sábado, 2 de agosto de 2025

Renda, Olhos e Canções de Ninar

A avó de Darren, Loretta, morreu sozinha em seu quarto no andar de cima. Insuficiência cardíaca, disseram. Ela estava morta há dois dias quando o vizinho notou a caixa de correio transbordando e as luzes acesas a qualquer hora. A polícia arrombou a porta e a encontrou lá em cima, olhos arregalados, rosto contorcido em algo que parecia intenso demais para ser apenas medo. A polícia e os paramédicos levaram seu corpo rapidamente para fora da casa.

Loretta viveu naquela casa a vida inteira. Nunca se casou, nunca teve filhos, até que veio Darren. Ele foi adotado, e ela o criou após seus pais morrerem em um acidente de carro quando ele tinha seis anos. Darren falava dela com um tom meio carinhoso, meio temeroso. “A vovó Loretta tem olhos nas paredes”, ele brincava. Ela era acumuladora, reclusa e extremamente supersticiosa. Sempre alertava Darren sobre coisas como “memórias de sangue” e “bonecas com alma”. Ele atribuía isso à idade avançada dela e à mente que começava a falhar.

Nós quatro nos conhecemos no ensino fundamental: Darren, eu, Jess e Nolan. Não éramos os populares. Éramos aqueles que liam creepypastas em voz alta durante pijamadas, exploravam celeiros abandonados por diversão e desafiavam uns aos outros a brincar com tabuleiros Ouija. Esse tipo de grupo. Mantivemo-nos próximos durante o ensino médio e até depois. Mesmo grupo de amigos, mesmas piadas internas idiotas, mesmo quando a vida começou a nos puxar para caminhos diferentes. Éramos uma família.

Então, quando Darren pediu ajuda para esvaziar a casa de Loretta após o funeral, todos nós aparecemos sem hesitar.

A casa não mudava há décadas. Cheirava a naftalina, poeira antiga e algo azedo por baixo de tudo, como flores secas e carne estragada. Passamos os dois primeiros dias encaixotando roupas, livros, fotos antigas e dezenas de estatuetas de porcelana. Loretta tinha prateleiras delas em todos os cômodos, a maioria lascada, todas sinistras.

No terceiro dia, Nolan pisou em uma tábua fraca no sótão.

Foi quando encontramos o baú.

Quando Nolan atravessou a tábua solta, a madeira cedeu o suficiente para revelar a tampa de um baú, com fechos de ferro e couro descascando como pele queimada. Dentro, havia uma única coisa: uma boneca.

Envolta em pano de saco, era do tamanho de uma criança, vestida com veludo preto e renda esfarrapada. Seu rosto de porcelana estava rachado em um padrão de teia de aranha, o sorriso gravado um pouco largo demais. Ela usava um bonnet, e seu olho direito estava lascado. Mas o esquerdo? Ele piscou.

“Me digam que vocês viram isso”, sussurrei, recuando.

Jess engoliu em seco. “Essa coisa se mexeu. Eu juro.”

Darren, o colecionador de tudo que é estranho, sorriu. “Provavelmente é uma boneca mecânica. Sabe, do século XIX ou algo assim. Essas coisas valem uma grana.”

“Não pegue isso”, Jess implorou. “Só… não pegue.”

Mas Darren já a havia tirado do baú. Quando a segurou, algo estranho aconteceu. Juro que ouvi algo suave. Um zumbido. Como um canto. Apenas um sopro de melodia no ar carregado de poeira:

🎵 “Olhos sonolentos e pele de louça, Deixe-me entrar, vou ficar à vontade. Renda e sombra, costura e linha… Feche os olhos, sonhe na escuridão fina…” 🎵

Passamos mais uma noite lá para ajudar Darren a terminar. Naquela noite, tive um sonho. Eu estava no quarto de Loretta e… ela estava lá! A boca costurada, os olhos sangrando, apontando para algo atrás de mim. Quando me virei, vi a boneca, sem olhos, os braços se contorcendo enquanto rastejava em minha direção, cantando aquela mesma canção de ninar distorcida, a boca rachada se movendo como um relógio quebrado.

🎵 “Bracinhos curtos e dedinhos miúdos, Flor carmesim onde ninguém pisa…” 🎵

Acordei ofegante, encharcado de suor. A boneca estava no criado-mudo ao lado do meu colchão… eu não a coloquei lá.

