segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Eu deixei a mamãe passar fome

Suor seco. Comida podre. Lixo fermentado. Fumaça de cigarro. Poeira. A mistura de odores invadiu meu nariz, sufocante. Precisei dar um passo atrás, engasgando. Quando enchi os pulmões com o ar fresco de fora, dei um passo à frente.

"Cheguei!" gritei.

Deixei os tênis no hall de entrada. As botas da mamãe estavam ali, misturadas com os sapatos de irmãos que há muito se foram. Espiei pelo corredor até a sala de estar. Estava uma bagunça. Nem a escuridão conseguia esconder o mosaico de lixo, roupas e caixas de comida vazias. Havia um triciclo ao lado do sofá, pequeno e colorido, embora não houvesse crianças naquele lugar há quase uma década.

Mamãe havia coberto as janelas com papel-alumínio e jornal. Nada de lâmpadas. Nada de luminárias. Ela dizia que a luz lhe dava dores de cabeça. Era preciso uma lanterna para navegar pelo apartamento... ou um celular.

Encontrei a mamãe encolhida no quarto, enrolada como uma bola e coberta por edredons.

"Por que demorou tanto?" A voz dela era aguda, com um chiado rouco, como uma dobradiça enferrujada.

Abaixe a luz do celular. "Eu te disse que ia pra despedida de solteira da Emma—"

"Você não me disse nada. Fiquei aqui passando fome!"

Um suspiro ficou preso na minha garganta. Deus me livre de soltá-lo na frente dela. Ou pior: e se eu suspirasse e explicasse que comprei pizza e comida pronta pra ela pro fim de semana inteiro? Com o meu dinheiro, ainda por cima. Será que eu sobreviveria a isso?

"Você tá com fome?" perguntei.

"Claro que estou!"

Isso me deu uma desculpa pra sair do quarto e enfrentar outra frustração. A cozinha estava um caos, com as sobras do meu fim de semana fora. Caixas de pizza e potes plásticos espalhados pelo balcão. Um deles ainda estava no micro-ondas, pela metade. Não havia sobrado nada pra mamãe — ela tinha comido tudo.

"Vou na loja comprar algo pra você," gritei.

"Você vai me abandonar de novo?" Cada sílaba dela pingava veneno.

"Volto em uma hora."

Se eu tivesse ido de bicicleta, a ida à loja de conveniência teria levado vinte minutos. Mas isso também significaria menos tempo respirando o ar fresco do verão.

Enquanto caminhava, pensei em como o olfato é ao mesmo tempo maravilhoso e terrível. Não podemos fechar o nariz como fechamos os olhos. Que inconveniente, né? Se eu quisesse parar de sentir cheiros, também precisaria parar de respirar. Mas existe outro jeito: se sentirmos um cheiro por tempo suficiente, seja ele bom ou ruim, o cérebro simplesmente o ignora.

Levei uma vida inteira pra me acostumar com o cheiro do apartamento da mamãe, e bastou um fim de semana fora pra ele se tornar insuportável de novo.

Ao entrar no supermercado, dei uma olhada rápida na seção de jardinagem. Vendiam móveis de jardim, flores e churrasqueiras. Quando criança, eu achava que ninguém comprava essas coisas.

Os botijões de gás me lembraram de uma curiosidade: o metano não tem cheiro naturalmente. O odor de ovo podre é adicionado por questões de segurança, pra que uma pessoa consiga detectar um vazamento antes que o prédio inteiro vá pelos ares.

O celular vibrou no meu bolso. Era a "Emma".

"Oi," atendi, enquanto procurava por comidas prontas.

"Pronta pra ir?" Era o Kalevi do outro lado da linha.

Passei o celular de uma orelha pra outra. Embora fosse impossível a mamãe estar por perto, olhei por cima do ombro.

"Não posso," respondi.

Kalevi respirou fundo. "Tarja, escuta. Você precisa sair daí agora. Agora."

Peguei umas almôndegas com batatas. Isso serviria.

"Não posso. A mamãe precisa de alguém pra cuidar dela."

"Você tá ouvindo o que tá dizendo?" Quando ficava nervoso, Kalevi falava devagar, marcando cada palavra, igualzinho à mamãe.

"Tá tudo bem. É a mamãe. Ela é estranha, mas não é má."

"Você tá se ouvindo?" ele gritou do outro lado, tão alto que o microfone estourou.

"Não gosto quando você grita comigo."

Eu estava na fila do caixa. Só tinha duas pessoas na minha frente, mas era uma cidadezinha pequena. Todo mundo conhecia todo mundo. E se alguém ouvisse o Kalevi surtando pelo telefone?

"E o que você quer que eu faça?" Pelo menos ele baixou um pouco a voz. "Você tá falando besteira! Ela comeu a Niina!"

