Eu tinha entrado num relacionamento há pouco tempo — apesar de toda intuição me dizendo para não me apressar. No fundo, eu sabia o que estava fazendo: precisava de um lugar para morar. Um teto. Estabilidade. Minha mãe, claro, tinha um monte de coisas a dizer sobre isso. Ela achava que eu estava indo rápido demais. Mas, depois de oito anos solteira, eu nunca tinha tido tanta certeza sobre um parceiro. E, além disso, meu relacionamento com a família já era bem tóxico.
Eu a tranquilizei mesmo assim. “Ele é um cara legal.”
Ela me deu aquele olhar de lábios apertados. “Só toma cuidado”, ela disse. “Você sempre acaba se metendo em encrenca.”
“Ele é inofensivo”, eu disse, sorrindo largo demais. “A gente vai até conhecer os pais dele.”
Foi quando bateram na porta. Ethan tinha chegado para me buscar. Minhas malas estavam prontas e esperando, como se eu estivesse preparada há mais tempo do que queria admitir. Ele ficou ali na porta, com o nervosismo estampado no rosto enquanto seus olhos procuravam os meus.
“V-você tá pronta?”
“Claro”, eu disse com um entusiasmo ensaiado. “Eu viajaria para qualquer lugar com você nesse momento.”
As palavras quase me convenceram também.
“Ótimo”, ele riu, mas de um jeito inquieto. “Minha família tá super animada para te conhecer... bem, a maioria deles.”
Eu não perguntei o que ele quis dizer. Ele jogou minhas malas no porta-malas do sedã vermelho dele, com cuidado e deliberadamente, e minha mãe observou da porta. Normalmente, ela repreenderia os caras, lembrando que eles tinham que cuidar de mim — mas, quando Ethan abriu a porta do carro para mim, a guarda dela baixou. Ela só ficou ali, estranhamente amolecida, e disse apenas:
“Toma cuidado.”
E, sinceramente, eu queria ter ouvido.
A viagem nos levou a uma casa modesta de dois andares com garagem anexa. Classe média genérica. Nada de mais. Ethan me olhou com aquela mesma expressão preocupada.
“Por favor”, ele disse baixinho, “se você vai ficar aqui... só saiba que minha família é um pouco fora do comum.”
Eu sorri de volta, embora parecesse forçado. “Não se preocupa. Minha família também é doida.”
Eu até ri, tentando vender a ideia. A verdade era que eu precisava disso. Precisava de um lugar longe da minha mãe, longe daquele ciclo infinito de reprovação. Se ser a namorada que mora junto significava me adaptar a uma família de esquisitos, que seja.
Mas, quando entramos, eu quase ri da advertência dele. A casa estava impecável. Normal. Normal demais. As paredes cheias de retratos de família. A cozinha cheirando a pão fresco. Os pais dele até tinham assado para a ocasião.
Sem gritos. Sem portas batendo. Sem brigas de bêbado. Só sorrisos educados, móveis limpos e uma civilidade quieta.
E isso, de alguma forma, me inquietava mais do que qualquer caos.
Do canto da cozinha, os pais dele surgiram — o pai imponente em silêncio, a mãe equilibrando um prato de biscoitos ainda quentes, com o cheiro de manteiga e açúcar pairando no ar.
“Oi!”, ela sorriu radiante. “Meu nome é Mary — mas, claro, você pode me chamar de Mãe.” Ela praticamente enfiou o prato debaixo do meu nariz.
Eu olhei para Ethan, que me deu um aceno tranquilizador, me incentivando a pegar um. “Mãe?”, repeti desajeitada, testando a palavra na boca.
“Se você preferir”, ela disse baixinho, com um sorriso todo carinhoso e acolhedor.
Peguei um biscoito da pilha, o calor surpreendendo meus dedos. “O-obrigada. Desculpa, é que eu não tô acostumada com esse nível de bombardeio de amor.” Ri nervosa, tentando me proteger com humor.
“Que bobagem!”, ela disse, com a voz borbulhando de alegria. “A gente tá feliz que você se juntou ao nosso cirquinho. E, se você tá com um dos meus palhaços, então eu te considero uma das minhas também.”
Eu ri também, embora as palavras dela coçassem no fundo da minha mente. Dois palhaços? Só tinha dois deles ali. Ela não podia estar falando do marido grandalhão. Então quem...?
A porta da garagem rangeu ao abrir.
Uma figura entrou — grande, corpulenta e... ouso admitir, impressionante. Ele se movia com uma graça sobrenatural, quase como se deslizasse em vez de andar. Seus olhos estavam cobertos, enfaixados com o que parecia uma camiseta preta rasgada. Sangue fresco vazava pelo tecido, manchando de escuro onde os olhos deviam estar.
Ele usava só uma calça jeans preta. A pele — marrom escura, músculos tensos — captava a luz de um jeito que me obrigou a desviar o olhar antes de ficar encarando demais. Mas não antes da mãe de Ethan notar.
