para alguns amigos e tomar um drink no barzinho local naquela noite. Qualquer coisa para não ficar em casa pensando naquelas escadas.

Me arrumei para sair à noite, meio que esperando cancelar no último minuto. Costumo fazer planos quando estou buscando normalidade, mas frequentemente os abandono na hora de colocá-los em prática. Desta vez, porém, fui até o fim. Vesti uma roupa, passei um perfume cítrico e marcante e me forcei a sair pela porta. Quase ri ao chegar à escada. Parecia bobo, o jeito como parei no topo, como se fosse uma pista de obstáculos. As escadas não pareciam diferentes à vista, não estavam mais longas ou largas, nem cobertas de mofo ou cheias de rachaduras. Só... erradas. Tentei ignorar. Talvez eu esteja dormindo pouco. Talvez esteja falando sozinho demais. Mas então as contei.

Um, dois, três. Cada degrau era deliberado, como se o número pudesse me ancorar a algo objetivo. Oito degraus. Sempre foram oito degraus. Eu saberia; costumava subi-los de dois em dois. Mas quando cheguei ao fim, contei nove. Fiquei parado, com a respiração presa na garganta, tentando lembrar se havia errado. Olhei para trás, para a escada, de baixo. Parecia a mesma. Nada de anormal. Mas a contagem estava errada. Disse a mim mesmo que devo ter contado algum degrau duas vezes. Errei a conta. Acontece. Saí antes que pudesse me deter demais, meio desafiando o medo, meio rezando para não me assustar.

O bar estava barulhento, um tipo de barulho seguro. Copos tilintando, conversas se sobrepondo, alguém rindo alto demais perto dos banheiros. Meus amigos não notaram nada de errado comigo, o que me confortou mais do que deveria. Jogamos sinuca, reclamamos do trabalho e falamos sobre experiências horríveis de namoro. Não mencionei as escadas. Não falei da porta. Bebi o suficiente para parar de pensar. Mas quando cheguei em casa, o silêncio me atingiu como uma parede. A mudança foi imediata. Silêncio pesado, atento. Meus gatos não estavam na porta como de costume. Chamei por eles, mas não vieram.

Foi só quando fui pendurar as chaves que notei. A comida. O pote de azeitonas, os cornichons pela metade, a bandejinha de papel que deixei na mesa de jantar — estavam agora empilhados no balcão da cozinha. A bandeja estava vazia. Os potes, selados. A mesa, limpa. Eu não fiz isso. Sei que não fiz isso. O ar na sala mudou, como se alguém tivesse acabado de soltar o ar após segurá-lo por tempo demais.

Meu peito apertou. Olhei ao redor, meus olhos disparando para os cantos, para as saídas de ar, para o armário no corredor. De repente, percebi o som da geladeira zumbindo e como todos os outros ruídos da casa haviam se calado. Eventualmente, sentei na beirada do sofá, ainda de sapatos, com as chaves na mão. Meu olhar vagou para as escadas. Fiquei encarando-as por um longo tempo. Então me levantei e caminhei lentamente até elas. Contei, em voz alta desta vez.

“Um… dois… três…” Cada degrau rangia sob meus pés, mas apenas levemente, como se tentasse não ser ouvido. “Quatro… cinco… seis…” Minha pele arrepiou. O corredor atrás de mim parecia parado demais. “Sete… oito…” Parei. Meu pé pairou sobre o próximo degrau. Eu sabia, de alguma forma, que deveria ser o patamar. Mas não era.

“Nove.”

Olhei para cima.

Ainda havia mais um degrau acima de mim.

Anjo no Sótão

Durante o jantar, minha irmã Lindsey nos contou, toda animada, sobre o anjo no sótão. Crescemos em uma família religiosa, então não era tão estranho que o amigo imaginário dela fosse do tipo bíblico. Ela tinha oito anos na época, e eu, quinze. Isso foi há cinco anos. Estávamos na casa da minha tia Margaret, irmã da minha mãe, passando o verão. A casa da tia Margaret poderia ser considerada uma mansão por alguns. Cômodos e mais cômodos, três andares. Ao entrar pela porta principal, você é recebido por uma escadaria ampla e curva que leva ao segundo andar, onde ficam seis quartos, dois banheiros e uma sala envidraçada. Atrás da escadaria, no andar térreo, há uma cozinha, duas salas de estar, uma sala de jogos, uma sala de jantar e mais uma sala envidraçada. O terceiro andar, acessado por uma escada estreita, quase vertical, era basicamente o sótão. Um único cômodo amplo e aberto acima do resto da casa.

Lindsey passava os dias explorando a casa, e seu lugar favorito era o sótão.

No jantar, porém, me lembro dela dizendo:

“Achei que anjos fossem bonitos.”

E minha mãe respondeu: “Você lembra de Zacarias? Ele ficou apavorado quando viu um anjo.”

Minha irmã assentiu, como se entendesse tudo: “No começo, foi muito assustador. Mas só por um tempinho.”

Minha mãe e tia Margaret sorriram para ela, mas eu achei aquilo muito estranho. Por que uma criança inventaria algo assustador de propósito?

No dia seguinte, ela sumiu de novo para explorar. Não demos muita bola até a hora do jantar, quando percebemos que ela ainda não tinha voltado. Começamos a procurar pelos cômodos, chamando por ela. Eventualmente, chegamos à escada do sótão e lá estava ela, encolhida no pé da escada, chorando em silêncio. Minha mãe a pegou no colo e a levou para baixo, onde tentamos de tudo para confortá-la. Ela se acalmou, mas não nos contou o que aconteceu. Na verdade, ela não disse nada, acho que não conseguia. Nos últimos cinco anos, ela não falou uma palavra.

Foram tantos médicos e terapeutas, consulta após consulta, e nunca tivemos respostas. Ninguém conseguia explicar o motivo. E Lindsey também não explicava, nem mesmo por escrito. Não sei se ela mesma sabia por que não conseguia falar. Nós três, sem nunca dizer em voz alta, decidimos nunca mais voltar à casa da tia Margaret.

Isso até a semana passada, quando tia Margaret faleceu, e minha mãe, de alguma forma, acabou responsável por cuidar do espólio. Então, voltamos àquela casa, só eu e minha mãe. Lindsey se recusou a ir, e quem poderia julgá-la?

A casa parecia tão pesada quando chegamos. Minha tia tinha passado a viver só no andar térreo, então poucos cômodos tinham sinais de vida. O resto estava coberto de poeira, com todas as cortinas bem fechadas. Decidimos que seria mais fácil dividir um quarto, então escolhemos o mais limpo e o preparamos. Lençóis novos e uma janela aberta melhoraram o ambiente na hora, quase fazendo a gente esquecer o ar mofado e opressivo do resto da casa. Exaustas da viagem, dormimos profundamente naquela noite.

Na luz de um novo dia, nos sentimos mais corajosas e acabamos parando na escada do sótão. Ficamos ali por alguns minutos, minha mãe olhando para os degraus, eu observando ela. Poderíamos ficar ali o dia todo, então passei por ela e comecei a subir. Ela me seguiu de perto. As escadas rangiam a cada passo, gemendo sob nosso peso, como se nos avisassem. Ao chegar ao topo, vimos que não havia nada além de caixas e móveis antigos, cobertos por ainda mais poeira do que no andar de baixo. Algumas janelas com tábuas deixavam entrar luz suficiente para enxergar. Caminhamos pelo sótão, sem saber ao certo o que procurávamos. Uma caixa de livros antigos, a cômoda da minha avó, uma coleção de moedas de alguém. Uma mistura de alívio e decepção. Ainda não tínhamos uma explicação para o estado da minha irmã. Não havia nada de valor ali.

Decidimos descer e começar a separar as coisas da tia Margaret no andar térreo, organizando em caixas de “manter” ou “doar”. Eu estava distraída; algo no sótão parecia ter respostas, e eu precisava descobrir o que era. Esperei até minha mãe dormir aquela noite antes de voltar. Saí da cama e caminhei pelos corredores sinuosos. A lanterna do celular iluminava apenas alguns passos à frente. Parei na escada do sótão, olhando para o corredor estreito. Havia uma luz lá em cima, iluminando o topo da escada e o patamar.

A cada degrau que eu subia, me sentia mais calma, mais segura de mim mesma. Ao entrar na luz, uma sensação quente e reconfortante me envolveu. Era tão acolhedor. Vi uma figura diante de uma das janelas, no meio do cômodo. A luz parecia emanar dela. Fiquei alarmada, pensando que alguém tinha invadido a casa, mas o medo logo passou, dando lugar a uma paz profunda. Não, aquela figura deveria estar ali, e estava tudo bem. Meu corpo começou a se mover sozinho em direção a ela. Eu não estava no controle, mas também não me importava.

A figura estava de costas para mim, e, ao me aproximar, vi através da luz. Um manto cinza a cobria, com mangas tão longas quanto a barra, que roçava o chão. Ela se virou para mim, o capuz caindo ao redor do rosto como se fosse cabelo, o manto se movendo com fluidez, como se fosse mais do que tecido, como se fosse parte dela. O rosto, meu Deus, o rosto... era como uma tela em branco, de um cinza pálido, esticada sobre uma estrutura longa e estreita. A parte de mim que ainda estava consciente queria gritar, mas minhas pernas continuavam avançando, meus braços se estendendo. A figura abriu os próprios braços, me envolvendo, me puxando para dentro do tecido dela, me engolindo. E eu aceitei. Uma onda de calor se espalhou pelo meu corpo, e me deixei afundar. Nunca me senti tão segura, tão feliz, tão amada. Mas, à medida que meus membros ficavam mais leves, como se eu estivesse flutuando, o calor virou queimação. Eu não sentia mais nada além de um calor intenso e meus pulmões se contraindo. De alguma forma, consegui me forçar a voltar ao meu corpo, reassumir o controle. Arranquei-me do abraço dela e cambaleei para trás. Antes, eu estava flutuando; agora, era como se tivesse sido jogada contra o chão. Estava desajeitada, lutando para me mover como queria. Cada passo, cada respiração doía, e minha visão estava escurecendo. Pensei que estava na escada e estendi a mão para segurar a parede, mas só havia ar. Perdi o equilíbrio e caí de verdade, rolando escada abaixo e batendo com força as costas no chão. Então, escuridão e a sensação de flutuar novamente.

Quando acordei, minha mãe estava ao meu lado, acariciando meu cabelo. Percebi que estávamos no hospital. Quando ela viu meus olhos abertos, gritou de alívio, e lágrimas começaram a cair de seu rosto, pingando no meu. Tentei dizer algo, queria perguntar o que estava acontecendo, mas minha garganta se fechou. Nada saiu. Eu não conseguia falar.

sábado, 26 de julho de 2025

Os Ecos

Há uma trilha belíssima nas montanhas, que parece estar a mundos de distância da civilização. Cedros mais largos que a envergadura de um braço crescem junto a um pequeno riacho, e o topo oferece vistas da cidade ao sul e do deserto ao norte. Normalmente, está lotada, mas no inverno fica gelada e traiçoeira. Nos picos ventosos das montanhas, pouco antes do pôr do sol, a única voz que você provavelmente ouvirá é a sua própria, ecoando pelo vale.

Foi lá que vi a única coisa em minha vida que eu chamaria de sobrenatural.

Pessoas já morreram em uma crista estreita com penhascos de ambos os lados, escorregando no gelo e deslizando cada vez mais rápido pelas rochas íngremes. Lembro-me de um incidente especialmente trágico, em que até mesmo um membro de uma equipe de busca caiu para a morte.

Após esse evento, o serviço florestal começou a posicionar guardas-florestais onde a neve começava, e eles não permitiam a passagem a menos que você tivesse cravos ou grampons. Muitas pessoas não compreendiam completamente os riscos.

Essa era minha trilha favorita, a apenas cerca de quarenta e cinco minutos do meu trabalho. Na primeira vez que vi uma guarda-florestal no início da noite, fiquei surpreso. Ela foi amigável, mas pediu para ver algum tipo de tração para os pés antes de me deixar passar. Coloquei os cravos e continuei meu caminho. Não fiz o trecho perigoso, veja bem, fui apenas até o que chamavam de “sela”. Havia bastante gelo e neve, mas sem penhascos.