Alguns dias se passaram sem nada… extremo. Darren levou a boneca para casa, e todos voltamos às nossas vidas. Mas mantivemos contato mais do que o normal, checando uns aos outros, brincando sobre a “boneca assombrada” como se fosse só mais uma história boba para rirmos depois.

Então Darren parou de responder.

Pensamos que ele podia estar apenas lidando com o luto ou sobrecarregado com a limpeza da casa. Até que Jess ficou preocupada o suficiente para ir até lá checar.

Ela o encontrou na garagem. Morto. O pescoço torcido completamente, como se algo o tivesse girado até quebrar, a boca congelada em um grito. A polícia disse que parecia uma queda estranha ao tropeçar nos degraus da garagem. Mas lá, na bancada de trabalho, estava a boneca. Seus olhos mais claros do que antes. Como se alguém a tivesse polido. Seu sorriso estava mais largo.

E eu podia ouvir aquela maldita melodia novamente, fraca, como se estivesse escondida nas paredes:

🎵 “Botões, agulhas, ossos que estalam, Deite-o agora, sem olhar para trás…” 🎵

Depois do funeral, Nolan mudou.

Ele começou a agir de forma estranha primeiro. Paranóico. Parou de ir ao trabalho. Cobriu todos os espelhos do apartamento. Dizia que a via neles. Dizia que via coisas se mexendo nos cantos do quarto. Jurava que a boneca o estava seguindo. “Ela está rastejando”, disse ele uma noite ao telefone. “Eu a ouço à noite. Arrastando aqueles pés de cerâmica. Ela canta pra mim, não consigo dormir. Eu a ouço rastejando. E quando durmo…” sua voz se dissolveu em um gemido.

Pensei que ele estava pirando. Ou talvez apenas traumatizado.

Até que ele parou de responder de vez.

Eu mesmo o encontrei. A porta da frente estava trancada por dentro. Tive que entrar por uma janela. O lugar fedia como se algo tivesse morrido dias antes de eu chegar.

Ele estava no armário do corredor. Dobrado ao contrário. Os membros quebrados em ângulos impossíveis, ossos perfurando a pele. A boca estava cheia de tecido, renda preta.

A boneca estava aninhada ao lado dele, na prateleira acima do corpo, pernas cruzadas, mãos no colo. Intacta. Limpa. Sorrindo.

Jess e eu saímos da cidade. Dirigimos por horas até ficarmos sem gasolina e então caminhamos até o motel mais próximo.

Nenhum de nós falava muito. Mal dormíamos. Mantínhamos as luzes acesas. Mas mesmo com a luz, às vezes eu a ouvia. A canção de ninar dela, tocando no limiar do silêncio, como se o quarto a estivesse cantarolando.

🎵 “Olhos que piscam e lábios que mordem, Venho brincar quando as luzes se escondem…” 🎵

Não contamos nada à polícia. O que poderíamos dizer? “Uma boneca assombrada está matando nossos amigos”?

Após uns quatro dias, Jess disse que precisava voltar para casa. “Não posso viver de mala pra sempre”, disse ela.

Eu implorei para que esperasse. Só um pouco mais. Só o suficiente para descobrirmos o que diabos faríamos, mas ela foi firme. Pegou carona com um caminhão que passava e a vi partir, ficando menor e menor até desaparecer.

Três dias depois, ela estava morta. Ela me ligou gritando. Sem palavras. Apenas puro terror e medo cru vindo pelo telefone. Corri até a casa dela e arrombei a porta.

Ela estava na cama, o rosto pálido, a boca aberta em um grito, os olhos sumidos — apenas dois buracos úmidos e vazios, como se alguém tivesse usado uma colher para arrancá-los. Havia sangue por todo lado. Olhei ao lado dela, e lá estava. A boneca, sentada no travesseiro, me encarando, um olho rachado tremendo, a cabeça inclinada.

Isso foi há meses.

Mudei cinco vezes desde então. Troquei meu número. Excluí todas as redes sociais. Vivo fora do radar agora. Uma cabana remota. Sem vizinhos. Sem espelhos. E ainda… ainda, nas noites mais frias, quando o vento uiva de um jeito certo, eu a ouço lá fora.

Porcelana batendo no vidro. O sussurro de uma criança. Uma canção de ninar:

🎵 “Quatro almas marcadas para mim, Mas uma sobrou, pra eu assistir… Sozinha e assustada, quase minha, Silêncio, querida… é hora da nina.” 🎵

Não acho que acabou. Eu… acho que ela está esperando pelo verso final.

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