“Aquele é o Lucas”, Ethan sussurrou, apertando minha mão no ombro como se me preparando. “Ele... sofreu um acidente.”
Ele achou que eu estava olhando com medo. Ou talvez com curiosidade mórbida.
Mas Lucas não tropeçava. Não tateava os móveis. Ele foi direto para o balcão, serviu um copo de leite para si mesmo, pegou um biscoito do prato — sem esforço. Como se a cegueira fosse só um incômodo, não um fardo. Depois, se inclinou e beijou a testa da mãe com carinho.
“Seus biscoitos são sempre os melhores, Mãe.” Ele farejou o ar, depois inclinou a cabeça na minha direção.
As faixas não escondiam a sensação de que seus olhos — o que quer que estivesse por baixo — estavam fixos nos meus.
“Ahhh”, ele disse devagar, mordendo o biscoito. “Parece que temos uma visita. E quem é você?”
Os outros agiam como se nada fosse estranho. Ethan até me deu um aceno sutil, como se me incentivando a responder.
“Eu sou... Emily. Mas pode me chamar de Emmy.”
Lucas mastigou pensativo, depois balançou a cabeça. “Nah. Vou te chamar de M&M. Tipo o doce.”
Os pais dele riram, como se fosse uma piada interna da família.
Ethan forçou um sorriso. “O Lucas tem um jeito bem... excêntrico de ver o mundo.”
“Ou a falta dele”, Lucas rebateu com um sorriso rápido. “Eu só não gosto de coisas previsíveis.”
Depois, ele se virou para mim de novo. O ar no quarto ficou mais pesado. “Então. Você é previsível?”
O silêncio me pressionou. Minha garganta apertou. Eu nem respondi — só respirei superficialmente, de um jeito afiado o suficiente para me entregar.
Lucas sorriu de canto. Levantou o copo de leite e tomou um gole, como se minha reação fosse toda a confirmação que ele precisava.
“Bom saber”, ele disse levemente, antes de voltar flutuando para a garagem.
Eu fiquei ali congelada, me perguntando que diabos tinha acabado de acontecer. Mas todo mundo continuou como se não fosse nada.
“Eu devia preparar o jantar”, Mary disse enquanto olhava para o reloginho de diamante dela. Ela se levantou e foi para a cozinha, enquanto Ethan, o pai dele e eu assistíamos a um filme... ou documentário...
A sala de jantar parecia um showroom. Uma mesa pesada de carvalho, polida até brilhar, e paredes forradas de pinturas que me fizeram parar no meio do passo. Não eram cópias baratas. Eram telas originais, cheias de cores violentas, pinceladas texturizadas. Rostos distorcidos. Membros dobrados em ângulos impossíveis. Algumas pareciam religiosas, outras grotescas, todas assombradoras.
Eu não conseguia parar de olhar.
“São todas obras do Lucas”, Mary disse orgulhosa, colocando uma travessa fumegante de frango assado.
Eu pisquei. “Ele pintou... todas essas?”
“Cada uma delas”, ela disse, com um tom que equilibrava orgulho e humildade ensaiada. “Ele sempre teve um olho para detalhes, mesmo depois...” Ela parou, os olhos desviando para a cozinha. “Bem, ele se vira.”
O marido dela sentou na cabeceira da mesa, silencioso como uma estátua, só acenando uma vez como se confirmasse.
Ethan colocou a mão no meu joelho por baixo da mesa, como se me firmando. Seu sorriso não vacilou. Mas eu sentia os dedos dele apertando, me ancorando no lugar.
Então a porta da garagem rangeu de novo.
Lucas surgiu, dessa vez não com jeans preto, mas sem camisa, salpicado de tintas — escarlate, cobalto, ocre espalhados pela pele como pintura de guerra. As calças estavam arruinadas com manchas, as mãos pingando terebintina e óleo. A faixa ensanguentada ainda estava amarrada sobre os olhos, mas de alguma forma a cabeça dele se inclinou na minha direção no segundo em que entrou.
Ele parecia uma criatura saída direto de uma das próprias pinturas.
“O jantar tá cheirando bem”, ele arrastou a voz, se sentando na cadeira em frente à minha. Nem se deu ao trabalho de se limpar. O cheiro de tinta e químicos se misturou ao do frango assado até meu estômago revirar.
Ele pegou um pão sem errar, rasgou e falou direto comigo. “Então, Emmy”, ele disse, com a voz baixa, quase íntima, “como é se sentar cercada por mim?”
Eu congelei, sem saber se ele falava das artes ou de outra coisa.
A mão de Ethan apertou a minha com força, mas ele não disse nada. A mandíbula dele tensionou, olhos no prato, como se aquilo não estivesse acontecendo.
Mary deu uma risada educada, rápida e frágil. “Lucas”, ela repreendeu levemente, “não deixa nossa visita desconfortável.”
Lucas só sorriu de canto, inclinando a cabeça para mim de novo. “Eu não tava perguntando para deixar ela desconfortável. Tava perguntando porque eu sinto o batimento cardíaco dela daqui.”