Eu ia cerca de uma vez por semana; era uma necessidade para mim. As pessoas falam sobre o valor de passar tempo na “natureza”. Como ecologista, eu meio que me oponho a esse termo. Talvez seja uma visão sombria do mundo, mas, para mim, as cidades são áreas mortas, manchas artificiais de concreto. Quando você sai para um lugar onde o ronco dos carros na estrada é substituído pelo vento passando pelos galhos e pelos chamados dos gaios-de-steller, isso não é “natureza”. É simplesmente a realidade.

Algumas semanas depois do início do inverno, eu já havia criado um vínculo com a guarda-florestal. Enquanto colocava meus cravos, conversávamos sobre pássaros, leões-da-montanha ou a rara subespécie de cobra-rei-das-montanhas endêmica daquela região. Por mais que ela amasse as montanhas, era um posto frio e solitário, e ela parecia gostar de um pouco de companhia.

Fiquei um pouco mais que o usual em um dia, pois ela tinha ouvido um pica-pau-de-cabeça-branca, uma ave que eu nunca tinha visto. Enquanto tentávamos ouvir o chamado novamente, ambos ficamos paralisados.

Algo mais sussurrou entre as agulhas dos pinheiros, quase inaudível acima do vento. Parecia uma voz, mas era ininteligível. Nossas cabeças se viraram na mesma direção ao mesmo tempo, olhando para o pico mais alto de toda a cadeia.

Havia uma trilha lá, mas era incrivelmente perigosa naquela época do ano. Se a guarda-florestal não tinha visto ninguém subir por aquele lado, significava que estariam descendo pelo outro, após quilômetros e quilômetros de gelo perigoso e neve profunda, que escondiam o que era um passo seguro de uma queda para a morte certa.

O som era tão fraco que não tínhamos certeza se não era imaginação ou apenas um eco vindo de algum lugar no vale. Ela contatou a base pelo rádio, mas ninguém havia informado que faria a trilha naquele dia. Ficamos em completo silêncio, ouvimos o pica-pau novamente, mas não olhamos. Nossos olhos vasculhavam a crista acima, esperando por um chamado diferente que nunca voltou.

Na correria do trabalho e da vida, eu havia esquecido da voz até a semana seguinte, quando vi a guarda-florestal novamente. Enquanto começávamos a conversar, perguntei se ela tinha visto algo. Eu me referia à vida selvagem, mas uma expressão séria tomou conta do rosto dela.

Ela perguntou se eu lembrava da voz no vento.

Eu lembrava, mas a implicação era sinistra. Parados ali, cercados por pinheiros e carvalhos, com apenas o som dos pássaros, ela me contou que ouvira outra voz vinda da montanha no dia anterior. Desta vez, era claramente alguém gritando por ajuda. Era fácil ver que ela ainda estava abalada.

Aparentemente, ela correu pela trilha o mais rápido que pôde, gritando para tentar localizar a pessoa, mas não conseguiu. Não tinha visto ninguém subir naquele dia, ninguém mencionara uma caminhada na base, e outro guarda-florestal verificara a entrada da trilha do outro lado. O outro guarda disse que não havia pegadas na neve, então era impossível que alguém tivesse subido por lá.

Ela me fez prometer ser extra cuidadoso e não continuar se a neve ficasse funda. A ansiedade dela me deixou inquieto, mas minha caminhada foi tranquila e serena, com a neve fresca tornando o cânion arborizado o mais silencioso que já ouvi, com branco puro cobrindo os galhos das árvores e as rochas.

A parte que não consigo explicar aconteceu na semana seguinte. Eu estava conversando com a guarda-florestal quando ouvimos um grito alto e claro ecoando pelas paredes íngremes do cânion.

“Socorro! Socorro!”

Imediatamente, ambos começamos a correr montanha acima. Joguei minha mochila no chão para ir mais rápido. A guarda-florestal estava à minha frente, meus pulmões e pernas começando a arder. A trilha era íngreme e escorregadia, e estávamos em altitude. Ouvi o chamado novamente e olhei para cima.

Tanto eu quanto a guarda-florestal vimos o homem entre as árvores, vestindo uma jaqueta amarela brilhante, descendo a montanha. Seus passos eram desajeitados e exaustos, sua voz desesperada. Ele estava talvez duas curvas acima de nós, uma figura amarela brilhante entre árvores escuras e neve branca.

Corri o mais rápido que pude, sabendo que algo terrível havia acontecido. A guarda-florestal estava bem à frente agora e dobrou uma curva escondida por arbustos. Quando a alcancei, ela estava completamente parada, a respiração embaçando à sua frente.

Era ali que tínhamos visto o homem, e ele estava correndo em nossa direção. Deveríamos tê-lo visto a essa altura, mesmo que tivesse escorregado e caído. O olhar da guarda-florestal estava fixo na neve fresca à sua frente, que não tinha pegadas.

Ela me pediu para ficar onde estava, enquanto continuava subindo a trilha. Após quinze minutos, ela voltou.

Não havia pegadas em lugar nenhum.

Fui instruído a descer a montanha, com cuidado e devagar. Ela chamaria um helicóptero para ajudar na busca. Da entrada da trilha, vi o helicóptero percorrendo a linha da crista, acendendo seu holofote enquanto começava a escurecer. Mais guardas-florestais chegaram ao estacionamento, depois subiram apressados a montanha carregando cordas e outros equipamentos. Preocupado, esperei por algumas horas.

Quando a guarda-florestal voltou, parecia confusa. Ao me ver, ela se aproximou rapidamente. Não encontraram nada; nenhuma pegada, nenhum homem de jaqueta amarela. Ela estava aliviada por eu estar lá para corroborar sua história, que só podia presumir que estava gerando ceticismo entre os outros guardas. Ela anotou meu depoimento e pegou meu nome e número.

Por mais que a situação me abalasse, tentei seguir com minha vida normal. O homem gritando e correndo cruzava minha mente com frequência, e eu sonhava com ele. O desespero cru em sua voz ecoava em minha mente, me acordava do sono. Era impossível deixar isso de lado, não importava quantas vezes eu dissesse a mim mesmo que precisava.

Estava no meu caminhão de trabalho durante uma pausa quando vi a notícia. Uma tempestade de vento inesperada havia pego seis montanhistas experientes na crista exposta, com rajadas acima de cem milhas por hora. Eles estavam amarrados juntos, e cinco caíram para a morte. O sexto foi forçado a cortar sua corda, ou seria arrastado do penhasco.

A foto dele estava lá, bem no topo do artigo. Ele usava a jaqueta amarela brilhante, lágrimas escorrendo por seu rosto devastado pela dor.

Queria ter feito algo, ter avisado eles. Mas como? O que eu poderia ter feito ou dito? Toda noite, me faço essas perguntas. Pergunto-me o que foi que ouvi, que vi naquele dia.

Não há explicação. No fundo, sei que não foi coincidência. Sei que não foi alucinação, porque a guarda-florestal viu e ouviu exatamente a mesma coisa. Isso enlouquece minha mente lógica.

Mas aconteceu. Lá em cima, nas montanhas nevadas, onde o terreno te separa do mundo mundane que construímos, os pássaros ainda cantam. As árvores ainda crescem. Os picos altos permanecem como estão há milhões de anos, alheios à lógica, à ciência ou até mesmo à nossa existência.

Para eles, foi apenas mais um eco.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Encontrei uma porta para lugar nenhum

Estou escrevendo isso porque não quero esquecer. Esquecer é algo terrível. Meu amigo sempre dizia isso. Certa vez, perguntei o motivo. Era tarde, estávamos sentados naquele campo, e ele disse algo como:

“É quando as coisas realmente morrem.” Ele olhava para o céu estrelado. Milhares de pontinhos prateados em um fundo preto como piche.

“O que você quer dizer com ‘realmente morrem’?” Olhei para ele. Ele era um cara excêntrico, sempre parecia estar em outro lugar. Talvez lá em cima, entre o mar de estrelas.

“Está vendo aquilo?” Ele apontou para o céu.

“As estrelas?” Lancei a ele um olhar confuso.

“A luz delas leva uma eternidade pra chegar até aqui. Algumas provavelmente nem existem mais, mas ainda podemos vê-las.”

“O que isso significa?”

“Essas estrelas podem estar mortas há muito tempo, mas ainda brilham lá em cima.” Ele se deitou na grama, com um sorriso melancólico no rosto.

Algumas semanas depois, estávamos novamente naquele campo, observando as estrelas. Quando ele não estava falando algo vago e filosófico, falava sobre as estrelas. Desde pequenos, ele dizia que queria ser astrônomo. Às vezes, seus olhos brilhavam, e ele falava sobre querer descobrir o que mais havia lá em cima.

Esse lado aventureiro dele sempre nos metia em encrencas. Ele deve ter me arrastado para prédios abandonados um milhão de vezes. Para ser honesto, eu amava cada segundo disso. Ele era meu melhor amigo por tantas razões quanto as estrelas no céu, e essa era uma delas.

Mas nossa última aventura acabou sendo mais do que uma simples encrenca. De alguma forma, algo chamou a atenção dele mais do que as estrelas naquela noite. Era uma porta. Não estava caída no chão. Estava lá, de pé, a poucos metros de onde costumávamos observar o céu.

“Quando isso apareceu aqui?” perguntei, meio brincando.

“Não sei...” Eu sempre sabia quando algo despertava a curiosidade dele, só pelo brilho em seus olhos. E esse brilho sempre me contagiava também.

“Quer abrir?” Eu não estava realmente perguntando, apenas dizendo o que ambos pensávamos.

Caminhamos até a porta. Ela era pintada de um preto brilhante, salpicada de prata reluzente. A maçaneta brilhava suavemente ao luar. Nunca tínhamos visto aquela porta em nenhuma das incontáveis noites que passamos ali. E, de repente, lá estava ela: uma porta solitária, de pé no nosso campo.

Meu amigo não perdeu tempo, esticando a mão para a maçaneta assim que chegou perto. A maçaneta girou com um clique satisfatório, e ele a empurrou, mas o que vimos do outro lado não era mais do mesmo campo de sempre. Não, do outro lado não havia grama nem o brilho distante de vaga-lumes.

Um céu preto como tinta, riscado de traços prateados, se estendia infinitamente. Se o céu daqui era um mar de estrelas, o que estava atrás daquela porta devia ser os outros seis. Nem preciso dizer que meu amigo cruzou para o outro lado sem pensar duas vezes, e eu fui logo atrás.

O que parecia areia estalava sob meus pés, uma extensão branca como marfim nos cercava. Estruturas pretas brilhantes pontilhavam a paisagem à nossa frente: algumas pareciam estranhamente familiares, como armazéns abandonados que já tínhamos visitado, enquanto outras eram obeliscos imponentes, curvados e afundando na areia.

“Nossa!” Ele disse o que ambos estávamos pensando.

“É...” 

“Pra onde vamos primeiro?” Ele olhou para mim, com aquele brilho nos olhos.

“Que tal ali?” Apontei para a estrutura mais próxima. Era um grande prédio retangular, escuro e imponente.

Caminhamos por um tempo e logo percebemos que era mais longe do que pensávamos. Ele se erguia até o céu, e estar na base fazia parecer que continuava para sempre. Suas paredes eram lisas e, ao olhar mais de perto, marmorizadas com um prata brilhante. Brilhavam suavemente, como rachaduras de luz do sol atravessando cortinas em uma tarde preguiçosa de verão. O que mais me chamou a atenção, porém, foi que não havia porta. Um buraco retangular interrompia abruptamente sua superfície lisa.

“Temos que ver como é por dentro.” Ele estava ficando cada vez mais animado. O brilho em seus olhos agora era mais do que um brilho, era um fulgor. Como o mármore prateado, como o céu salpicado de prata, como estrelas mortas há muito tempo que se recusavam a ser esquecidas.