"Ela não—" Bufei, depois baixei a voz pra um sussurro. "A Niina fugiu com o namorado."

"Você viu! Você viu o que aconteceu! Do que você tá falando?" Imaginei o Kalevi puxando os cabelos.

"Foi um pesadelo. Procura ajuda. Tô falando sério." Coloquei a comida pronta e uma bebida energética na esteira. "E a mamãe precisa de ajuda e compaixão. É a única forma de ela melhorar."

"Você não tá ajudando ela. Você tá alimentando ela!"

Os produtos chegaram às mãos da caixa, um sinal pra encerrar aquela ligação sem sentido.

"Preciso voltar pra casa. Falo com você depois."

Desliguei enquanto o Kalevi ainda falava. Guardei as compras e voltei pra casa.

O grito dele me pegou desprevenida. Doeu um pouco. A gente tinha passado uma despedida de solteira tão legal juntos.

Diferente da casa da mamãe, a do Kalevi era limpa e arrumada, com muita luz natural e até um daqueles robôs aspiradores rodando por aí. Fiquei feliz de ver que ele estava bem, apesar de tudo. Fiquei feliz de vê-lo, ponto. Nenhum dos outros irmãos nos deu essa chance. Eles saíram de casa e sumiram.

O Kalevi disse: "Eles não foram embora. Ela comeu todos eles."

Mas ele não queria falar da mamãe, muito menos na frente da esposa. Ela achava que ele era órfão.

Sacudi as lembranças do nosso fim de semana juntos, deixei-as na porta junto com a promessa de ar fresco. Uma respiração funda, e eu estava pronta pra voltar pra mamãe.

Enquanto esquentava a comida no micro-ondas, percebi que esqueci de comprar algo pra mim. Tarde demais pra voltar à loja, no entanto. Fui dormir com fome. Má ideia. Fome sempre trazia pesadelos.

Mamãe com fome sempre trazia pesadelos.

Acordei na escuridão, o corpo paralisado e a mente enevoada. Acontecia com frequência, mas eu nunca me acostumava. O pânico tomava conta, como sempre.

Por mais que eu implorasse na minha cabeça, nem um dedo se movia. Meus olhos ficavam grudados no mesmo ponto. Eu estava presa no meu próprio corpo.

Um pouco da luz do sol da meia-noite vazava pela janela. Normalmente uma bênção, agora a luz delineava a forma horrível da mamãe. Ela me observava do teto, os olhos brilhando na escuridão. A barriga flácida, resultado de quase uma dúzia de partos, pendia sobre meu corpo imóvel. Os seios caídos balançavam acima da minha cabeça. Os cotovelos apontavam para o chão de forma anormal; estavam ao contrário. Ela parecia uma aranha.

Lentamente, mamãe desceu pela parede, mais perto da cabeceira da cama. O drywall rachava enquanto ela cravava as unhas e os dedos dos pés. Logo senti os poucos fios de cabelo dela roçando minha testa.

Tentei gritar, mas minha boca não abria. Meus pulmões não aceleravam. Meus olhos se recusavam a chorar. Meu corpo inteiro permanecia imóvel, como o cadáver que eu logo me tornaria.

A Niina nunca teve namorado. Uma vez, a vi beijando outra menina no lago — e vi como a mamãe rastejou até a cama dela naquela noite.

Mamãe parecia um crocodilo vestindo uma pele humana. Braços e pernas dobrados em ângulos impossíveis, desconfortáveis. Ela abriu a boca, larga, incrivelmente larga. Ouvi o estalo quando a mandíbula saiu do lugar. Vi como ela sugou a cabeça da Niina como se fosse sorvete, depois a mordiscou. Rastejou mais para dentro da cama enquanto engolia a cabeça. Depois o pescoço. Os ombros. Ela avançou. Os seios, os quadris, as coxas...

Apenas os tornozelos e pés da Niina pendiam para fora da boca dela. Mamãe engasgou, lutando pra engolir os últimos pedaços da minha irmã mais velha. Todo o corpo dela se contraía enquanto engolia o que restava da Niina.

Eu seria a próxima.

Senti o hálito da mamãe perto do meu ouvido. Quente e úmido, fedia a cigarro e ácido. Ela gentilmente virou meu rosto para o lado.

"Você me deixou passar fome."

Ela perfurou um buraco no meu pescoço, aquele que nunca cicatrizou. Eu sempre dizia que era uma marca de nascença.

Imóvel. Indefesa. Estúpida. Sem outra opção, esperei até que ela se alimentasse.

Na minha cabeça, prometi. Nunca mais. Nunca mais vou deixar isso acontecer. Nunca mais vou deixar a mamãe passar fome. Ela precisa de mim.

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