quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Por favor, acene de volta

Eu não sou escritor. Isso não é para um livro ou blog. É um aviso, e se você está lendo isso, pode ser que precise dele. Tudo começa numa estrada que você não pega à noite, aquela que serpenteia pela floresta antiga. Forasteiros têm desaparecido nesse trecho, e pior, estou convencido de que os moradores locais têm algo a ver com isso. Mas agora eu sei. Sei o que acontece com quem não acena.

Me mudei pra um apartamentinho aconchegante há pouco tempo. Não planejava ficar muito. Meu professor me pediu pra estudar a região atrás de “flora cientificamente interessante”, coisas de doutorado em Botânica. Já tinha dado umas voltas por aí, mas nada me chamou atenção. O único lugar que eu ainda não tinha ido era a estrada na floresta ao norte.

Os locais pareciam estranhamente empolgados pra eu ir pra lá. “Um lugar ótimo pra se perder na natureza”, diziam. Prometeram que eu encontraria todo tipo de coisa interessante pra estudar. Mas os sorrisos deles eram largos demais, a insistência, forte demais. Mesmo assim, me convenci de que era só coisa de cidade pequena. E eu não podia voltar com um relatório pela metade.

Então, ao amanhecer, arrumei o carro e dirigi até lá. Não notei nada fora do comum. O vento nas árvores, os pássaros cantando, um esquilo pulando de galho em galho. Eu não sabia bem o que esperar. Peguei meu equipamento e comecei a explorar, coletando amostras, tirando fotos, fazendo anotações. Tinha acabado de coletar a última amostra quando percebi que a luz do dia estava sumindo rápido. Será que eu fiquei tanto tempo assim? Olhei pro relógio, mas ele tinha parado. Peguei o celular, mas estava morto. Tentei me enganar: “Meu relógio tá pifando há semanas, e meu celular sempre descarrega rápido quando tiro fotos”. Mas nada parecia certo. Comecei a voltar pro carro.

Foi quando vi.

Um cartaz. Era um losango de madeira, meio detonado pelo tempo. A tinta, um amarelo desbotado e doentio, descascando nas bordas. Não chamava atenção; se é que dava pra notar, parecia se misturar com a penumbra, como se não quisesse ser visto. Nele, havia uma silhueta preta de duas crianças de mãos dadas, acenando. Embaixo, meio escondido pela sujeira, uma mensagem simples, mas esquisita: “Crianças acenando. Por favor, acene de volta.”

Comecei a sorrir com o absurdo daquilo. “Quem coloca um cartaz desses?”, pensei. Mas a graça passou rápido.

Não muito atrás do cartaz, havia duas figuras pequenas, paradas na borda da floresta. Crianças. Pareciam crianças, mas vestidas como se fossem de décadas atrás. A floresta ficou estranhamente silenciosa.

“Oi?” chamei.

Sem resposta. As crianças estenderam as mãos e se deram as mãos. Com os braços livres, começaram a acenar.

As sombras estavam longas e escuras agora, e eu não conseguia distinguir detalhes. Mas os rostos delas… juro que não eram normais. Onde deveriam estar os olhos, havia buracos fundos, vazios.

Dei um passo à frente. “Vocês estão bem? Estão machucados ou perdidos?” Minha garganta estava seca, e as palavras saíram rachadas.

Os acenos calmos ficaram frenéticos. Espasmódicos. Errados, até. As cabeças delas chacoalhavam de um lado pro outro, os movimentos embaçados.

Tentei correr, mas meu corpo não obedecia. Minhas pernas pareciam blocos de pedra, meu peito esmagado. Minha mente gritava: CORRE! Meu coração batia como um pássaro preso numa gaiola.

Então elas começaram a avançar.

Cada passo fazia o ar vibrar com um zumbido doentio, como um enxame de abelhas furiosas. Árvore por árvore, elas se aproximavam. O som ficava mais alto. Minha pele arrepiava com um suor gelado.

O cartaz passou pela minha cabeça. Eu tinha que acenar. Elas estavam quase em cima de mim. O zumbido virou um rugido aterrorizante. Forcei meu braço pra cima, as juntas duras como se estivessem enferrujadas. Parecia lento demais, fraco demais. Fechei os olhos com força e esperei o pior.

Mas não veio.

Abri uma fresta de visão e vi uma delas, no meio de um salto, a poucos metros. O rosto era um borrão.

Meu braço estava erguido! Dando o aceno mais fraco e patético que já dei na vida. Mas foi o suficiente.

Senti a tensão no ar se quebrar. As duas figuras pararam, depois suavizaram.

Aproveitei a chance e cambaleei de volta pra estrada, sem tirar os olhos delas, sempre acenando.

Cheguei ao carro, tateei as chaves e as deixei cair. Xingando, procurei elas no chão às cegas, enquanto forçava minha mão a manter aquele aceno ridículo. O sol estava quase sumindo.

Finalmente abri a porta, pulei pra dentro, bati a porta e tranquei, como se a lataria fina fosse me proteger. Minha mão não parava de acenar.

Enfiei a chave na ignição e girei. Olhando pra trás, vi as duas criaturas viradas pra mim. Observando. Sem acenar. O sol mergulhou no horizonte com um clarão verde brilhante, justo quando o motor roncou. Meus faróis acenderam, enfrentando a escuridão. Mas elas ainda estavam lá.

As cabeças delas viraram pra mim, os buracos onde deveriam estar os olhos engolindo a luz do carro. Pisei no acelerador, e o carro deu um tranco pra frente.

No retrovisor, vi elas. Mais figuras saindo da linha das árvores. Duas, depois quatro. Depois dezenas. A estrada à frente era igual. Um desfile de figuras infantis surgindo da floresta.

Bati a buzina, mas o som parecia morrer no silêncio opressivo da mata. Minha mão ainda acenava. Acelerei, 60 km/h, depois 80, depois 100, mas pra onde eu olhava, lá estavam elas. Paradas, observando, uma fila sem fim que se aproximava a cada curva.

Cheguei à linha da cidade e freei com força. O carro guinchou até parar.

As crianças não me seguiram. Ou talvez não pudessem.

Minha mão finalmente caiu no colo, mole e dormente. Chorei ao ver as luzes da cidade. Um alívio que durou pouco. Passei pelo restaurante. Uma garçonete estava congelada, no meio de servir café, a bebida transbordando da xícara. O velho que ela atendia colou o rosto no vidro. As pessoas na rua pararam quando passei, os olhos me seguindo com algo. Raiva? Não… decepção.

Eu não era pra ter voltado.

E entendi. Minhas suspeitas estavam certas desde o começo. Eu fui escolhido pra algo, e recusei.

Então dirigi a noite toda, parando só quando o cansaço me obrigou a encostar.

Por um breve momento, achei que tinha escapado.

Mas aí o zumbido voltou.

No começo, era fraco. Fácil de confundir com os sons da vida moderna. Um motor de carro ao longe, um avião passando, a máquina de lavar louça na cozinha. Mas o zumbido cresceu. Virou um ronco. E o ronco virou um enxame dentro do meu próprio crânio. Mais alto. E mais alto!

Então acenei.

E parou.

Agora não posso parar de acenar. Meus braços doem, minhas juntas latejam. Estou apavorado com o que vai acontecer se eu parar. Não sei quanto tempo faz que não durmo. Duvido que aguente muito mais.

Então, se você ver um cartaz pedindo pra acenar pra crianças, não pense. Não hesite. Pelo seu bem, apenas acene.

Por favor. Acene de volta.

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