Paramos por um momento, olhando para a estrutura enigmática à nossa frente. Uma escuridão sem fim habitava seu interior. Não era um preto como o céu, mas uma estranha e inquietante ausência. Era como se a escuridão ali fosse mais do que a falta de luz; era, de alguma forma, menos que isso.

Um leve estalo vindo de dentro quebrou o silêncio daquele momento. Então percebemos que havia algo lá: dois pontinhos prateados de luz. Não, não eram exatamente prateados. Havia um tom amarelado que lhes dava um brilho sobrenatural.

Outro estalo suave. Demos um passo para trás. Algo estava errado. A novidade daquele lugar havia perdido a graça, e começamos a perceber o quão estranho ele era. Era como se eu fosse criança novamente, parado no pé da escada depois de apagar a luz. Essas estrelas que nos encaravam na escuridão não eram as nossas. Não eram as que observávamos há anos. Aqueles olhos fantasmagóricos, amarelos como fogos-fátuos, nos encaravam de volta.

“O que... é isso?” Não consegui responder à pergunta dele na hora. E ainda não consigo.

Num instante, ou talvez menos que isso, eles sumiram. Aquelas luzes amarelas estranhas. Ele. Virei a cabeça freneticamente, sem palavras. Tentei chamar por ele várias vezes, mas uma coisa me escapava: o nome dele.

Vaguei por aquele lugar deserto pelo que pareceu uma eternidade, procurando algo, qualquer coisa que me levasse àquele brilho em seus olhos. Àquela luz como estrelas mortas há muito tempo.

Não consegui encontrar. Não o encontrei, nem nada dele. Quando já havia desistido, lá estava ela, com seu preto brilhante e prata reluzente. Não caída no chão, estava lá, de pé, esperando: aquela porta.

Antes que percebesse, eu estava girando a maçaneta e atravessando. Lá estava. O campo sereno. O canto suave dos grilos e o brilho delicado dos vaga-lumes. Mas algo estava faltando, havia uma vazio indizível naquele momento. Um nada sem fim que espreitava ali.

Olhei para o céu uma última vez antes de ir embora. O prata brilhante ao qual eu estava tão acostumado estava manchado de amarelo. Ele disse que esquecer é algo terrível, mas como posso lembrar se nunca soube o que era, para começo de conversa? Tenho certeza de que ambos pensamos que aquela porta não levaria a lugar nenhum.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

O Glitch na Escuridão

Era 2012. Eu era apenas um adolescente comum, viciado em energéticos — latas de Monster e Red Bull sempre empilhadas ao lado do meu teclado. Barras de chocolate eram meu lanche favorito durante longas sessões de jogos. A escola era chata, mas, ao chegar em casa, eu podia me perder nos jogos por horas, às vezes a noite inteira.

Uma noite, tropecei em um jogo indie novo em um fórum que eu frequentava. Chamava-se O Vazio, anunciado como um jogo de terror psicológico com uma história e atmosfera fora do comum. Curioso, fiz o download na hora. Os gráficos eram simples, um pouco pixelados, mas a atmosfera era pesada — como se alguém tivesse colocado a alma em cada pixel.

Sentei-me com um Monster na mão e uma barra de chocolate meio comida ao lado do teclado. Quando o jogo começou, eu estava em uma floresta densa e escura. Uma névoa espessa pairava no ar, e eu sentia como se estivesse sendo observado. O caminho estreito que eu seguia se contorcia, mas algo parecia errado. As árvores mudavam de forma. De repente, eu estava em um lugar que não tinha visto antes, mesmo tendo seguido uma trilha reta.

Sombras se moviam no canto da minha visão. Claro, podia ser só o design do jogo, mas às vezes eu ouvia sussurros — suaves, quase inaudíveis — que não faziam parte do roteiro ou dos sons do jogo. Parecia que algo tentava falar comigo.

Quando desviava o olhar da tela, meu quarto parecia diferente. A escuridão no canto perto do computador parecia densa, como se engolisse a luz.

Continuei jogando. As latas de Monster se acumulavam, e o chocolate sumia mais rápido que o normal. Meus dias viraram um borrão. Na escola, eu cochilava nas aulas, mas, ao chegar em casa e sentar na frente do PC, ficava alerta de novo.

Quanto mais eu jogava, mais estranhas as coisas ficavam. A tela piscava às vezes, e, quando eu olhava para o lado, via de relance coisas que não deveriam estar lá — uma sombra parada no fundo, uma porta se abrindo sem eu clicar, uma figura sumindo quando eu piscava.

Mostrei aos meus amigos, mas eles nunca viam nada de estranho. “São só glitches”, diziam. Mas eu sabia que era outra coisa.

Uma noite, após um Red Bull e mais chocolate, o jogo começou a mostrar mensagens estranhas nas caixas de texto. Meu nome apareceu. Ouvi vozes pelos fones de ouvido — sussurros repetindo meu nome.

Tentei fechar o jogo, mas o computador não respondia. Era como se ele se recusasse a me obedecer.

Aos poucos, minha realidade e o mundo do jogo começaram a se misturar. Vi coisas no meu quarto que lembravam a floresta do jogo. Sombras se moviam de forma anormal. Sentia uma presença me seguindo, mesmo com a tela desligada.

Acordei uma manhã com arranhões no braço — como se algo tivesse tentado me agarrar. Não fazia ideia de como apareceram.

Queria parar de jogar. Mas o jogo ainda estava lá, no meu disco rígido, esperando. Quando o abri novamente, tudo piorou. Uma nova mensagem apareceu na tela:

“Nos deixe sair.”

Cliquei em “Não.”

Meu computador morreu.

Uma névoa fria tomou o quarto.

As vozes se aproximaram.

Agora estou preso em algum lugar entre o jogo e a realidade. Não sei quanto tempo passou, mas ouço eles — as sombras, os sussurros — todas as noites.

Eles estão esperando.

E um dia, eles vão se libertar.

Quando esse dia chegar, acho que não serei o único a ser puxado para dentro.

Alguém mais já baixou um jogo que não deveria? Porque não sei se vou conseguir sair dessa.

Eu organizei meu banheiro e agora acho que joguei fora o verdadeiro eu

Passei a maior parte de ontem rearrumando meu banheiro. Não era o plano. Só entrei pra pegar um fio dental e acabei no chão, afundada em caixas plásticas e produtos vencidos. Acho que todo mundo tem aquela gaveta ou armário. Aquele onde as coisas vão pra morrer. O meu, por acaso, é onde guardei quase uma década de reservas de produtos de cuidados com a pele, acessórios pra cabelo e itens de higiene pessoal pela metade.

Não era acumulação. Juro. Eu só gosto do que gosto. Quando encontro um shampoo que funciona, compro cinco. Se um desodorante tem um cheiro bom e passa suave, fico com ele até o fim dos tempos. Pode chamar de hábito, de lealdade à marca, de consumismo exagerado. Eu sempre vi como estar preparada. Até ontem.

No começo, foi estranhamente satisfatório. Jogar fora máscaras faciais ressecadas. Agrupar lâminas de barbear numa bandejinha. Alinhar meus hidratantes reserva como soldadinhos. Senti que estava recuperando espaço. Fazendo um inventário da minha vida.

Aí comecei a notar padrões.

Três escovas de cabelo iguais, todas abertas, mas quase não usadas. Quatro tubos de pasta de dente, do mesmo tipo, mesmo tamanho, comprados em anos diferentes, mas todos abertos pela mesma ponta. Cinco bastões de desodorante. Mesma marca, mesmo cheiro, em diferentes estágios de uso. Eu não lembrava de ter usado mais de um.

Tudo bem. Talvez eu tenha uma mania estranha de abrir algo, esquecer e abrir outro. Tentei ignorar.

Mas havia um peso em tudo. Como se meus pertences estivessem me observando. Esperando que eu tomasse uma decisão. Cada vez que pegava algo, sentia como se estivesse descolando uma parte de mim. Como uma camada de mim mesma que tinha endurecido.

Esfreguei rótulos até a tinta sair. Abri frascos só pra confirmar que estavam vazios. Fui implacável. Chega de estocar. Chega de guardar coisas “só por garantia”. Disse a mim mesma que não traria nada novo pra esse lugar até criar espaço pra isso. Espaço de verdade.

Não só nas gavetas. Em mim.

Acho que foi quando começou.

Comecei a sentir que estava reduzindo mais do que meu banheiro. Cada cotonete, cada tampa encrostada, cada máscara facial esfarelada — eu jogava fora como se estivesse podando uma parte do meu corpo. Não era metáfora. Era físico. Como se estivesse lixando minhas próprias bordas pra me fazer menor.

E não era só lixo. Eram minhas células de pele. Meus cabelos. Saliva seca no fio dental. Meu cheiro, preservado em loções. Minhas digitais, marcadas em tampas, potes e tubos por anos.

Percebi que nosso DNA está em tudo.

Cada vez que uso algo, deixo um rastro. Um resíduo. Um registro. E acho que nunca tinha entendido o quanto de mim deixei neste apartamento. O quanto selei em gavetas, tampas e latas de lixo. Não memórias. Pedaços.

Estava limpando uma caixinha branca organizadora quando encontrei um fio do meu cabelo enrolado num canto. Velho, quebradiço, quase transparente. Peguei sem pensar e joguei no lixo. Mas parei.

Eu tinha cortado meu cabelo há dois meses. Curto. Aquele fio era longo.

Muito mais longo do que deveria ser.

E estava amarrado numa ponta.

Olhei pro saco de lixo. Eu o enchi com pedaços de mim. Não só tranqueira, não só bagunça, mas versões descartadas. Eus passados que, aos poucos, foram sendo apagados com o tempo, deixados pra trás em embalagens, resíduos e fiapos.

Continuei. Não conseguia parar.

Aí encontrei uma caixa.

Estava enfiada no canto mais fundo do armário embaixo da pia. Pequena, branca, sem identificação. Não lembro de tê-la colocado lá. Não lembro de tê-la visto na última vez que limpei.

Dentro da caixa, havia um saco selado. Dentro do saco, lixo. Fios dentais usados. Discos de algodão encharcados de água micelar. Cotonetes com manchas pretas nas pontas. Fios de cabelo. Uma lente de contato. Um curativo.

Tudo meu.

Mas eu nunca guardei isso. Nunca coloquei num saco. Nunca escondi.

Fiquei sentada no chão por muito tempo. Não me mexi. Só olhei pro saco e comecei a respirar mais devagar. Algo não estava certo.

Olhei pra cima e vi meu reflexo no espelho. Nada de errado. Só eu. Mas quando inclinei a cabeça, o reflexo não se moveu na hora. Como se houvesse um atraso. Uma demora no vidro.

Não dormi ontem à noite.

Deixei a luz acesa. Fiquei deitada na cama, pensando em cada item que já joguei fora. Cada toalha que doei. Cada frasco vazio que joguei na lixeira. Quantos pedaços de mim foram replicados. Preservados. Arquivados.

Voltei ao banheiro hoje de manhã e o lixo que ensaquei ontem sumiu.

Não foi levado pra calçada. Não foi colocado no corredor. Apenas... sumiu.

A única coisa embaixo da pia era a caixa de novo. Mesmo tamanho. Mesmo lugar. Mas agora estava cheia de itens que eu ainda não tinha jogado fora. Coisas que eu ia descartar hoje. Uma escova de dentes que não abri. Um sérum que ainda estava usando. Uma lixa de unha que eu juro que estava na gaveta.

Abri o armário de remédios. Todos os produtos estavam cheios. Novos. Alinhados direitinho.

Não lembro de ter feito isso.

Não sei o que joguei fora.

Não sei qual versão de mim eu sou.

E quando sorri pro meu reflexo, ele sorriu de volta cedo demais.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Meu novo bairro tem apenas uma regra: Nunca, sob nenhuma circunstância, ajude um animal perdido

A casa foi uma pechincha. Esse deveria ter sido o primeiro sinal de alerta. Uma casa de três quartos no estilo artesanal, com uma varanda que a contornava, por menos que o custo do meu apertado apartamento de dois quartos. Ficava em um condomínio tranquilo e isolado chamado "Córrego do Bordo", onde todos os gramados eram de um verde impossível e os vizinhos acenavam com todos os cinco dedos.