O quarto ficou imóvel. A faca do pai tilintou no prato. Ele não olhou para mim. Não olhou para ninguém. Só disse, com uma calma final: “Comam.”
Todo mundo obedeceu.
O resto do jantar se dissolveu em silêncio, pontuado só pelo arranhar de garfos e a risada suave ocasional de Mary para remendar o ar. Lucas nunca parou de sorrir. Ele comeu com a graça de alguém que via tudo. E mais de uma vez, eu peguei aquela sensação impossível de que, atrás daquela faixa ensanguentada, os olhos dele estavam bem abertos — e fixos em mim.
Mais tarde aquela noite, na casa deles, eu não conseguia dormir.
O quarto de hóspedes estava impecável — impecável demais. Lençóis brancos esticados apertados no colchão, o ar perfumado levemente com lavanda, como se alguém tivesse borrifado minutos antes de eu chegar. Deveria ser reconfortante, mas em vez disso me deixava agitada. Cada rangido da casa parecia amplificado, cada tique do relógio de pêndulo no corredor vazava nos meus ouvidos.
Ethan estava deitado ao meu lado, já dormindo, de costas para mim. A respiração dele era pesada, constante. Quase ensaiada. Ele nem tentou me tocar, nem um beijo de boa-noite. Depois da tensão estranha no jantar, eu não sabia se ficava grata ou ofendida.
Eu encarei o teto. Minha garganta estava seca. Seca demais. Finalmente, saí de debaixo das cobertas, cuidadosa para não acordá-lo, e fui descalça pelo corredor.
A casa era diferente à noite. Sombras se alongavam pelas paredes, esticando das pinturas do Lucas. Elas pareciam vivas na luz fraca — santos retorcidos e corpos fraturados se curvando como se me observassem passar.
Eu me disse que era só imaginação, mas acelerei o passo para a cozinha.
Foi quando ouvi.
Um farfalhar fraco. Pés descalços no piso de madeira.
Eu congelei.
E então eu o vi.
Lucas.
Ele estava no fim do corredor, bem na porta do banheiro. Sem camisa, só uma toalha jogada casualmente no ombro. A pele dele brilhava com um brilho de suor, e tinta ainda grudava no peito em listras, como resquícios de um campo de batalha. A faixa — tecido escuro e amarrado — ainda cobria os olhos. As manchas pareciam mais frescas agora, vazando mais escuras no centro.
Por um momento, ele não se mexeu. A cabeça inclinou levemente, como se escutasse.
Depois, com precisão lenta, ele esticou a mão, encontrou a moldura da porta do banheiro e se apoiou nela. Sem tropeçar. Sem se perder. Só... esperando.
Eu devia ter voltado. Devia ter pego minha água e fugido. Mas fiquei ali, plantada, observando.
Ele falou sem se virar para mim. “Você tá com sede.”
Não era uma pergunta.
Minha respiração travou. “Eu... só queria um pouco de água.”
Lucas sorriu, os lábios se curvando na luz fraca. “Meio da noite. Primeira noite numa casa estranha. Você é mais corajosa do que parece, M&M.”
Ele disse baixinho, como um segredo.
Eu engoli em seco. “Você... tá acordado até tarde também.”
“Eu vago”, ele disse simplesmente, os dedos roçando a faixa como se para me lembrar dela. “As paredes não me dizem mais muita coisa. Preciso sentir a casa para saber que ela ainda tá aqui.”
Eu não soube o que dizer. A voz dele preenchia o silêncio, baixa e rica, ressonante de um jeito que deixava o ar quente demais.
Ele se impulsionou da moldura então, se aproximando — sem tropeçar, sem tatear, mas andando com uma certeza sobrenatural. O ombro roçou a parede ao passar, os dedos roçando a superfície levemente, quase com carinho.
Ele parou a poucos passos de mim. Perto o suficiente para captar o cheiro forte de terebintina ainda grudado na pele dele, misturado ao suor limpo de alguém prestes a tomar banho.
“A água tá na cozinha”, ele murmurou. “Mas acho que você já sabia disso.”
Forcei uma risada que saiu frágil. “É... obrigada.”
Ele inclinou a cabeça, como se saboreando o som dos meus nervos. “Você respira mais rápido quando mente.”
Meu pulso martelava tão alto que eu juro que ele ouvia. Ele se inclinou um pouco, sem tocar, só perto o suficiente para eu sentir o calor irradiando do corpo dele.
“Vou tomar banho”, ele sussurrou, a voz caindo para algo quase conspiratório. “Se precisar de alguma coisa.”
Depois, ele passou por mim, toalha no ombro, os olhos enfaixados sem vacilar. Desapareceu no banheiro e fechou a porta com um clique lento e deliberado.
Eu fiquei no corredor, a água esquecida, cada nervo do meu corpo vivo.
E não conseguia me livrar da sensação de que ele não precisava de olhos para me ver.
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