O que a gente viu naquela noite na casa do meu amigo... Eu nunca vou esquecer. Não era algo inexplicável. Não era paranormal. Isso até teria sido quase reconfortante, de certa forma, saber que vinha de fora do nosso mundo, mesmo que fosse aterrorizante. Mas isso... isso era muito mais real.
Era um inverno brutal, durante as férias da escola. A gente tinha 16 anos e já se reunia quase todo fim de semana na casa do meu amigo pra beber e jogar videogame. Nosso passatempo favorito (e bem idiota) era o de pênaltis no FIFA, e toda vez que alguém levava um gol, tinha que virar um shot da vodca mais barata que a gente conseguia achar.
É, era burro, bem burro mesmo, mas a gente ria até não poder mais. Minhas melhores lembranças são daquele quarto, lá no fundão da casa do meu amigo, bem do lado da lavanderia e antes da varanda dos fundos. A mãe dele não podia reclamar do barulho, e ela não fazia ideia de quanta bebida a gente estava mandando pra dentro só por diversão. Pelo menos era o que a gente achava.
Aquela noite não parecia diferente das outras. Saí de casa e avisei pra minha mãe que ia pra casa do Luke. Ela sabia exatamente o que isso significava, mas era... digamos, "seletivamente" permissiva. Ela não aguentava me ver bebendo ou fumando, mas se eu fizesse isso pelas costas dela, de repente não era mais problema. No caminho, parei na vendinha da dona Rosita, aquela senhora que me vendia cigarro e bebida mesmo sabendo que eu ainda estava no ensino médio. Igualzinho sempre: um maço de cigarro e a vodca mais barata que tinha.
Fui o primeiro a chegar na casa do Luke. A mãe dele me deu uma olhada de lado rapidinha e um sorrisinho cúmplice quando ouviu o tilintar da garrafa batendo nas minhas chaves dentro da mochila. Ela sabia, mas, igual à minha mãe, não ia se meter.
Fui direto pro quarto dos fundos. O Luke já estava bebendo uma cerveja, Deus sabe de onde ele tinha tirado aquilo, e jogando um jogo que eu achei que era de tiro no começo, mas na verdade era de terror. Ele estava de moletom e coberto por um cobertor que tapava ele inteiro; eu só via a cabeça e as mãos, o que me pareceu um pouco esquisito. Mas, pensando bem, aquele quarto, por mais que a gente adorasse, era frio pra caramba. Sem aquecedor. A janela fechada, mas de algum jeito o vento ainda entrava. Lá dentro tinha só um colchão velho no chão, uma TV ainda mais velha e nosso tesouro sagrado: o PlayStation 2.
Cinco minutos depois que eu cheguei, a gente já estava jogando aquele joguinho idiota de pênaltis. Enquanto isso, conversávamos sobre as coisas de sempre: garotas, boatos meia-boca e outras bobagens que adolescentes de 16 anos ficam obcecados.
Agora, eu adorava o Luke, ele era meu melhor amigo e eu sempre fui super apoiador dele, não importava o que fosse, mas o relacionamento dele com a namorada era... esquisito. Ela era insanely ciumenta, a ponto de, mesmo sendo um adolescente bobão, eu saber que aquilo passava dos limites. Ela geralmente não aparecia nas nossas reuniões, graças a Deus. Mas de vez em quando, ela surgia do nada, como se estivesse torcendo pra pegar o Luke no flagra traindo.
A gente falou sobre isso naquela noite. Ele estava de saco cheio. Eu não entendia por que ele não terminava logo com ela. Ele disse que, se não respondesse uma mensagem em um minuto, ela ligava pra ele. Se não acordasse antes dela pra mandar "bom dia", ela bloqueava ele. Qualquer interação com uma garota já era motivo pra ela surtar. "O sexo é bom. Muito bom... mas ela curte umas coisas estranhas", ele disse. Eu insisti pra ele explicar. Ele sempre foi do tipo que conta tudo e ri, mas dessa vez ele estava sério pra caramba.
Enfim, a noite seguiu como sempre. O resto da galera chegou, e nós quatro jogamos o joguinho de pênaltis até a bebida acabar. Já era tarde, mas a vendinha da Rosita ainda estava aberta. O bairro era bem tranquilo, mas àquela hora, a gente ainda tinha que ficar de olho aberto.
Deixamos os celulares no quarto. O Luke disse que estava frio demais pra ir, então o resto de nós foi e ele ficou pra trás jogando. Assim que saímos, vimos a namorada do Luke no portão, com o celular na mão e uma mochilinha do Hello Kitty no ombro.
Abri o portão e deixei ela entrar. Ela não disse uma palavra pra gente, odiava todos nós por motivos que a gente nunca entendeu. Assim que viramos a esquina, começamos a rir feito loucos. Ela não podia ser mais esquisita. E o que quer que fosse rolar lá dentro... não ia ser bonito.
Demoramos pra voltar, só pra evitar o climão. Mas depois de meia hora, o frio estava insuportável, então voltamos mesmo assim. Sem gritos, sem vozes. Que alívio. Talvez a gente tivesse escapado do drama.
Mas, quando chegamos mais perto, ouvimos uns... sons molhados. É a única forma de descrever. Achamos que íamos pegar um boquete bem constrangedor no flagra, então, sendo os idiotas que éramos, fomos nos aproximando da porta na ponta dos pés, espiando.
Abri a porta de supetão e todos nós congelamos. Um dos meus amigos correu pra varanda dos fundos e vomitou antes mesmo de chegar lá fora.
O Luke estava deitado sem camisa no colchão velho. O tronco e os braços dele estavam cobertos de feridas mal cicatrizadas. Pedaços de pele faltando. Carne seca, como couro... e músculo fresco, cru, onde um pedaço novo tinha acabado de ser arrancado do antebraço dele.
Do lado dele estava a namorada. Mastigando uma tira de pele e músculo, os dentes afundando naquilo com um som nojento, gosmento. Ela nem parou quando nos viu. Engoliu o pedaço, limpou a boca com um guardanapo de pano da mochilinha do Hello Kitty, se levantou e foi embora.
O Luke implorou pra gente não contar pra mãe dele. Disse que estava "lidando com isso", que ela era perigosa, que não podia simplesmente largar ela. De alguma forma... a gente acreditou nele. Acho que estávamos chocados demais pra pensar direito.
Não vi muito o Luke naquele inverno. Ele parou de responder minhas mensagens no Facebook. Quando as aulas voltaram, descobrimos que ele tinha se mudado pra outra cidade. Meses depois, ele me mandou uma mensagem dizendo que não teve escolha, tinha que se afastar o máximo possível dela. A gente se encontrou de novo eventualmente. Ainda saímos de vez em quando.
Nunca tocamos no assunto. Ele quer deixar no passado. Fingir que não aconteceu. E, sinceramente, eu também quero. Mas não consigo apagar aquela imagem da minha cabeça. Nem o som. Aquele som nojento, gosmento de mastigação... dela comendo aquele pedaço de carne.
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