A presidente da associação de moradores, uma mulher chamada Carol com um sorriso brilhante e duro como o de uma boneca de porcelana, me recebeu no primeiro dia. Ela me entregou uma cesta de boas-vindas com uma garrafa de vinho branco barato e uma única folha plastificada.

"Estamos muito felizes em tê-lo aqui, Marcos", disse ela, com os olhos franzindo de um jeito que não parecia genuíno. "Somos bem tranquilos aqui no Córrego do Bordo. Não temos regras sobre a altura do gramado ou as cores das cercas. Só temos uma."

Ela bateu uma unha perfeitamente manicure na folha plastificada. Nela, em uma fonte grande e amigável, estavam as palavras:

Regra #1: Se você vir um animal que pareça perdido ou em perigo, não se aproxime. Não o alimente. Não o deixe entrar em sua casa. Entre, tranque as portas e ignore-o até que ele vá embora.

Eu ri, achando que era uma piada. "O quê, os guaxinins aqui são do crime organizado?"

O sorriso de Carol não vacilou. "Não é uma sugestão, Marcos. É a única coisa que exigimos de você. É para a segurança e harmonia da comunidade." O tom dela era leve, mas seus olhos eram mortalmente sérios. Foi a primeira vez que senti um calafrio no ar quente da tarde.

No primeiro mês, tudo foi perfeito. Silencioso. Pacífico. Quase esqueci da regra estranha. Via pessoas passeando com seus cachorros na coleira, gatos tomando sol nas varandas. Eles claramente tinham donos, estavam claramente onde deveriam estar. A regra parecia uma peculiaridade estranha de uma era passada.

Então veio a tempestade na noite passada.

Foi uma tempestade daquelas, com trovões que faziam as janelas tremerem e uma chuva que caía em cortinas. Era por volta da meia-noite quando ouvi, um som que cortou o barulho da tempestade. Um ganido agudo e patético.

Olhei pela janela da sala. Encolhido sob o beiral da minha varanda, tremendo e encharcado, estava um golden retriever. Era lindo, com olhos grandes e tristes e uma coleira de couro, mas sem identificação. A cada trovão, ele se pressionava contra a minha porta e choramingava.

Meu coração partiu. A folha plastificada estava na minha bancada, e as palavras de Carol ecoavam na minha cabeça. Entre, tranque as portas e ignore-o.

Mas como eu poderia? Era só um cachorro. Um animal assustado e perdido. Qual seria o pior que poderia acontecer? Eu estaria quebrando uma regra estúpida e arbitrária de uma presidente de associação com mania de controle.

Então, fiz isso. Abri a porta.

O cachorro praticamente caiu para dentro, deixando uma poça no meu piso de madeira. Ele me olhou com tanta gratidão, esfregando a cabeça molhada na minha mão. Peguei uma toalha e uma tigela de água, e ele imediatamente se acomodou no meu tapete, soltando um suspiro de alívio. Senti uma onda de tranquilidade. Viu? Só um cachorro.

Adormeci no sofá assistindo TV. Fui acordado algumas horas depois por um som que não era da tempestade.

Toc. Toc. Toc.

Uma batida lenta e deliberada na minha porta da frente. A chuva tinha parado. O cachorro no chão levantou a cabeça, soltou um rosnado baixo e, estranhamente, trotou até a porta, abanando o rabo uma única vez, preguiçosamente.

Olhei pelo olho mágico. Na minha varanda estava um homem. Ele era alto, impossivelmente alto, vestido com um terno antiquado e impecável, como um vendedor de porta em porta dos anos 1950. Ele sorria, um sorriso largo e amigável que mostrava dentes demais, todos perfeitamente alinhados e brancos.

Abri a porta uma fresta, ainda com a corrente. 

"Posso ajudar?"

"Boa noite", disse o homem, com uma voz suave e agradável. "Peço desculpas pelo horário. Acredito que você encontrou meu cachorro?" Ele apontou com a cabeça para o retriever, que agora estava sentado pacientemente aos seus pés, olhando para ele.

"Ah, sim, ele estava lá fora na tempestade", falei, meu alívio me fazendo sentir tolo por ter sentido medo. "Que bom que você o encontrou."

O sorriso do homem alto se alargou, esticando seu rosto de uma forma que parecia antinatural. "Ele tem o hábito de fugir. É um pouco travesso." Ele se inclinou para a frente, seus olhos escuros e sem piscar fixos nos meus. "Mas ele é muito bom no que faz."

Meu sangue gelou. "No que... faz?"

O homem riu, um som seco e farfalhante. Ele se abaixou e acariciou a cabeça do cachorro.

"Claro", disse ele, sem desviar o olhar de mim. "O trabalho dele é encontrar a pessoa mais gentil do bairro."

Ele se endireitou, sua figura imponente parecendo bloquear toda a luz da varanda.

"Muito obrigado pela sua hospitalidade", disse o homem, seu sorriso finalmente alcançando os olhos, que agora brilhavam com uma luz aterrorizante e faminta. "Ele gostou muito de você. Decidiu que quer que você conheça o resto da família."

Minha mente gritava para eu bater a porta. Bater, trancar, correr! Mas meu corpo não obedecia. Eu era uma estátua, minha mão congelada na porta. O sorriso do homem não vacilava enquanto ele dava um leve empurrão na porta. A corrente de segurança de latão não quebrou nem se partiu. Ela esticou, se alongando como bala mole com um gemido metálico suave antes de cair, frouxa e inútil.

"Assim está melhor", disse ele, agradavelmente.

Ele não entrou. Apenas deu um passo para trás e fez um gesto com a palma aberta em direção à rua. Não era uma ordem. Era um convite. E, por razões que não consigo explicar, me vi saindo para a varanda. O golden retriever trotava à nossa frente, com o rabo erguido.

O ar lá fora era diferente. A tempestade tinha lavado tudo, mas o mundo parecia abafado, como se eu o estivesse vendo através de um vidro fumê. Os postes de luz projetavam sombras longas e distorcidas que pareciam se contorcer e girar nas bordas da minha visão. Enquanto caminhávamos, notei outras coisas.

Um gato preto e lustroso emergiu de baixo de uma cerca viva, seus olhos brilhando com um leve fosforescência. Ele se juntou ao retriever. Algumas casas adiante, um papagaio estava pousado em uma caixa de correio. Ele não grasnou nem falou; apenas girou a cabeça, acompanhando nosso progresso em silêncio perfeito. Todos eles se moviam conosco. Uma guarda de honra de animais silenciosos e vigilantes.

Olhei para as casas por onde passávamos. Pelas grandes janelas, eu podia ver meus vizinhos. Eles estavam congelados no lugar, como manequins em dioramas elaborados. Uma família estava sentada ao redor de uma mesa de jantar, com os garfos levantados a meio caminho da boca. Em outra casa, um homem estava parado no meio de um passo, com um pé pairando sobre o chão. Todos estavam voltados para a nossa direção, com rostos inexpressivos, olhos arregalados e vazios.

"Não se preocupe com eles", disse o homem alto, notando meu olhar. "Eles são muito bons em seguir as regras."

Estávamos indo para o final da rua sem saída, para a casa mais antiga do quarteirão, uma grande colonial que esteve escura e aparentemente vazia desde que me mudei. Conforme nos aproximávamos, senti uma vibração baixa através das solas dos meus sapatos, um zumbido profundo que parecia emanar da própria casa.

O golden retriever liderou a procissão pelo caminho e sentou pacientemente diante da pesada porta de carvalho. Os outros animais formaram um semicírculo silencioso atrás de nós, todos os olhos fixos em mim.

O homem alto caminhou até a porta. Ela se abriu antes que ele a tocasse, revelando nada além de uma escuridão profunda e impenetrável lá dentro. O zumbido baixo ficou mais alto, ressoando nos meus ossos. Parecia um ronronar. Um ronronar gigantesco e faminto.

O homem se virou para mim, seu sorriso tão largo e aterrorizante como sempre. Ele gesticulou para a escuridão.

"Depois de você", disse ele. "Eles estão muito ansiosos por isso."

Mudança

Não sei exatamente o que aconteceu, e meu namorado também não. Estamos ambos assustados e procurando respostas que provavelmente nunca encontraremos. Para contexto, Tim e eu moramos juntos há dois anos e, honestamente, nunca tivemos brigas sérias.

Alguns detalhes importantes:

Ele é careca. No último ano, ele decidiu raspar a cabeça, achando que ficaria melhor do que manter o cabelo ralo. Isso nunca foi um problema para minha atração por ele, e ele sabe disso.

Ele trabalha em um emprego que, às vezes, exige que ele viaje por curtos períodos. Normalmente, são apenas algumas noites fora, e ele me avisa se os planos mudarem, se vai ficar mais tempo ou voltar mais cedo.

E, por fim, ele é incrivelmente gentil. Nossas discussões nunca terminam em gritos e, definitivamente, não envolvem xingamentos ou abusos. Já fui humilhada e verbalmente agredida por parceiros no passado, então sei reconhecer um homem ruim quando vejo um. Tim não é assim.

No final da semana passada, Tim saiu para uma de suas viagens de trabalho e disse que voltaria na terça-feira de manhã. Eu o deixei no aeroporto na sexta-feira à noite e comecei meu fim de semana sozinha com nossos dois gatos.

Ele não me ligou nenhuma vez enquanto estava fora. Isso foi incomum, mas achei que ele deveria estar ocupado e deixei pra lá. Ele tinha me enviado uma mensagem dizendo “acabei de pousar” na sexta-feira, o que já era suficiente para mim.

Na segunda-feira de manhã, acordei em uma casa congelante. Onde moro, está fazendo entre 27 e 32 graus Celsius todos os dias, e eu nunca deixo o ar-condicionado muito frio para meu conforto. Quando verifiquei o termostato, ele mostrava a mesma temperatura de sempre, apesar do ar ao meu redor parecer gelado. Os gatos estavam encolhidos juntos no sofá, debaixo da nossa manta.

Enquanto decidia se deveria simplesmente aumentar a temperatura do ambiente, a porta da frente se abriu, e meu namorado entrou arrastando os pés. “Oi!” eu o cumprimentei, confusa, mas animada por vê-lo. Eu tinha certeza de que não havia recebido uma mensagem dizendo que ele voltaria hoje, mas poderia ter perdido.

Por mais surpresa que eu estivesse com seu retorno antecipado, fiquei ainda mais intrigada com o gorro na cabeça dele. Quem usa gorro em julho? E por que eu nunca tinha visto aquele gorro azul-escuro antes?

Tim não disse nada, jogou a bolsa de viagem com força aos meus pés e foi arrastando os pés pelo corredor até nosso quarto. Eu o segui e perguntei como tinha sido a viagem. Ele apenas grunhiu em resposta e bateu a porta do quarto.

Imediatamente, os piores pensamentos passaram pela minha cabeça. Talvez ele tivesse perdido o emprego. Talvez, por algum motivo repentino, ele achasse que eu tinha feito algo para trair sua confiança enquanto ele estava fora. Bati na porta do quarto. “Podemos conversar?” perguntei, tímida. Tim abriu a porta e ficou ali, me encarando com um olhar ameaçador. “Você deveria ter me ligado, e não ligou,” ele disse com uma frieza na voz que eu nunca tinha ouvido antes.

Ele não tinha me pedido para ligar. E, como já mencionei, normalmente é ele quem me liga durante essas viagens. “Quer dizer… Desculpa-me, mas—” comecei a responder. Tim passou por mim, foi até o sofá da sala, jogou o gorro do outro lado da sala e se sentou, cruzando os braços sobre o peito.

Foi então que notei que ele tinha cabelo novamente. Não apenas um pouco de cabelo, como se estivesse na hora de se barbear e ele não tivesse feito isso. Ele tinha exatamente a mesma quantidade de cabelo que tinha antes de decidir ficar careca, com o mesmo padrão de calvície. A casa inteira ainda estava muito fria, mas o ar ao redor de Tim parecia especialmente gelado. “Por que você não me ligou, sua vadia?!” ele exigiu saber quando finalmente falou novamente. Sua voz estava tão alta que assustou os gatos, que saíram correndo da sala.

Eu não respondi. Não conseguia formar uma resposta. Com lágrimas nos olhos, me virei e fui para a cozinha. Enquanto preparava ovos mexidos às pressas, tentando me acalmar, olhei para trás e vi Tim me encarando da porta. Seus braços estavam soltos ao lado do corpo, e seus olhos pareciam vazios e sem vida. O ar na cozinha começou a ficar mais frio. Ele ficou ali, exatamente assim, durante todo o tempo em que cozinhei.

Não era só o fato de Tim estar sendo duro comigo sem motivo aparente. Toda a aura ao redor dele parecia errada. Era o Tim, mas estava tudo errado.

Ofereci a ele um prato de ovos, mas ele não respondeu nem se sentou à mesa comigo. Enquanto eu comia, ele voltou para o quarto e ficou me observando por trás da porta entreaberta. Passou o resto da manhã em silêncio total no quarto. Saí para o trabalho depois de uma hora, esperando que as coisas talvez ficassem menos estranhas depois de um tempo separados.

Voltei para casa tarde naquela noite, e a casa estava extremamente fria. Cada cômodo parecia uma câmara frigorífica. A luz do nosso quarto estava acesa, mas Tim ainda estava trancado lá dentro. Decidi dormir no sofá, embora a presença de Tim ainda me deixasse arrepiada, mesmo estando atrás daquela porta fechada.

Mas, quando acordei na manhã seguinte, a luz do quarto estava apagada, e Tim não estava mais lá. Normalmente, ele tiraria um dia de folga após uma viagem, então não esperava que ele estivesse no trabalho naquela manhã. A temperatura da casa parecia normal novamente. Peguei meu celular e vi uma mensagem de Tim. “Acabei de pousar,” dizia. A mensagem tinha sido enviada uma hora antes.

Então, percebi que tinha várias chamadas perdidas de Tim dos últimos dias. Chamadas que não tinham chegado de forma alguma. Ele deixou um correio de voz naquela manhã. Enquanto eu ouvia, a porta da frente se abriu, e Tim entrou.

“Olááá!” ele exclamou, no seu jeito alegre de sempre. Colocou a bolsa de viagem cuidadosamente junto à parede e me puxou para um abraço. O cabelo dele tinha sumido. “Desculpe-me por te surpreender,” ele disse. “Decidi pegar um carro por aplicativo em vez de te ligar tão cedo para me buscar.”

Contei a Tim o que tinha acontecido no dia anterior. Falei tudo sobre como ele estava agindo de forma assustadora e cruel e como eu não tinha recebido nenhuma ligação dele.

E agora, nós dois estamos tentando entender quem — ou o quê — esteve na nossa casa comigo.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Meu Melhor Amigo Mudou

Conheço meu amigo Gary há mais de 17 anos, desde os 11 anos, quando começamos o ensino médio, e recentemente ele começou a mudar.

Eu e Gary nos conhecemos na aula de inglês, quando a professora nos colocou sentados lado a lado. Eu era jovem e estava ansioso para fazer novos amigos, então, assim que nos sentamos, me apresentei.

“Oi, eu sou o Peter, qual é o seu nome?” perguntei, tentando criar algum tipo de amizade no primeiro dia de aula. “Gary”, ele respondeu timidamente, claramente nervoso. “Prazer em conhecer você, Gary. Gosta de super-heróis?” perguntei com um sorriso tão largo que me surpreende não tê-lo assustado. “Sim”, ele respondeu com um pouco mais de entusiasmo.

Depois disso, conversamos durante toda a aula de inglês, mal fazendo o trabalho. Falamos sobre os filmes do Batman e do Homem de Ferro que haviam sido lançados, e ele me disse que nunca tinha assistido ao filme do Homem de Ferro. Fiquei chocado e contei que tinha o DVD em casa. Sugeri que, se ele anotasse o número da mãe dele e eu o da minha, poderíamos trocá-los no dia seguinte e marcar um pijama na minha casa.

Depois disso, ficamos inseparáveis durante o ensino médio, o técnico e a universidade. Após a faculdade, não nos falávamos tanto, mas mantínhamos contato e nos encontrávamos ocasionalmente para tomar uns drinks e relembrar os velhos tempos.

A última vez que vi Gary antes dos acontecimentos que vou compartilhar hoje foi há um ano, no aeroporto, depois que eu, Gary e nossas esposas juntamos algumas economias para explorar a América do Sul.

Durante a viagem, notei algumas pequenas mudanças, mas nada muito significativo. Ele começou a se encolher quando ficava chateado ou cansado e sempre se aninhava nas coxas da esposa no sofá de qualquer acomodação que estivéssemos. Atribuí isso a ele ser submisso à esposa; ele nunca teve muita confiança, então imaginei que isso se estendia ao quarto. Ainda assim, era desconfortável lidar com isso por quatro meses.

Enquanto estávamos na Argentina, fomos a um pequeno pub galês, e ele me disse: “Você lembra daquele dia em que caminhamos pelo bosque depois da escola e vimos aquele cachorro morto?” O tom dele era tão sério que eu não gostaria de reviver aquele momento. “S-sim, por quê?” murmurei, preocupado com o que ele diria em seguida. “Penso muito nisso. Me dá nojo que ninguém teve a dignidade de enterrar aquela criatura linda, nem mesmo nós. Por que não fizemos nada, Peter?” ele exclamou, ficando cada vez mais alto, a ponto de os locais começarem a lançar olhares irritados. “Éramos crianças, cara. Olha, tá ficando tarde, vamos voltar pro hotel”, respondi, confuso com a raiva dele, mas de certa forma entendendo.

Depois daquela noite na Argentina, fiquei aliviado que faltava apenas uma semana para o fim da viagem. Comecei a me sentir desconfortável perto do Gary e de suas atitudes submissas, então me distanciei do grupo pelo resto da viagem, o que acabou azedando um pouco a experiência.

Mas ele ainda era meu melhor amigo.

Recentemente, porém, Gary passou por um divórcio complicado e voltou para nossa cidade natal, onde ainda moro. Ofereci um encontro para tomar algo e tentar animá-lo, mas foi quando comecei a notar mudanças drásticas, não no comportamento, mas na aparência.

Ele estava desleixado, do tipo que você vê em séries dramáticas exageradas. O cabelo estava comprido até os ombros, o hálito fedia, as unhas estavam longas e pareciam uma churrasqueira suja, e ele estava magro de um jeito nada saudável. Atribuí isso a algum tipo de depressão e fiquei preocupado. Perguntei como ele estava lidando com tudo, e ele explicou que estava sendo difícil, mas que era bom estar de volta. Disse que o pai dele o contratou como recepcionista na clínica veterinária onde trabalha, enquanto ele se reergue.

Ouvir isso me deixou um pouco mais tranquilo, pois acreditei que ele se recuperaria, mas ainda me doía vê-lo naquele estado.

Vi Gary mais algumas vezes, mas parecia que ele só falava sobre os animais que passavam pela clínica, sobre como eram maltratados e como isso o deixava furioso. No geral, ele parecia gostar do trabalho e estava, aos poucos, se recuperando.

Há cerca de duas semanas, recebi uma mensagem dele perguntando se podia passar a noite em casa, só para relaxar, tomar umas cervejas e dormir no sofá. Eu e minha esposa não vimos problema, já que era sexta-feira e ninguém trabalhava no dia seguinte. Esse é um dia do qual me arrependo profundamente.

A noite foi legal, nos divertimos, minha esposa foi dormir, e colocamos o filme do Homem de Ferro para relembrar o que nos uniu como amigos. Por volta das 2h da manhã, fui para a cama.

Às 4h da manhã, acordei com um barulho estranho vindo da sala. Desci para ver como Gary estava, e o que vi me deixou gelado. Gary, nu, de quatro, arranhando a porta. Após uns três minutos, ele parou, levantou a perna e urinou na porta e no chão. Depois, rastejou e se deitou no chão como um cachorro. Fiquei em choque, paralisado, sem saber o que fazer. Não sabia se o confrontava ou se apenas tentava cortar contato. Escolhi a segunda opção. Apesar de estar horrorizado, não podia humilhar meu amigo de 17 anos assim, mesmo que o que ele fez fosse doentio. Talvez ele estivesse apenas bêbado, não sei.

Na manhã seguinte, acordei cedo e pedi que ele fosse embora, inventando que eu e Michelle (minha esposa) tínhamos planos. Ele entendeu e foi embora. Não o bloqueei, pois não queria ser tão direto, mas recusei todos os convites para sair e me limitei a conversas curtas por mensagem.

Há três dias, recebi uma mensagem dele: “Eu sei que você sabe”. Fiquei apavorado, senti como se uma ninhada de aranhas tivesse eclodido e rastejado pela minha pele. Não sabia se me sentia ameaçado ou se ele estava apenas admitindo seu comportamento estranho. Não sabia o que fazer.

Não contei à minha esposa para não preocupá-la, mas não consegui dormir naquela noite, e ainda bem que não dormi.

Às 3h57 da manhã, ouvi um barulho familiar na porta: arranhões, os mesmos de duas semanas antes. Sabia que era Gary. Não sabia o que fazer. Chamar a polícia? Abrir a porta? Estaria imaginando coisas? Contra meu bom senso, desci, peguei uma faca por precaução e esperei os arranhões pararem. Após quatro minutos de arranhões constantes, o silêncio veio. Esperei uns 20 segundos, que pareceram uma eternidade, e abri a porta. O que vi foi a coisa mais perturbadora dos meus 28 anos de vida.

Uma figura usando um terno mal costurado feito de pele de cachorro de verdade, adaptado para um humano, rastejava para longe, com um rabo de cachorro costurado e uma faca na boca, tudo iluminado apenas por um poste de luz.

Chamei a polícia imediatamente e expliquei a situação, mas eles não encontraram nada. Passei as informações de Gary, e eles o entrevistaram, mas não havia evidências.

Enquanto escrevo esta mensagem, posso ouvi-lo latindo do lado de fora da minha casa. Por favor, alguém, o que devo fazer?

domingo, 20 de julho de 2025

Já nos conhecemos antes?

Olá de novo, ou seria apenas olá? Será que nos encontramos desta vez? São tantas pessoas para lembrar que me perdoe se eu esquecer seu nome. Preciso da sua ajuda. Não sei como acabei nesta situação, mas parece que estou preso em um looping temporal, como no filme Feitiço do Tempo. Já vi o mundo acabar milhares de vezes e preciso de alguém para me ajudar.

No começo, não eram apocalipses catastróficos. Tudo começou com coisas pequenas: eu era atropelado por um carro e morria, então, na próxima vez, esperava o carro passar antes de atravessar a rua. Coisas assim, bem simples. Mas, depois de umas cem repetições, as coisas começaram a ficar mais extremas. O primeiro caso mais grave foi um homem com uma faca que correu em minha direção e me esfaqueou até a morte. Então, na próxima tentativa, chamei a polícia antes. Eles chegaram, impediram o ataque, mas uma bala perdida me acertou quando o homem da faca avançou contra eles. Depois disso, decidi tomar um caminho diferente para a cafeteria. Na primeira vez que consegui chegar lá, uma explosão de gás aconteceu assim que entrei, me matando e, presumo, todos os outros que estavam lá.

Depois disso, resolvi tentar sair da cidade. Fui pegar um trem, que descarrilou e matou todos na plataforma, incluindo eu. O mais estranho é que, enquanto estava na plataforma, chequei as notícias e a explosão de gás não tinha acontecido dessa vez.

Isso me fez pensar: e se as coisas ruins estivessem acontecendo apenas para me matar? Decidi tentar ficar em casa e esperar o loop passar. Bem, na única vez que fiz isso, um avião caiu na minha sala de estar. Concluí que o melhor seria vagar pela cidade durante o dia, prestando muita atenção ao meu redor. E, acredite, isso me levou mais longe do que qualquer outra tentativa, mas acabou falhando quando fomos atingidos por um ataque de arma química.

Nesse ponto, decidi que deveria evitar multidões para minimizar as vítimas. O problema é que eu não tinha carro, então minhas opções eram transporte público ou caminhar — e o transporte público não tinha sido gentil comigo naquele dia. Comecei a caminhar logo pela manhã. Ao meio-dia, já estava nos arredores da cidade, com terrenos rurais ao longo da estrada. Fiz questão de me manter bem afastado de qualquer veículo que passava. Claro, isso não impediu que bombas me matassem. Após um clarão intenso, alguns segundos depois, acordei de volta na minha cama. Nas tentativas seguintes, tentei correr, mas, pela primeira vez, a causa da morte se repetiu exatamente. Foi quando percebi que a única forma de evitar um evento era estar fora de seu alcance. Passei algumas tentativas procurando a bicicleta mais fácil de “pegar emprestada”. Depois de algumas tentativas, descobri que uma das bicicletas numa loja de conveniência estava destrancada. Dessa vez, consegui chegar à cidade vizinha, mas ela era propensa a terremotos. Foram necessárias algumas tentativas, mas eventualmente encontrei um lugar seguro para sobreviver ao terremoto.

Depois veio a declaração de guerra. Vários líderes mundiais foram assassinados ao mesmo tempo, todos se culparam, e os mísseis começaram a voar. Surpresa: a primeira bomba nuclear atingiu a cidade onde eu estava. Curiosamente, se eu não fosse para aquela cidade, a guerra não acontecia. Percebi que, como estava longe o suficiente da primeira explosão nuclear para não morrer imediatamente, a causa da morte devia ser outra.

Comecei a acompanhar as notícias para evitar qualquer coisa que parecesse perigosa. Desisti de vez quando vi que um vírus varreu mais da metade dos Estados Unidos em questão de horas, deixando poucos sobreviventes. Os especialistas diziam que 97% da população morria em cinco minutos após os primeiros sintomas — e, acredite, não eram cinco minutos confortáveis. Depois disso, tentei quebrar o loop por conta própria algumas vezes, se é que você me entende. Obviamente, isso também não funcionou. Foi quando tive uma ideia: um equipamento de mergulho poderia me dar oxigênio suficiente para sobreviver à primeira onda do vírus, e, se o padrão se mantivesse, isso significaria que o vírus nem aconteceria. Eu estava certo. Parecia um idiota com uma máscara de mergulho roubada, mas estava certo. Isso, no entanto, não impediu o meteoro. E é aí que estou preso pelos últimos cem dias: às 15h37, o mundo acaba. E eu não sei se há alguma forma, além de quebrar o loop temporal, de impedir isso.

É por isso que estou escrevendo agora. Acho que descobri uma maneira de quebrar o loop. Passei algumas décadas, a essa altura, estudando mitologias sobre loops temporais, e acho que sei em qual deles estou preso.

Você conhece o conceito de purgatório? Bem, é mais ou menos assim, exceto que ainda não estou morto, e é contagioso. É uma punição, e acredito que, assim que eu expiar meus pecados e fizer as pazes, serei libertado. Acontece que, ao compartilhar meu conhecimento, acabei espalhando o alcance dessa maldição. Agradeço a todos vocês por assumirem uma parte do meu sofrimento e por fazerem penitência pelos meus pecados.

Se quer meu conselho, não tente desviar do carro. Dói muito menos do que a sensação de seus pulmões se liquefazendo no peito.

Até a próxima, nos vemos no próximo loop.

Havia uma Luz do Lado de Fora da Minha Janela, Eu Sei que Havia...

Ter um quarto no porão tem suas vantagens. Primeiro, ninguém realmente te incomoda lá embaixo, então é difícil ser perturbado se você está tentando relaxar. O porão é sempre fresco, e se você é como eu, prefere dormir em um quarto mais frio. Não importa o quão quente esteja lá em cima, seu quarto sempre parece perfeito.

Claro, às vezes pode parecer um pouco assustador, mas quando eu tinha dezessete anos, eu era realmente sortudo. Meu quarto no porão naquela época tinha uma janela, uma daquelas janelas de porão que ficam um pouco acima do nível do solo. Durante o dia, ela deixava entrar bastante luz, e à noite, dava para ver as árvores, silhuetadas pela luz da lua lá fora. Era um quarto ótimo, acho que pode ter sido o melhor que já tive até então. Minha cama ficava na posição perfeita para olhar pela janela enquanto eu pegava no sono, e a pintura do quarto fazia ele parecer claro e espaçoso. Era branco, mas não um branco frio e austero. Quase um tom cremoso.

Tudo começou numa noite no início da primavera do meu penúltimo ano do ensino médio. Eu estava indo dormir como sempre. Por volta das onze e meia da noite, pegando no sono com um vídeo no YouTube no celular. Tinha escola na manhã seguinte, então o vídeo era algo que eu não ficaria acordado para assistir. Acho que era uma lista de top dez, algo bem comum, suficiente para me fazer apagar como uma luz.

Quando meus olhos começaram a se fechar, senti o sono me envolvendo. Normalmente, você não percebe esse momento, ele simplesmente acontece, e então você está dormindo. Mas no exato instante em que eu estava prestes a mergulhar na inconsciência, algo chamou minha atenção. Havia uma luz piscando, fraca, branca e intermitente.

Sentei-me, pensando que era algum anúncio irritante no meu celular, mas quando olhei, vi que o vídeo que eu estava assistindo tinha acabado, sem propaganda, e a tela agora estava escura. A única luz no meu quarto era aquela que piscava, e parecia estar vindo de fora da minha janela. Pensei que fosse apenas um carro passando, o tráfego na rua onde morava era leve, mas não inexistente. Não, não era isso. A linha de árvores entre o quintal e a rua teria feito a luz parecer mais irregular, e ela durava tempo demais, de forma muito rítmica.

Fiquei assim por alguns minutos, olhando para a janela com confusão. Decidi me levantar para olhar pela janela e tentar entender o que era aquela luz.

Estava atordoado, minha mente enevoada por quase ter adormecido. Mas posso garantir, eu estava bem acordado quando percebi. A luz não parecia vir de um lugar específico. Era apenas um ponto piscante ao longe. Do lado de fora da janela, bem na borda inferior, começava o quintal, uma grande extensão de grama que terminava na linha de árvores. A luz parecia vir da beira das árvores, como se viesse de algo no chão. Mas eu não conseguia ver o que era. Quando a luz apagava durante o piscar, eu tentava ao menos distinguir de onde poderia estar vindo. Pensei que talvez alguém tivesse deixado uma lanterna cair e ela estivesse no modo estroboscópico. Mas por que o dono não a teria pegado? Isso eu não entendia. Estava escuro demais para ver qualquer coisa quando a luz se apagava, então eu não conseguia distinguir nada. A lua brilhava lá fora, mas era fraca demais para iluminar algo.

Se eu tivesse cortinas, teria fechado elas, mas nunca quis cortinas antes, então não tinha. Sempre reclamei que, com cortinas, meu quarto pareceria um caixão, enterrado sob a terra.

Dez minutos se passaram assim, e a luz não dava sinais de parar. Decidi que investigaria pela manhã, mas, por enquanto, precisava dormir. Voltei para a cama e puxei as cobertas sobre mim para bloquear a luz piscante lá fora. Demorou, mas eventualmente consegui dormir. Não foi um sono reparador, nem profundo. Foi como se eu tivesse passado a noite inteira num estado estranho, meio acordado, meio dormindo.

Quando acordei na manhã seguinte, o sol estava brilhando. Levantei e olhei pela janela, mas não vi nenhum sinal da fonte da luz.

Levantei-me e me preparei para a escola, escovei os dentes e comi algumas colheradas de aveia antes de sair para pegar o ônibus. Ao sair, parei um instante. Meu pai estava na sala de estar, trabalhando no computador. Perguntei se ele tinha visto alguma luz do lado de fora na noite anterior, algo que pudesse tê-lo acordado. Ele disse que nada o havia perturbado, mas que, fosse o que fosse, provavelmente não era nada.

Fui até o local onde a luz estava na noite anterior, atravessando a grama alta na beira das árvores para ver se encontrava algo, mas não achei nada. Foi aí que comecei a me sentir um pouco inquieto. Não conseguia explicar, mas algo parecia errado em tudo aquilo. A luz não era particularmente forte, mas eu sabia que ela esteve lá.

Saí da linha de árvores, voltei para a entrada da garagem e caminhei até a rua, chegando bem a tempo de pegar o ônibus.

Não mencionei isso para ninguém na escola, afinal, não tinha motivo real para estar preocupado com a luz que vi. Provavelmente havia uma explicação razoável.

O resto do dia passou sem nada digno de nota. Aulas, almoço com amigos, uma prova surpresa de história. Voltei para casa por volta das três da tarde e fui para o meu quarto fazer o dever de casa. Estava começando a me sentir melhor sobre a noite anterior, pensando que poderia ter sido só um sonho ou, se fosse real, algo sem importância.

Mas quando a escuridão da noite chegou, minha preocupação voltou. Evitei ir para o meu quarto até saber que precisava dormir.

Coloquei outro vídeo, algo leve e alegre, certo para me fazer adormecer com pensamentos felizes e tranquilos. Demorou muito, devia ser uma da manhã quando finalmente senti o sono me tomando.

Mas, assim como na noite anterior, bem na linha entre estar acordado e dormindo, a luz começou de novo. Levantei imediatamente da cama e olhei pela janela. Estava mais perto agora, no meio do quintal, apontando diretamente para minha janela. Dessa vez, senti medo de verdade. Não tinha ideia do que era aquilo, se era algum tipo de brincadeira ou o quê, mas não me sentia seguro. Corri escada acima até o quarto do meu pai, que ficava do mesmo lado da casa que o meu, e o acordei. No começo, ele pareceu irritado, mas quando expliquei, ele percebeu o quanto eu estava abalado e se levantou para olhar pela janela dele. Ele abriu as cortinas e olhou para a noite agora completamente escura. Não havia nada lá, e ele tentou me confortar, dizendo que era algum tipo de pesadelo louco.

Voltei para a cama relutantemente, e a luz não estava mais lá. Mas, ao deitar, ela piscou uma vez antes de se apagar pelo resto da noite. Não dormi nada.

Levantei, me vesti e fui para a escola. Fiz meu pai me levar para comprar cortinas naquela tarde.

Naquela noite, fechei as cortinas grossas e deitei para tentar dormir, sem YouTube dessa vez. Senti o sono chegando, e por um breve momento, senti alívio, pensando que finalmente dormiria direito. Foi quando o arranhar começou. Era sutil, quieto, quase como se não estivesse lá. Mas estava, e foi suficiente para me acordar completamente.

Pulei da cama, com a cabeça voltada para a janela coberta. Era um som lento e agonizante. Como unhas arrastando lentamente num quadro-negro. A cada poucos segundos, parava, provavelmente ao chegar ao fim da janela, só para começar novamente. Senti um enjoo, minha cabeça latejava enquanto o medo dava lugar ao terror. Tinha que pensar em algo; a noite anterior me ensinou que ir até meu pai não adiantaria. Levantei lentamente e acendi a luz do quarto. Com a luz acesa, o arranhar continuou, mas agora havia um baque. Era como se, quando o que quer que estivesse fazendo aquele som recomeçasse, do topo da janela, batesse com força antes de arrastar novamente. Claro, imaginar que era uma mão era só uma suposição minha, eu não tinha como saber o que estava lá fora.

Num momento de clareza, decidi que precisava saber o que era. Estendi a mão, antes que pudesse mudar de ideia, e abri a cortina.

O que quer que estivesse fazendo aquele som tinha sumido, substituído agora apenas pela luz piscante. Estava mais perto, bem do lado de fora da minha janela, e a cada piscada, brilhava tanto que o mundo ao redor desaparecia. Fui pegar meu celular, mas ele estava descarregado, o cabo de carregamento aparentemente desconectado. Isso descartava gravar.

Enquanto a luz continuava a piscar, uma ideia me ocorreu. Peguei um caderno e comecei a escrever. Estava anotando a duração de cada piscada, talvez fosse código Morse ou algo assim, mas eu não podia simplesmente ficar olhando de novo. Precisava ser proativo.

Anotei as piscadas por talvez uma hora, perdi completamente a noção do tempo. Meu celular estava conectado agora, mas por algum motivo não carregava. Não me importei mais, decidi que o que quer que fosse aquilo, não queria que outros vissem, e estava garantindo que eu não pudesse usar meu celular para mostrar a ninguém.

Devo ter desmaiado em algum momento, porque acordei de repente e percebi que já estava claro, o objeto piscante tinha ido embora. Olhei para baixo e vi que anotei muitas coisas no caderno naquela noite, página após página de pontos e traços.

Era sábado, então não precisava ir para a escola. Peguei meu celular e vi que ele finalmente tinha carregado.

Fui ao Google e procurei um tradutor de código Morse online. Encontrei um facilmente e comecei a inserir o que anotei na noite anterior. Demorou uma hora, eram muitos pontos e traços. A maioria era muito repetitiva, mas eu não queria arriscar perder nada do que vi.

Quando terminei, pressionei enter, e o programa começou a traduzir em texto. Senti o sangue sumir do meu rosto ao ver o que dizia. “Novo amigo. Novo amigo. Novo amigo.” Repetia sem parar, novo amigo, novo amigo, novo amigo. Comecei a tremer violentamente, sentia que estava enlouquecendo. Naquele momento, meu pai bateu na porta. Ele abriu e me viu ali, com o celular na mão, e percebi que lágrimas escorriam pelo meu rosto. Ele olhou para a tela do celular e viu o que estava escrito. Olhou para mim, com preocupação nos olhos.

Subimos e conversamos sobre isso. Ele ainda achava que era um sonho, mas decidiu que, de qualquer forma, o que quer que estivesse acontecendo, eu não podia dormir no porão por enquanto. Tentei convencê-lo de que não era um sonho, que era real. Ele não se convenceu, e quanto mais eu tentava fazer ele acreditar, mais preocupado comigo ele ficava.

Foi um dia triste, eu estava exausto, mas não conseguia dormir. Só fiquei lá, olhando para o celular, relendo a mensagem várias vezes. Meu pai foi para o quarto dele, fazendo algumas ligações. Sei que eram sobre mim.

Naquela noite, meu pai arrumou o sofá para mim na sala de estar. Era no andar principal da casa, o andar de cima sendo apenas um sótão. Se ele tivesse deixado, eu teria dormido lá em cima, o mais longe possível do porão.

Deitei e fechei os olhos, tentando dormir. Obviamente, não seria uma tarefa fácil, especialmente porque precisava manter todas as luzes acesas. Não havia chance de dormir no escuro aquela noite.

Deve ter sido por volta das duas da manhã quando comecei a pegar no sono. Dessa vez, realmente dormi, mas não por muito tempo.

Foi o arranhar que me acordou. Sentei-me lentamente, só para entrar em pânico ao perceber que estava de volta no meu quarto. Corri para a porta, tentando desesperadamente abri-la, mas ela não cedia. A porta se recusava a abrir para fora e me libertar, como se algo do outro lado a estivesse bloqueando. O arranhar ainda estava lá, rítmico e assustador. Eu estava chorando agora, mal conseguia enxergar através das lágrimas. A histeria crescia dentro de mim, e corri para as cortinas, arrancando-as da parede enquanto gritava com o que quer que estivesse lá fora. A janela atrás das cortinas estava mais baixa agora, e em vez de estar na borda da grama, agora estava abaixo do solo. À luz do meu quarto, eu podia ver a terra atrás do vidro da janela, e a mão que saía dela.

A mão emergiu da terra, afastando o solo ao seu redor enquanto se erguia até o topo da janela para arrastar unhas cobertas de lama pelo vidro.

Encolhi-me no chão, balançando para frente e para trás, alternando entre soluços incontroláveis e gritos no topo dos pulmões. Enquanto a mão arranhava a janela, a luz no meu quarto começou a piscar a mesma mensagem amaldiçoada da noite anterior. Novo amigo, novo amigo.

Pareceram dias assim, eu balançando e em pânico, a mão arranhando, e a luz piscando. O ritmo nunca mudava, a mesma mensagem amaldiçoada piscando na luz, o mesmo arranhar lento contra minha janela. Minha voz ficou rouca, tornando-se um sussurro áspero de pavor enquanto eu estava lá, meus olhos tentando e falhando em se fechar com força suficiente para evitar ver a luz acender e apagar.

Devo ter desmaiado eventualmente. Quando acordei, meu pai estava me sacudindo, segurando as lágrimas enquanto olhava para mim. Pude ver no reflexo dos óculos dele que eu estava coberto de terra.

Mudamos pouco tempo depois. Tivemos que mudar. Com o custo da minha terapeuta, não podíamos mais pagar o aluguel lá.

Nos mudamos para um pequeno apartamento na cidade. Era no décimo segundo andar do prédio, bem acima do chão. Não era muito bom, mas era barato. Felizmente para mim, é bem longe do porão do prédio.

Minha terapeuta tentou me diagnosticar. Eles jogam vários termos por aí, mas eu nunca presto muita atenção. Eu sei que foi real. Eu sei que foi.

Ainda durmo com as luzes acesas. De vez em quando, acordo do lado de fora da porta do porão lá embaixo, aparentemente impedido de descer apenas pelo cadeado resistente na porta.

Tenho medo de que um dia o cadeado não me impeça, que um dia eu esteja novamente sob a terra com o que quer que fosse aquela coisa do lado de fora da minha janela, ligada àquela mão vil, procurando por seu novo amigo.

sábado, 19 de julho de 2025

Minha esposa e eu temos recebido presentes que não estão na nossa lista de casamento

Estávamos juntos há sete anos quando finalmente tomei coragem para pedi-la em casamento. Foi tudo o que eu sempre sonhei e mais um pouco. Mas as coisas começaram a ficar... estranhas depois que marcamos a data do nosso pequeno casamento e montamos a lista de presentes com os itens habituais, além de alguns "seria bom ter".

Um pacote de papelão embrulhado com um laço rosa bem arrumado começou a chegar toda semana antes do nosso casamento. No início, eram inofensivos o suficiente, embora ainda muito estranhos. O primeiro continha uma única foto Polaroid minha e da minha esposa, tirada anos atrás. Lembramos imediatamente quando e onde ela foi tirada, mas não conseguíamos explicar por que alguém se daria ao trabalho de rolar tão fundo no meu perfil do Facebook para encontrá-la e enviá-la para nós.

"Nossa, isso é assustador pra caramba", disse minha esposa.

"É, pois é..." foi tudo o que consegui responder, antes de me perder olhando para a foto.

Estávamos ocupados demais para nos preocuparmos muito com isso, mas então chegou o próximo pacote. Outra foto nossa. Desta vez, uma que eu sabia que nenhum de nós tinha compartilhado com o mundo. Nada de post no Facebook. Nada de mensagem pra mãe. Nada. Nem mesmo estava mais no meu celular – mas, novamente, nós dois lembrávamos de tê-la tirado, porque nenhum de nós poderia esquecer aquele pôr do sol. Foi a primeira vez que dissemos "eu te amo" um para o outro, com o céu coberto de tons de laranja e vermelho enquanto o dia dava lugar à noite. Como poderíamos esquecer?

Nossa despreocupação virou pânico, e eu tentei, sem sucesso, acalmar Bella com uma fachada de falsa confiança. Eu também estava abalado, mas duas pessoas apavoradas alimentando o medo uma da outra não ia acabar bem. Depois de conversarmos, decidimos fazer um boletim de ocorrência. Era uma ideia boba, mesmo na hora, já que não havia nenhuma prova de que quem estava enviando isso tinha intenções maliciosas, mas tentar se antecipar à situação não faria mal. Bella precisava de algo para acalmar, mesmo que relutantemente, sua mente.

Três dias depois de registrarmos o boletim, o terceiro pacote apareceu na nossa porta. A essa altura, já tínhamos percebido o padrão semanal e decidimos ligar para nossos trabalhos avisando que chegaríamos um pouco atrasados naquela manhã. Mas, como se estivesse em sintonia com nossos próprios pensamentos, o pacote já estava lá esperando quando acordamos. Nenhuma das nossas tentativas de pegar o responsável funcionou depois disso – o pacote simplesmente aparecia em algum lugar que não estávamos vigiando.

O laço estava um pouco desgastado, um pouco menos rosa. Como se estivesse perdendo a alegria que deveria representar. Dentro, havia uma foto mais recente. Talvez de alguns meses atrás.

Só que nenhum de nós tinha tirado aquela foto.

Nunca estivemos na cidade ao fundo.

Não havia muito que Bella pudesse fazer a essa altura, exceto chorar, misturando confusão e medo toda vez que um novo pacote chegava, enquanto eu escondia minha própria inquietação para cuidar dela. Lugares onde nunca estivemos, beijos que nunca demos, refeições que nunca comemos. Havia pilhas de fotos em cada pacote após o terceiro. Todas retratando uma vida que nunca vivemos.

Eu queria parar de abri-los, mas nunca conseguia. Bella insistia que descobríssemos o que havia dentro de cada um, como se encontrasse algum conforto além do medo que os flashes dessa outra vida despertavam nela.

O último pacote chegou ontem. As fotos dentro eram o que já esperávamos, exceto pela última, escondida no fundo, sob uma série de momentos supostamente felizes.

Era da Bella.

Deitada no chão da nossa sala, com braços e pernas retorcidos de uma forma que embrulhava o estômago. A luz do sol entrava por um canto da janela e refletia em uma faca ensanguentada cravada no peito dela.

E lá no canto, distante o suficiente para que a cena horrível no centro permanecesse o foco, mas visível o bastante para chamar minha atenção, havia uma figura. Inicialmente tão obscurecida pela escuridão que parecia uma silhueta vazia de um humano, antes de se revelar aos poucos, em questão de segundos.

Era eu.

Virei-me para Bella, com o sangue pulsando de terror nos meus ouvidos, e ela... não estava mais lá. O espaço onde ela estava momentos antes agora estava vazio. Alguma parte de mim sabia onde ela estava, e eu arrastei-me pelo chão frio até a sala, com a habilidade de alguém que esqueceu como andar, antes de fixar os olhos no meu pior pesadelo.

A mesma cena. Bella. Sem vida. Sem tudo o que fazia dela, ela. E enquanto eu estava naquele canto, cumprindo a doente profecia que me fora imposta, o clique familiar de uma foto sendo tirada de algum lugar desconhecido rompeu o silêncio que cobria tudo ao meu redor.

Pensei melhor sobre meu primeiro instinto – ligar novamente para a polícia – já que o que estava diante de mim agora era autoincriminador. Como convencer as pessoas da verdade quando todas as evidências testemunham contra você? Quando o próprio Pai Tempo testemunha contra você?

Eu não – ainda não – sei nem qual é a verdade.

Tudo o que sei é que não tive nada a ver com o que aconteceu com minha Bella.

E agora, com o coração despedaçado pela tristeza e luto, e a mente tomada por um medo primal, estou condenado a uma vida fugindo.

Uma vida sem saber o quê.

Sem saber por quê.

Sou uma sacerdotisa xintoísta. Um silêncio antinatural está consumindo meu santuário, e acredito que seja a sombra do Zumbido de Yonomori

Por vinte e dois anos, o som do oceano foi a base da minha vida. Sou sacerdotisa em um pequeno santuário na costa de Oita, e as ondas são nossa oração mais antiga. Elas são constantes, eternas. Pelo menos, eram. Há três semanas, enquanto caminhava pela trilha até os penhascos, por dezessete segundos, o oceano ficou mudo. Não foi que as ondas pararam; eu podia vê-las quebrando nas rochas abaixo. Elas simplesmente não emitiam som. Foi a primeira vez. Não foi a última.

Meu nome é Akari. Meu mundo sempre foi construído de sons. O suave respingar da água no chōzuya, onde os visitantes purificam as mãos. O estalo seco de uma oração. O toque profundo e ressonante do sino principal. O sussurro do vento nas folhas da sagrada árvore de cânfora. Esses são os sons da paz. Da ordem.

O silêncio veio por eles, um a um.

Depois que silenciou o oceano, ele invadiu os terrenos do santuário. A fileira de sinos de vento de bronze, os fuurin, que minha avó pendurou, ficou imóvel. Eu os observava, em uma forte brisa marítima, balançando violentamente em suas cordas, mas sem produzir som algum. Era como assistir à memória de um som, um eco ao contrário. O silêncio tinha uma qualidade perturbadora. Não era apenas quietude; era um vazio. Um pedaço dele parecia frio, o ar rarefeito e morto.

Tentei lutar contra isso. Realizei os rituais de purificação oharai, agitando a varinha ōnusa, entoando as palavras antigas destinadas a dissipar impurezas. O silêncio engoliu minhas orações. Minha voz saía dos lábios e simplesmente desaparecia, sem jamais alcançar o ar. O ato parecia vazio, sem sentido. Minha fé, pela primeira vez na vida, não encontrava apoio.

Desesperada, recorri aos komonjo do santuário, os registros mantidos por gerações de meus ancestrais. Passei dias com os pergaminhos frágeis, roídos por insetos, procurando qualquer menção a tal fenômeno. Encontrei algo, em um texto do período Edo. Um sacerdote descreveu uma “praga silenciosa”, uma quietude que se espalhava, causando “um frio na alma” e sendo um prenúncio de loucura. Ele deu um nome: o Shiinon. O Som da Morte. O texto dizia que os anciãos daquela época atribuíam o fenômeno às montanhas a oeste, uma cordilheira que chamavam, com grande temor, de Nageku Yama — a Montanha do Lamento. O relato foi descartado pela geração seguinte como folclore.

Esta noite, o Shiinon veio pelo coração do santuário.

Durante as orações da noite, ele se infiltrou no haiden, o salão de adoração. Fluiu como névoa sobre os tatames. As chamas das velas tremulavam, mas não emitiam som. O aroma do incenso ainda estava lá, mas o crepitar da queima havia desaparecido. Fiquei diante do altar, minha mão trêmula enquanto erguia o kagura suzu, os sinos sagrados usados para chamar os kami.

Eu os sacudi. E não havia nada.

Vi o conjunto de sinos vibrar intensamente, senti o peso familiar deles em minha mão, mas havia apenas o vácuo opressivo e morto do Shiinon. Naquele momento, a ordem do meu mundo se despedaçou. Isso não era um espírito a ser apaziguado. Era uma ausência. Uma fome.

Não sei o que me moveu. Foi um instinto nascido de puro terror. Os pergaminhos diziam que era um prenúncio de loucura vindo da “Montanha do Lamento”, e pensei: e se a loucura vier de lutar contra isso? E se você não pode preencher um vazio, apenas recusar alimentá-lo? Soltei os sinos, ajoelhei-me no chão de madeira e fiz a única coisa que ia contra todos os meus instintos. Não cantei. Não orei. Esvaziei minha mente, controlei minha respiração e ofereci meu próprio silêncio. Enfrentei o vazio com meu próprio vazio.

Foi como segurar a respiração debaixo d’água. Uma pressão esmagadora cresceu ao meu redor, um frio profundo que penetrava nos meus ossos. Mas, após um longo e aterrorizante momento, a presença recuou. Ela se afastou do haiden, e o primeiro som que ouvi foi o suspiro frenético e irregular da minha própria respiração.

Agora são 23h52. O silêncio recuou para os limites do terreno do santuário, por enquanto. No rescaldo, tremendo, fiz o que meus ancestrais não conseguiram. Abri meu laptop. Pesquisei por “Nageku Yama”, por “Montanha do Lamento de Oita”, por “fenômeno sonoro”. E encontrei um post neste mesmo fórum.

Foi escrito por um engenheiro de som. Ele escreveu sobre uma vila chamada Yonomori, aninhada nas montanhas. Ele falou de um zumbido enlouquecedor de 43 Hz, um “Som Infeccioso” que chamou de Kansen-on. Ele descreveu uma compulsão, uma caverna, e sua fuga para um hotel em Beppu.

Meu sangue gelou. Beppu é a cidade logo abaixo da costa onde estou. O “Som Infeccioso” dele e meu “Som da Morte” não são dois fenômenos diferentes. São duas faces do mesmo horror. Ele ouviu a voz da montanha; eu estou sendo consumida por sua sombra. Ele foi atraído para uma caverna; eu estou sendo apagada em minha própria casa.

Então, estou escrevendo isso. Não é uma confissão, nem um pedido de socorro. É um aviso, e é uma mensagem.

Ao engenheiro de som em Beppu: você não está ficando louco, e você não escapou. Você ouviu apenas metade da canção. Eu ouvi a outra metade. A entidade naquela montanha não apenas grita. Ela também escuta. E acho que estou começando a entender o que ela quer.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Uma Garota Chamada Red

Algum de vocês já conheceu uma garota chamada Red? Essa pergunta eu fiz... tantas vezes, para tantas pessoas diferentes. Mas a resposta é sempre a mesma. Algo como "não, desculpe-me". Está começando a me deixar louca.

Deixa eu voltar um pouco no tempo. Há alguns anos, quando eu estava no ensino médio, eu estava no fundo do poço, tanto literal quanto figurativamente, por mais irônico que pareça. Eu estava imersa em uma depressão profunda, mas meus pais eram contra medicamentos. Eu passava a maior parte do tempo em brechós, tentando encontrar coisas que me trouxessem um pouco de felicidade, mesmo que por um instante. Foi quando a conheci...

Ela estava na minha turma de ciências do nono ano. Conversamos um pouco (eu, uma lésbica enrustida e desajeitada), e, para minha surpresa, nos demos super bem! Ela era a garota mais linda que eu já tinha visto. Não vou entrar em todos os detalhes porque, hoje, tudo parece meio embaçado na minha memória, mas havia uma coisa que ninguém podia esquecer: ela tinha um cabelo ruivo cereja, lindo, que emoldurava seu rosto perfeitamente.

Para resumir uma história longa, MUITO longa, nosso relacionamento foi complicado, e acabamos nos afastando na formatura. Íamos para escolas diferentes, caminhos diferentes, em províncias diferentes, e, além disso, sentíamos que nossa conexão havia se desgastado. Apesar disso, terminamos em bons termos, e ela me disse: "Se algum dia quiser conversar, é só me ligar". E foi o que fizemos.

Mas eu nunca liguei. Estava muito ocupada com os estudos, trabalhos de meio período e saindo com os amigos que ficaram por perto. Eventualmente, consegui um psiquiatra e (finalmente) comecei a tomar remédios para depressão. Tudo estava melhorando, e eu não podia estar mais feliz!

Foi nesse momento de alta que decidi, enfim, entrar em contato com a Red. Queria saber como ela estava e, quem sabe, combinar de nos encontrarmos algum dia. Então, liguei para ela... e ninguém atendeu. Não havia nada, nem mesmo uma caixa postal. Mandei uma mensagem simples pelo Discord: "Oi, podemos conversar?" E fiquei no vácuo, apenas com o status de "entregue". Como o Discord é meio instável, decidi perguntar aos meus amigos se alguém tinha o número dela de verdade na próxima vez que nos encontrássemos.

Alguns dias depois, nos reunimos no shopping para esquecer as preocupações da escola e apenas relaxar e rir. Enquanto comíamos, resolvi perguntar: "Ei, alguém tem o número da Red? Perdi o dela há um tempo e queria saber se algum de vocês ainda tem". Todos se viraram para mim, com rostos cheios de confusão. O shopping inteiro pareceu ficar em silêncio, como se eu tivesse cometido um erro terrível, fatal. O silêncio só foi quebrado quando um dos meus amigos disse, com firmeza: "Quem é Red?".

Agora, estou aqui, tentando me defender. Juro que apresentei a Red ao meu grupo principal de amigos, e sei que eles não são cruéis o suficiente para me fazerem acreditar, em conjunto, que meu primeiro amor não existiu.

Cheguei em casa em pânico. Juro que ela era real; meus amigos devem ter esquecido dela. Sou meio mesquinha, então decidi procurar meu anuário escolar antigo e folheei cada página. E, claro, nada de Red. Onde ela deveria estar, havia apenas um espaço em branco. Sem nome, sem foto, sem nada. Até a última página, onde ela tinha assinado, estava vazia. A assinatura dela havia sumido.

Pensei que podia ser apenas uma série de coincidências. Talvez eu tivesse me enganado sobre ela ter assinado o anuário, e meu exemplar era apenas uma cópia com um erro de impressão, onde uma aluna foi apagada do registro. Então, comecei a rolar todas as fotos no meu celular. Ela tinha que estar em alguma delas. Que tipo de pessoa não tira fotos da namorada?

Procurei, procurei e procurei. Nada. Não era nem uma questão de eu ter apagado todas as fotos dela depois do término, não. Era diferente. Todas as fotos em que ela aparecia agora estavam... sem ela. Uma foto minha com o braço ao redor do ombro dela? Agora, meu braço está ao redor do nada. Aquela foto dela com o vestido de formatura? Agora é apenas uma foto do corredor da escola. Uma foto mal tirada, em que ela aparecia pela metade? Agora, ela não aparece de jeito nenhum.

Então, me lembrei da prova definitiva. Para meu trabalho final de artes no último ano, eu tinha pintado um retrato dela em um estilo clássico (pense em algo como a Mona Lisa). Eu até dei o título de "Retrato de Red". Desenterrei a pintura do meu armário, pronta para mostrá-la aos meus amigos e rir na cara deles, provando que eu estava certa. Mas, quando a tirei, ela não estava lá. Era apenas uma pintura de uma cadeira de madeira sobre um fundo azul, emoldurada como se tivesse alguém na cadeira.

A essa altura, eu estava começando a sentir que estava perdendo a cabeça. Foi quando comecei a sonhar com ela. Ela aparecia em todos os meus sonhos, não importava o quão estranhos ou sem sentido fossem. Às vezes, era apenas uma figura passando por mim; outras, uma personagem importante; em outras, um rosto sem nome na multidão. Toda vez que sonhava com ela, só conseguia lembrar do cabelo e da silhueta dela ao acordar. Uma vez, tentei desenhar o rosto dela assim que acordei, mas acabei apenas rabiscando meu caderno.

Nas últimas noites, comecei a vê-la. Não nos meus sonhos, mas real, física, palpável. Ela aparecia do lado de fora da minha janela, olhando de longe, na janela do vizinho, ou deslizando rapidamente para dentro do meu armário ou debaixo da minha cama.

... Ela sempre parece errada. Não é que ela envelheceu, não. Ela parece visceralmente, desumanamente errada. Alta demais, magra demais. Suas órbitas são grandes demais para os olhos, e seu rosto está sempre contorcido em um sorriso sem dentes, um sorriso muito mais largo do que qualquer humano poderia ter. Ela é desproporcional: os braços são longos demais, as pernas, curtas demais. Suas unhas não são unhas, mas garras retorcidas.

Sei que não estou louca, minha psicóloga pode provar isso. Não posso ter inventado uma pessoa por quatro anos seguidos. Sei que ela existe, ou pelo menos existiu. Não sei como uma pessoa pode simplesmente ser apagada da existência, apenas para voltar em carne e osso em uma forma assustadora e perturbadora.

Esta noite, estou ouvindo batidas na minha janela. Um "tlec, tlec, tlec" agudo a cada poucos segundos. Estou com medo de olhar. Estou com medo de levantar os olhos do celular porque sei o que verei se olhar para a janela...

... Vou vê-la em toda a sua glória distorcida. Vou ver a mulher que eu amava moldada em uma nova forma assustadora. Vou ver os anéis pretos ao redor dos olhos dela. Vou ver seu sorriso de um metro de largura. Vou ver suas garras afiadas.

Vou ver uma garota que eu conheci.

Uma garota chamada Red.
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Escritor do gênero do Terror e Poeta, Autista de Suporte 2 e apaixonado por Pokémon